Comandos do Saraiva, o que é isso?
(pp. 81-89 )
por Amadu Bailo Djaló
Ser “rebenta-minas” causa desgaste, ao fim de dezenas de colunas estava cansado. Cerca de um ano depois de ter chegado a Farim, pedi transferência para a CCS do QG.
Pouco tempo decorrido tive conhecimento que o pedido tinha sido deferido e fiquei a aguardar que chegasse o meu substituto. Duas semanas depois, ou nem tanto, veio num Dakota um meu antigo colega do CICA/BAC, o Bubacar Culubale, nome por quem ninguém o chamava, mas sim “Tabaquinha” [1]
Em junho [de 1964], eu e mais dois soldados atiradores fomos transferidos para a CCS do QG. Viemos de avião para Bissalanca e, depois da apresentação, fomos para o parque das viaturas, à procura de companheiros. Como não vi nem o Tomás Camará nem o Adulai Djaló, perguntei por eles.
– Eles agora são Comandos do Saraiva!
– O que é isso de Comandos do Saraiva?
– São grupos de assalto e não fazem mais nenhum serviço!
– Onde posso encontrá-los?
Quando dei por mim, estava frente a frente com o tal alferes Saraiva, num gabinete que ele tinha arranjado ali na CCS. Fiquei com boa impressão, pareceu-me boa pessoa. Um contacto inicial simpático e que, com o tempo, se tornou numa grande amizade. E foi ele que, sabendo da minha experiência de condução e do contacto com a guerrilha, me dirigiu o convite para fazer o curso de Comandos.
Aceitei, sem saber o que me reservava o futuro, mas contente por ter a oportunidade de proceder a uma mudança na minha vida. Da mudança que vinha a caminho não imaginava nada.
Nos Comandos era preciso aprender técnicas novas para ganhar mais confiança e para isso era necessário frequentar o curso.
Brá tinha algumas instalações prontas e o Batalhão [de Caçadores] 512, acabado de chegar de Mansoa, encontrava-se lá aquartelado.
O tenente Jaime Cardoso [2], que pertencia aos Comandos de Angola, era o responsável pela instrução. Os instruendos eram os alferes Maurício Saraiva, o Pombo dos Santos e o Justino Godinho. Dos sargentos lembro-me do Vassalo Miranda, do Artur, do Morais e do Teixeira.
Guineenses eram os 1ºs cabos Braima Seide, Marcelino da Mata, Mamasaliu Bari, Tomás Camará e os soldados Mamadu Alfa Bari, Adulai Djaló, eu, Amadu Bailo Djaló e o Samba Djau. Este último, que foi um dos primeiros militares condecorados por feitos em combate na Guiné, no Inchugué, não acabou a 1ª parte do curso porque foi eliminado por falta de capacidade física.
Ao todo éramos oito negros a participarem no 1º curso de quadros para os Comandos do CTIG [3].
Ainda antes da chegada do tenente Jaime Cardoso, costumávamos sair para os arredores de Brá. Uma manhã, quando chegámos ao quartel, vimos num quadro afixado que a sobrevivência era sempre possível. Chamei a atenção do Tomás Camará para o que estava escrito. O Tomás perguntou ao furriel Artur Pires se o que estava escrito no quadro, também fazia parte do programa do curso. O furriel respondeu que a sobrevivência era uma parte muito importante na vida de um Comando.
– Agora vamos sair sem ração de combate. Só podemos levar cigarros, sal, anzóis e limão. Mais nada – disse o alferes Saraiva.
– Posso levar dinheiro ? – perguntou um.
– Não – respondeu o alferes – Os macacos têm dinheiro para comprar fruta aos camponeses ? - perguntou nos - Desenrasquem-se para não serem presos.
– E se formos presos ? – voltou o mesmo a perguntar.
– Se vocês apanharem um macaco a roubar na vossa lavra ou na vossa horta, o que é que lhe fazem ? – perguntou o alferes.
– Matamo-lo – respondeu outro.
– Se roubarem, não se deixem aprisionar. Se algum de vocês se deixar prender, é castigado.
À frente de duas viaturas, antes de embarcarmos, fomos apalpados e revistados. Não podíamos levar nada que se comesse, nem dinheiro. Dirigimo-nos para as imediações de Prábis e apeámo-nos junto ao rio. Entrámos na mata, andámos toda a manhã até cerca das 15h00, quando vimos à nossa frente uma grande horta, vedada a toda a volta com arame. Demos a volta, vimos que tinha duas entradas, uma pela frente e outra pelas traseiras. Sentámo-nos em círculo, à volta do alferes, que ficou de pé. Depois de olhar para nós, chamou o Marcelino da Mata e depois por mim.
– Vocês os dois têm que nos arranjar comida, qualquer coisa que se coma.
A nossa missão era um pouco difícil, a horta estava bem vigiada, certamente, por guardas. Se eles deixassem os macacos ou alguém, como nós, entrar na horta para roubar, se nos safarmos, eles vão ver os ordenados descontados no final do mês.
Entrámos cuidadosamente e fomos andando até que vimos bananeiras, quase a meio da horta, e, à nossa esquerda, um campo de ananases. Fomos ver se a sorte estava connosco e se protegia os audazes. Separámo-nos, cada um foi para o seu quarteirão. Arranquei dois ananases grandes e encontrei o Marcelino também abraçado a dois. Eram muito grandes, não podíamos sair dali com mais e decidimos regressar. Antes de chegarmos ao trilho que nos tinha levado, vimos um guarda a dirigir-se a nós. E agora? Agora, vamos escondê-los ali naqueles arbustos. Para disfarçar pusemo-nos a cavar num pequeno baga-baga, a tentar fazer um forno para assar os inhames que trazíamos nos bolsos e que tínhamos cavado na mata.
O guarda chegou junto de nós, cumprimentou-nos, e perguntou o que estávamos nós ali a fazer.
– Um forno para assar estes inhames – respondi.
Quando estávamos a acabar de falar, ouvimos um disparo de G3, para o ar, feito pelo alferes, como tinha sido combinado. Respondi com outro. Vimos o guarda a seguir as nossas pegadas, até ao local onde tínhamos arrancado os ananases. Voltou para junto de nós, apressado.
– Foram vocês que tiraram ananases dali ? – perguntou – Segui as pegadas das vossas botas, vocês foram os únicos militares que entraram aqui, foram vocês que tiraram os ananases!
– Anda muita tropa aqui. Perdemo-los deles durante a noite, as pegadas podem ser deles – respondi.
– Não, ninguém entrou aqui desde ontem – respondeu.
Ouvimos outro tiro do alferes e nós voltámos a responder com outro, para o ar. O alferes tinha avisado o pessoal que se repetíssemos o tiro do mesmo local não era bom sinal. Pouco tempo depois vimos o grupo a chegar. O guarda não saía da nossa beira, com os olhos bem abertos.
– É o senhor que é o chefe deles – perguntou o guarda ao alferes, apesar de ninguém trazer divisas ou galões.
– Sim, sou eu – respondeu o alferes Saraiva.
– Estes dois soldados roubaram ananases. Ninguém entrou cá a não ser eles.
– Foram vocês ? – perguntou o alferes, virado para nós.
Neste momento ouvimos barulho de macacos, vindo do lado das bananeiras. Que se tivéssemos sido nós, ele pagava, disse o alferes ao guarda. Como nós negámos, não pagava. O guarda não podia perder mais tempo, os macacos estavam à volta das bananeiras e correu para lá. E nós, corremos para os arbustos, tirámos os ananases e arrancámos dali em marcha forçada, com o guarda na nossa direcção, em passo largo. Nessa altura, ouvimos o alferes gritar passo corrida.
Assim é fácil viver como os macacos, sem dinheiro, sem lavrar, sem ração de combate. É muito importante o combatente saber viver na mata, sem levar nada para comer. O que os macacos comem, nós podemos comer.
– Atenção – continuou o alferes –, roubar é contra os princípios dos Comandos. Só podemos proceder assim quando estivermos na mata em operações. Nessa altura temos que utilizar todos os meios para sobreviver. Nas cidades ou nas tabancas, se um Comando for apanhado a roubar é corrido e castigado com a prisão.
Foi assim que o alferes terminou a nossa primeira lição de sobrevivência no mato.
Enquanto decorria a instrução, em agosto fizemos um assalto ao acampamento de Talicó, a norte da mata do Oio. Nesta operação participou também o major Correia Dinis, que era o comandante do Centro de Instrução de Comandos em Brá.
Andámos toda a noite e quando eram cerca de 6h00 da manhã encontrámo-nos com um pequeno grupo da guerrilha que ia fazer sentinelas de dia, em postos avançados do acampamento. Nem deu tempo para nos emboscarmos, tivemos que abrir fogo. Um dos guerrilheiros foi logo abatido, e os outros conseguiram escapar pelo mato, sem terem sido atingidos. Apanhámos a arma do morto, entrámos no acampamento e chegámos-lhe fogo, embora a gente soubesse que isso não lhes ia trazer grande prejuízo, pois armavam barracas noutro lado, nem precisavam de comprar nada.
Retirámos rapidamente da zona, uma vez que estávamos detectados e saímos em direcção a Cutia, onde fomos depois recolhidos e transportados em viaturas para Bissau.
A Brá estavam a chegar, todos os dias, praças europeus, vindos de várias companhias e que se tinham oferecido como voluntários. Nesta ocasião apresentou-se também um militar guineense, o António Kássimo, que era manjaco.
O curso arrancou em grande velocidade e durou até outubro[4]. Enquanto decorria, fizemos treino operacional e houve elementos que iam sendo eliminados. O Samba Djau, Sambadora como lhe chamavam, foi um dos que não acabou o curso. Era muito corajoso e um bom companheiro mas não tinha capacidade física para os Comandos.
Numa noite, a instrução tinha acabado por volta da uma hora da madrugada. Como era costume largámos as armas e os equipamentos e tomámos os lugares na viatura que nos ia levar a nossas casas. Quando chegou a casa, a mulher de Sambadora perguntou-lhe se ele tinha levado a arma para casa.
– Não, por que perguntas?
– É porque trazes as cartucheiras na cintura.
– É pá, oitenta balas, cantil de um litro, e não dei por este peso todo – admirou-se o Samba.[5]
A nossa primeira saída, depois de terminado o curso, foi para o Oio, para uma zona entre Mansabá e Farim. Tínhamos saído de Brá em viaturas até Mansabá, onde ficámos algum tempo a aguardar [6]. Depois, prosseguimos em coluna auto até uma tabanca abandonada. Apeámo-nos já com a noite entrada, pusemo-nos a caminho e andámos a noite toda. O guia perdia-se, ou dizia que estava perdido. Até que, já de dia, demos com um caminho bem pisado e fomos seguindo nele até que ouvimos barulho de pilar. O alferes Saraiva disse que eles não sabiam que nós andávamos por ali e começámos a andar com todo o cuidado, como tínhamos treinado no curso.
Eu, que ia com o guia à minha frente, continuei a observar pegadas bem frescas, de poucos minutos antes. Chamei o alferes à frente, para ele ver, e continuámos a progredir silenciosamente, em passo fantasma. O cabo Cruz, um europeu, disse-me:
– Amadu, se tiveres medo, deixa-me passar para a frente!
Mas quem deu a resposta, foi o alferes:
– Isso não é assim. O Amadu não nos vai meter numa emboscada. Isto tem que ir com muita calma.
Eu nem respondi, porque o meu pensamento estava noutro lado. O primeiro homem do grupo tem grande responsabilidade. Tem que ver para a frente, para os lados, até para as árvores, e tem que ver bem o caminho que está a pisar. Todos os vestígios têm que ser bem observados. Foi esta a instrução que recebemos no curso, e estes ensinamentos deviam agora ser seguidos. É como o código da estrada, se violarmos as regras, esse esquecimento pode custar-nos muito caro. Na guerra, ignorar as regras paga-se com a vida ou vidas.
Estávamos a andar com todas as precauções quando o silêncio foi quebrado por duas rajadas de pistola-metralhadora, vindas do lado direito do carreiro. Respondi com dois ou três tiros da minha G-3 e arrancámos directos ao acampamento. Demos com casas de mato, sem ninguém lá dentro, nem nada que se aproveitasse e abandonámos o acampamento a correr, para o mesmo lado por onde tínhamos entrado.
Em marcha forçada dirigimo-nos para a estrada que ligava Farim a Mansabá. Entretanto, o alferes ia dando indicações, pelo rádio, sobre o local para onde nos estávamos a dirigir, a fim da coluna nos recolher. Chegados à estrada, ficámos a aguardar até ouvirmos o barulho das viaturas. Mal chegaram arrancámos a grande velocidade e o alferes lembrou-se de disparar uma rajada para o ar, para manter o pessoal alerta.
Mais valia não o ter feito, porque um companheiro que ia atrás, saltou logo da viatura e caiu mal. Pareceu-nos, na altura, que estava paralisado. Trouxemo-lo com muitos cuidados até Mansabá, daqui foi evacuado de helicóptero para o hospital militar de Bissau e, mais tarde, soubemos que foi transportado para Lisboa. Nunca mais regressou à Guiné [7].
De Mansabá regressámos a Bissau. Esta foi a 1ª operação do Grupo Fantasmas. _________
Notas do autor Amadu Dajló e/ou do editor literário Virgínio Briote
[2] Nota do editor: em 3 de Agosto de 1964 o CIC / Brá, sob o comando do major de inf comando Correia Diniz, deu início às actividades, com a Escola de Quadros, para dar instrução ao 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de Agosto e 17 de Outubro de 1964.
Deste curso saíram os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras. Para o curso de quadros, o CIC de Angola enviou vários instrutores, entre os quais o tenente mil comando Jaime Abreu Cardoso. Estes elementos participaram nas primeiras acções com os grupos acima referidos.
[3] Comando Territorial Independente da Guiné.
[4] Nota do editor: até 17 Outubro de 1964
[5] Samba Jau não continuou nos Comandos, mas foi sempre um grande amigo de todos. Depois do 25 de Abril saiu da Guiné e foi para Dacar, onde vivia ainda há pouco tempo
[6] Nota do editor: deve tratar-se da Op Confiança, realizada entre 25 de Outubro e 4 de Novembro de 1964 no Oio, conjuntamente com os Grupos de Comandos Camaleões e Panteras na área atribuída ao BCav 705, tendo por objectivo a reabertura do itinerário entre Mansabá e Farim.
[7] Em 2005, num almoço em Marinhais, soube que o Barbedo, que era como se chamava, andava em cadeira de rodas
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 12 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23777: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte VII: Em Farim, com o BCAV 490, do ten-cor Fernando Cavaleiro, até meados de 1964... Abatises e emboscadas no itinerário Farim-Jumbembem-Cuntima