Guiné > Ilha do Como > 1964 > Op Tridente (de 14 de Janeiro a 24 de Março de 1964) > LDM desembarcando as NT. Foi a maior ou uma das maiores operações realizadas no TO da Guiné, durante toda a guerra (1963/74). Segundo o Mário Dias, as baixas de um lado e doutro foram as seguinte: das NT, 8 Mortos, 15 Feridos; do PAIGC: 76 Mortos (confirmados), 29 Feridos, 9 Prisioneiros...
Erradamente, ao que parece, demos a seguinte informação no poste P2406, de 4 de janeiro de 2008 (*): "Na batalha do Como, morreu um dos primeiros heróis do PAIGC, o comandante Pansau Na Isna, cuja história poucos jovens guineenses de hoje devem conhecer, apesar de ter dado o nome a uma das principais avenidas de Bissau".
Foto (e legenda): © Mário Dias (2005). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Guiné > PAIGC > A Libertação do Komo. In: O Nosso Primeiro Livro de Leitura, p. 31. Departamento Secretariado, Informação, Cultura e Formação de Quadros do Comité Central do PAIGC, 1966 (1).
Foto: © A. Marques Lopes / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007)
Croquis da Op Tridente (1964), Vd imagem com melhor resolução, na página dedicada à Ilha do Como).
Infografia: © Mário Dias / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2005)
4. Quem foi Pansau Na Isna? Sabemos pouco da sua vida, é um dos heróis nacionais da Guiné-Bissau, que tem nome de avenida no centro histórico da velha Bissau colonial.
Já vimos algumas versões sobre quem foi este homem, que para os guineenses é sobretudo o "herói do Como" (tinha 26 anos quando comandou os 300 guerrilheiros que os portugueses enfrentaram no decurso da Op Tridente). Para os portugueses (ou os "tugas") que o combateram, tende a ser visto como um valente combatente balanta e sobretudo como uma figura "excêntrica", do qual se sabia pouco, no nosso tempo (anos 60/70), oscilando "entre o mito e a realidade" (**).
Vejamos agora o que se diz "do outro lado de lá"... É a versão (no mínimo, romantizada), de alguém, da mesma etnia, balanta, que na década de 80 do século passado, primeiro com 10 anos e depois com 16, já adolescente, ouviu e registou, na sua memória, as conversas tidas com o seu tio, N'tchaagn, antigo companheiro de Pansau Na Isna, tendo com ele resistido à ofensiva desencadeada pelas NT (Op Tridente, 14 de janeiro / 24 de março de 1964).
Saibamos também ouvir as "histórias do outro lado", o que nem sempre é fácil, entre antigos combatentes... Nem todos, de um lado e do outro, souberam "fazer as paees"... Mas, por favor, leia-se ou releia-se, a seguir, o nosso querido amigo Mário Dias (***) que, esse, também lá esteve, na ilha do Como, tal como o tio N'tchaagn...
E faço minhas as palavras deste srgt 'comando' reformado, um histórico da nossa Tabanca Grande, um homem sábio e um grande amante daquela "terra verde rubra" (onde viveu na sua juventude e onde combateu), justamente a propósito do balanço final da Op Tridente (***):
(...) "Finalmente, uma palavra de apreço a quantos, de ambos os lados, se esforçaram e sacrificaram superando todas as dificuldades e... sentida homenagem aos que tombaram. A todos. De ambos os lados." (...)
Blogue "Intelectuais Balantas na Diáspora" > 20 de janeiro de 2018 > Homenagem a Herói Kpänsau Na Ysna, conhecido como Pansau Na Isna > Artigo de opinião do dr. M'bana N'tchiga
Os itálicos correspondem ao texto, adaptado, do autor, M'bana N'tchiga ou Na Tchiga, nascido por volta de 1970; os itálicos a negrito são citação de excertos do discurso direto atribuído ao tio do autor, antigo guerrilheiro, combatente na Ilha do Como, N'tchaagn; chama-se a atenção para a extrema dificuldade de, para os lusófonos, grafar corretamente os vocábulos da língua balanta (ou brasa), a começar por topónimos e antropónimos; o artigo em causa está, além disso, escrito em mau português...
Não sabemos onde o autor se licenciou, mas não deve ter sido em Portugal, talvez no Brasil (a avaliar pela construção das frases, pelo uso de termos como "flagrar" ou "codinome", etc.); de qualquer achamos interessante o seu depoimento sobre Pansau Na Isna, mesmo que ele não o tenha conhecido: estava a nascer, em 1970, quando o seu herói Pansau Na Isna morreu, ao que parece em Nhacra... Mas, pelo menos, teve o mérito de passar ao papel as memórias do seu tio, o que é raríssimo na Guiné-Bissau, entre os antigos combatentes, que estiveram de um lado ou do outro da barricada...
Se ele o dr. M'bana N'tchiga nos ler, queremos que saiba que lhe estamos gratos por ter realizado essa tarefa ou missão...
Com a devida vénia, vamos então reproduzir aqui uma "condensação" do seu artigo, esperando que ela seja amigável para todos e que, no essencial, não traia o sentido das palavras do autor... LG]
Kpänsau Na Ysna (na língua brasa ou balanta) (****), mais conhecido por Pansau Na Isna, nasceu em 1938 e morreu em combate em 1970, aos 32 anos, em Nhacra.
Era oriundo de uma família balanta (brasa), do sul da Guiné. Era um homem alto, de pescoço saliente e cabeleira farta. Destacou-se pela sua audácia e coragem na batalha do Como (em crioulo, Köm), com apenas 26 anos. Era o comandante da Baraka Garandi, o quartel-general das tropas do PAIGC, cujos abrigos ficavam a 7 km da praia.
Como quase todos os nomes Braasa, Kpänsau, também tem significado... Na língua balanta (brasa), Kpänsau quer dizer literalmente morança ou tabanca acabou, desmoronou-se... Em sentido figurado, pode significar o fim ou aniquilação da geração, do clã, da comunidade...
O "Na" equivale à preposição preposição "de", "do", "da"... E neste caso indica, não a filiação, mas a pertença ao clã, à morança, à tabança (Ysna).
Os Braasa raramente carregam apelidos dos pais junto aos seus nomes. Daí que se deve entender a horizontalidade e a democracia deste grupo. O filho é do clã e não do pai...
Aos dez anos, em 1980, o autor, M'bana N'tchiga, ouviu, hipnotizado, o seu tio, N'tchaagn, antigo guerrilheiro e companheiro do Pansau Na Isna na Ilha do Como, durante a Op Tridente (que decorreu de 14 de janeiro a 24 de março de 1964).
Com sotaque Braasa, ele disse:
− Köm... Köm e Kation... Como você não sabe ainda, mas Köm é um dos setores de Kation, ou seja, Catió. De porto de Köm até aos nossos esconderijos distavam 7 km apenas.
− De Kation até à ilha eu não sei, mas imagino que seja uma distância de 15, 20, no máximo 30 km. E, como os portugueses estavam aquartelados em Catió, não podiam tolerar a presença de terroristas, o termo com que se referiam a nós, os de PAIGC, naquela época. Daí o seu interesse em nos expulsar do Como, definitivamente, para legitimar e assegurar a sua hegemonia.
E tio N’tchaagn fez uma pausa e tomou um gole de seu vinho de cíbi (palma):
− O comandante Kpänsau Na Ysna sabia disso. Pois além da gente que nos informava sobre a manobra e a intenção de tugas na ilha, ele próprio, Kpänsau, era um homem inteligente, um estratega de guerra, um guerreiro nato, corajoso como poucos que conheci. E intransigente, quando a questão era defender a nossa posição. Não gostava de perder. Eu, N’tchaagn, nunca conheci igual. Cada um dos nossos comandantes tem as suas características próprias de comandar, mas Kpänsau continua a ser uma lenda na minha mente até hoje.
Pansau Na Isna não estaria na ilha do Como aquando do início da Op Tridente.
− Estava em missão fora da ilha. Não sei muito bem, estava lá para os lados de M’brüi (Caboxanque), Tchüm-Kpáss (Cadique) ou Yembrém (Jemberém)...
Ao saber que a ilha do Como ia ser atacada pelo exército português, apressou o seu regresso, andando na maioria das vezes à noite e atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün, atravessando pântanos e bolanhas, até chegar ao interior do Como.
Ao saber que a ilha do Como ia ser atacada pelo exército português, apressou o seu regresso, andando na maioria das vezes à noite e atravessando Tchüm-Kpáss (Cadique), Flágck-N’ñandy (Ilhéu de N’fandá), Kybíl, Katün, atravessando pântanos e bolanhas, até chegar ao interior do Como.
A guerra já tinha começado antes, no dia 14 de janeiro de 1964. Era uma terça-feira. Dois outros comandantes, Guádn Na Ndamy e Biotchá Na M’batcha [seguramente não Biohctá, deve ser gralha] já estavam na ilha.
Pansau Na Isna misteriosamente caiu enfermo. As pernas incharam e não conseguiu andar durante duas semanas". Mas ninguém podia saber, muito menos os tugas...
− Só Biotchá Na M’batcha e mais outros comandantes, sabiam que o lendário (sic) estava doente. Perguntaram-lhe se não seria melhor evacuá-lo para fora do Como por estar doente. Logo esbraceejou, e com voz determinante disse: 'N’keia yânta. Bitën luza. Bbürtikìz tën luza. Köm ka wínbu'. (Não saio daqui. Têm que ir embora. Os Portugueses é que têm que ir embora. O Como é nosso)....
Mas, prossegue o tio falando para o sobrinho:
− Não foi só o Kpänsau quem fez tudo. Para além dele, foram o Guádn Na Ndamy e Biotchá Na M’bátcha. Bravos camaradas que estavam sempre por perto, obedecendo ou contestando o que convinha ou não, pronunciado por Kpänsau. Contudo, as decisões partiam sempre dele, como comandante em chefe. Ao entardecer, com o crepúsculo, chamava Biotchá Na M’batcha para tomar vinho de palma e aliviar a tensão do dia trabalhoso, analisar a ação que já tinha sido desencadeada até então e preparar o amanhã.
O tio N’tchaagn parou e me pediu para levar vinho de cíbi ao seu primo na varanda da outra casa ao lado. Fui e voltei rápido. Já tinha feito os 16 anos quando esta história reaparece para mim através dele. Mas o combatente N’tchaagn, como contador de histórias nato, lembrava-se com detalhe dos episódios da batalha que Kpänsau dirigiu. Continuando, disse:
− O exército português batizou a guerra contra o Köm de 'Operação Tridente'. Nas suas imaginações recuperaria não só Köm, mas, também, Katugn, Cayar (...) e, se instalaram também em Kônghan. (...) Estrategicamente instalaram no porto de Köm, Katchil, N’komny, Kônghan (onde se instalou general português que dirigiu a operação). Mas, nada que intimidasse o lendário, pois os portugueses desconheciam ou ainda subestimavam o poderio da força e do grau de organização de Kpänsau Na Yisna com seus homens, que já se encontravam bem instalados. Sobretudo ao nível dá tática móvel que ele sabia usar muito bem.
Passava já das 23 horas da noite e tio N’tchaagn já ansado e tomado por força da embriaguez pediu para parar (...) E parámos. Fui dormir, empurrei a porta e a minha mãe perguntou: 'Você ainda não está a dormir, M’bana?'... Não respondi, com medo de ela me dar um par de açoites, enfiei-me, silencioso, no quarto.
Passaram-se dois dias, após o que o tio N’tchaagn me pede para lhe relatar o que eu havia ouvido por ele sobre Kpänsau. Eu repeti tudo. O que ele aprovou e disse:
− Ótimo, bom menino, guarde bem para ninguém te falsear com outra história que não seja essa.
E prosseguiu.
− Kpänsau organizou os seus homens em dois grupos diferentes. Em primeiro lugar, um grupo armado de guerrilheiros em área territorial fixa. Esse grupo encarregava-se de defender o espaço aéreo de Köm, instalando a defesa antiaérea e hospitais debaixo do chão. O grupo detinha armamentos sofisticados que os tugas não imaginavam que tivesse.
Ao todo, nós homens de Kpänsau, éramos 300 guerrilheiros armados contra 800 ou mais da força dos tugas. Eram forças desproporcionadas e, claro, com vantagem para os tugas. Uma vez que, para além de 800 homens, os tugas tinham armas em quantidade e em qualidade superior às que tínhamos. Tinham ainda aviões, navios e outras embarcações menores para se deslocarem à vontade. Eram facilidades que nós não tínhamos. Nós já tínhamos armas que começavam a igualar-se a algumas das deles. Mas a distância entre nós e as armas que ficavam na fronteira de Conakry era imensa. Transportá-las até nós era uma enorme dificuldade. O único transporte que havia eram as pessoas dispostas ou obrigadas a ir a pé para buscar armas e munições na fronteira com Guiné-Conakry.
A viagem para ir buscar munições durava 4 a 5 dias. Isto é, se o grupo não se se encontrasse com os tugas no caminho. O percurso era saindo de Köm: WedëKaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng até fronteira de Conakry.
A viagem para ir buscar munições durava 4 a 5 dias. Isto é, se o grupo não se se encontrasse com os tugas no caminho. O percurso era saindo de Köm: WedëKaya ou Kantônaz, Ndin-Welgglè, Kandjóla, Kan, Kangnha-Ley, Katché, Kambíl, N’gháfu, N’thâne, Banta-Silla, N’dala-Yèll, Sambassa, Linga-Yèll, N’tchintchedaré, Yeng até fronteira de Conakry.
Essa distância em linha reta era de 160 a 200 km, aproximadamente. Mas a pé tinham que dar muitas voltas, imagino que fossem 200 a 230 km. Imagina, M’bana, percorrer essa distância com munições pesadas, à cabeça?! Às vezes com fome, apenas bebendo açúcar cubano misturada com água.
Não posso ser injusto em relação ao Kidèlé Na Arítchn, não o mencionando. Devo falar dele um pouco, para ti, nessa história das munições... Quando as munições chegavam ao porto, para serem introduzidos na ilha, era mais difícil de que a própria luta. Tuga estava ao longo de todo o perímetro da ilha. E vigiando o tempo todo para ver como é que iríamos receber reforços. Literalmente não havia ninguém que se atrevesse a desafiar os tugas atravessando o mar para o Köm. É aí que surge um único, chamado Kidèlé Na Arítchn que enche de munições uma B’sahë Në Braasa (canoa Brasa/Balanta) e põe-se a remar atravessando um mar perigoso vigiado dia e noite pela tropa inimigas.
Assim Kidèlé Na Arítchn abasteceu-nos de munições, atravessando o mar várias vezes sem que os tugas alguma vez o apanhassem em flagrante. A pergunta que não tem resposta até hoje, é: Como é que ele nunca se encontrou com os tugas? Será que podemos acreditar em milagres..? Coincidência ou não, não é à toa que os seus pais lhe puseram esse nome de Kidèlé (que na língua brasa quer dizer literalmente... Milagre). Aconteceu um verdadeiro milagre no abastecimento, feito por esse homem, aos guerrilheiros da ilha.
Pkänsau sabia da força do inimigo e soube admitir a sua fragilidade antes de encarar a guerra. Mas soube também desafiar os tugas provocando-os para, com isso, causar o desgaste físico, de munições e de seus aparatos bélicos. Até mesmo contra umas simples silhuetas de soldados falsos montados na escuridão da noite os tugas gastavam munições.
Conseguiu colocar muitos combatentes inimigos fora de combate com apenas dois e ou três guerrilheiros. (...) Era capaz de enganar os fuzileiros dos tugas, "obrigando-os" a desembarcar no lodo que dificultava a sua progressão. Ou a seguir num caminho estreito na mata densa através de alarmes falsos. E quando os tugas caíam nessa armadilha era a altura de nós, os homens de Kpänsau, tirarmos vantagem (...) Daí a expressão: “tuga ka pudi anda na lama.” (Tugas não sabem andar no lodo). (...)
Kpänsau conhecia os espaços que nos eram favoráveis. Por isso não admitia que a marinha portuguesa chegasse por perto e controlasse esses locais. Atraíamos os tugas sempre para o lado de lodo, mangue, ourique e para clareira, seguido de mato fechado onde os homens de Kpänsau estavam fortemente armados. A sua firme postura na luta de Köm encorajou até as mulheres a disparem contra barcos portugueses que se atreviam a subir nos rios, floresta adentro.
O céu da ilha estava coberto de fumaça devida aos disparos de canhões a partir de Kayar, Kônghan e Kambontõ contra nós em Köm. E, por terra, homens, mulheres, jovens, crianças e, claro, 300 guerrilheiros liderados por lendário Pänsau Na Ysna não arredavam pé de onde estavam.
A população de Köm sofreu. As mães com crianças de colo, a amamentar, sofreram e perderam a vida com seus bebés que, quando choravam, a resposta da força portuguesa, sem pena não se fazia esperar: , metralhavam, disparavam morteiro ou bombas de napalm contra o local de onde vinha o choro da criança, matando populações civis indiscriminadamente.
O povo de Köm viveu situação desumana durante 75 dias. 'Djigân' (bicho de pé) e as lêndeas de piolhos infestaram pés e cabelos de pessoas. Muitos abandonaram a ilha, desmoralizados, chamando a Kpänsau 'Balanta teimoso', que não vai vencer a guerra contra brancos.
Chegavam relatos dizendo que Amílcar Cabral pedira que Kpänsau e nós, guerrilheiros em Köm, abandonássemos a guerra para poupar massacre que tropas colonial praticavam contra populações civis, mas Kpänsau intransigente meneou a cabeça, dizendo: 'Wisaguë Kanã' (Não acredito nisso). Ignorou essa ordem e prosseguiu o seu trabalho. Certo de que a vitória estava próxima.
Como se não bastasse, M’bana, um dos nossos soldados recebeu informação triste, no dia 19 de fevereiro, quarta-feira, de 1964, de que os tugas estavam a queimar o arroz dos Brasa, deliberadamente, como forma de impedir a persistência dos guerrilheiros de PAIGC na luta. Pois sabiam que nós Brasa (Balanta), além de constituirmos mais de 90% da guerrilha do PAIGC, éram0s produtores de arroz e que os nossos excedentes alimentavam os guerrilheiros.
O que eu, N’tchaagn, esbravecei com lamento: 'Hack N’ghala, biotë bìg impanpan ni Bifilá, Biafadá kinë a binalú... bë thëd malu ni Braasa tida. hack, Bëbábm match bu. Weñan miin yá ki Braasa a bi ka hera0. (Meu Deus; ignoraram impanpan [?] de Fulas, Biafadas de Quínara e de Tombali..., só queimam arroz dos Brasa. Então, tuga nos detesta..? Já está claro que declararam guerra a nós, Brasa!)
Isto era o que dizia N’tchaagn, horrorizado, ao lembrar aquele episódio.
No dia 20 de março, numa sexta-feira, de 1964, quatro dias antes de terminar a guerra, recebemos mais informações, de que agora tugas estavam a matar bois e vacas em Katün, a tiro, deliberadamente, sem levar a carne. Era a destruição pura e simples, com a intenção clara provocar mais danos ao nosso povo.
Sempre as vacas e os bois de Braasa serviram de carne para eles ao longo da guerra. Sempre que invadiam terras Brasas pilhavam, saqueavam, matavam e escolhiam as melhores cabeças, de entre bois e vacas, para comer nos seus quartéis. Agora que estavam a perder a guerra, estavam a matar sem levar. N’tchaagn contava para mim, horrorizado.
− Nunca foram às tabancas desses grupos étnicos para queimar os cereais deles. Por representarem pouco valor em termos de abastecimento aos guerrilheiros do PAIGC. Mas num só dia, M’bana, antes de tu mesmo nasceres, o exército português queimou, nesse ano de 1964, o arroz das tabancas de Kablôn, M’brüi, N’ñaaé Thúe/Tchuguê, Kátche, Kângha-lei, Kibumbän, Kambyl, N’thäny, SaráckDjaty, Saráck-Cull, Sambassa, Botche-Thãntä, N’dala-Yièll... Ou sejam, 14 aldeias dos Brasas sofreram perdas do seu arroz. Por serem realmente tabancas que abrigavam armazéns de povo e que produziam arroz em larga escala para abastecer o PAIGC
Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau que ficou em silêncio, por uns segundos, perante o informante. Para depois responder; 'Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu'. (Por que não vêm combater-nos?... Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que tem que sair da nossa terra.)
Isso chegou aos ouvidos de Kpänsau que ficou em silêncio, por uns segundos, perante o informante. Para depois responder; 'Wìì biotte Bin hera ki bo? Wil wólo kei bo tchóhg-na sifá kë sif-bu. Be mada thedá, bë kite thët, wetè kher ka herë kantë be-fida buidn ya bitën lusa ka botchi-bu'. (Por que não vêm combater-nos?... Nada vai nos fazer desistir do nosso trabalho. Que queimem arroz da nossa população, mas a guerra vai prosseguir até que entendam que tem que sair da nossa terra.)
Os abusos que as tropas coloniais cometiam, matando civis, doía muito a Kpänsau. Mas ele sabia que era guerra psicológica que os homens de Salazar estavam fazendo para intimidá-lo e levá-lo a abandonar as armas.
Kpänsau não se abateu e manteve-se firme na luta para libertar esse povo. Deslocava-se pessoalmente à linha de frente para ver cada desatamento e como é que as coisas estavam a acontecer. Não era um comandante para dar ordens e ficar no seu QG. Ao chegar à linha de frente, via alguns famintos sem comer durante dias que apenas misturavam açúcar cubano com água e bebiam para continuar entrincheirados. Encorajava-os com palavras tais como: ' Herá, botche-bo win' (Lutemos, a terra é nossa!)
O dia começava, para Kpänsau, a partir das 05h00 / 6h00. Nesse horário, toda a movimentação para mais um dia sangrento começava a ser cronometrada. Instalado na Baraka Garandi (comando central de PAIGC, seu quartel-general) elaborava e decretava ordens para uma missão quase impossível.
Em matéria de crenças, Kpänsau era animista. Na sua fé religiosa, reuniu anciãos, anciãs, sacerdotes e sacerdotisas na Baraka Garandi para pedir proteção e vitória. No centro de adoração (Baloba, guardiã da ilha de Köm) separou anciãos e sacerdotes das anciãs e sacerdotisas. Sem se misturar, os sacerdotes faziam sacrifícios e consultavam a Baloba, a guardiã. A sacerdotisa-mãe, ladeada pela sua gente, murmurava palavras inaudíveis pedindo proteção para o comandante Kpänsau e os guerrilheiros que estavam combatendo os tugas ferozmente.
As árvores, M’bana, testemunharam durante 75 dias tudo que estava a acontecer e que hoje te conto. Assim foram estes dias, de 14 de janeiro (terça-feira) a 24 de março (terça-feira) do ano de 1964 na ilha de Köm.
PS - O autor, M'bana N'tchiga (sobre o qual não temos mais qualquer informação adicional) quis sobretudo fazer uma homenagem a um herói guineense, Pansau Na Isna, e por tabela ao seu próprio tio e aos demais combatentes do PAIGC que lutram no Como. Mas faz uma prevenção, reveladora da sua boa fé e honestidade intelectual: "Com todo o respeito aos meus leitores, eu não sou dono da verdade"... Sujeita-se, pois, ao contraditório.
PS - O autor, M'bana N'tchiga (sobre o qual não temos mais qualquer informação adicional) quis sobretudo fazer uma homenagem a um herói guineense, Pansau Na Isna, e por tabela ao seu próprio tio e aos demais combatentes do PAIGC que lutram no Como. Mas faz uma prevenção, reveladora da sua boa fé e honestidade intelectual: "Com todo o respeito aos meus leitores, eu não sou dono da verdade"... Sujeita-se, pois, ao contraditório.
E diz isto nomeadamente em relação à questão de se saber qual foi o papel do 'Nino' Vieira na batalha do Como. Contrariando outras versões, ele defende o ponto de vista de que o 'Nino' Vieira não participou na batalha do Como, pela simples razão de que estaria em Conacri, e ao que parece "doente". O seu tio confirmou-lhe que nunca viu o 'Nino' Vieira em nenhum dos combates que se desenrolaram ao longo de 75 dias. Sabia-se (ou constava) que ele estava em Conacri, e talvez em tratamento por doença.
A ser verdade (que o 'Nino' Vieira não pôs os pês na Ilha do Como, durante a Op Tridente) pode ser apócrifa a mensagem que lhe é atribuida, e que, segundo o Màrio Dias, estava "em poder de um prisioneiro por nós capturado":
(...) “Hoje faz 48 dias que os nossos camaradas estão enfrentando corajosamente as forças inimigas. Camaradas, tenham paciência, porque não tenho outra safa senão o vosso auxílio… As tropas estão a aumentar cada vez mais as suas forças… camaradas, não tenho mais nada a dizer-vos, somente posso dizer-vos que de um dia para o outro vamos ficar sem a população e sem os nossos guerrilheiros. Já estamos a contar com as baixas de 23 camaradas… do vosso camarada, Marga - Nino “ (...).
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Notas do editor:
(*) Vd. poste de 4 de janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2406: Op Tridente, Ilha do Como, 1964: Guerrilha e contraguerrilha (Santos Oliveira / Mário Dias)
(**) Vd. poste de 20 de outubro de 2022 > Guiné 61/74 - P23723: Casos: a verdade sobre... (30): Pansau Na Isna, o "herói do Como" (1938 - 1970), entre o mito e a realidade - Parte I: Visto do lado de cá
(***) Vd. postes, entre outros, de:
15 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P353: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)
16 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P356: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)
17 de dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - P361: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)
(****) Vd. poste de 19 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19116: Notas de leitura (1111): Salvatore Cammilleri, missionário siciliano do PIME, expulso da Guiné em 1973 por ordem de Spínola, autor de "A identidade cultural dos balantas" (Lisboa, 2010, tr. do italiano: Lino Bicari e Maria Fernanda Dâmaso) - Parte I (Luís Graça)