terça-feira, 22 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23804: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte X: Op Mar Verde, há 52 anos, em 22/11/1970: para Conacri, rapidamente e em força.

v














Op Mar Verde > 22 de novembro de 1970 > Na lancha de regresso a Bissau. Os soldados Aliu Djaló, Abdulai Djaló Cula, Meta Baldé, furriel Félix Diuf, furriel Vagomestre (não lembro o nome) e soldados Papa e Idrissa Dabo, da esquerda para a direita. (Foto publicada no livro, pág. 182, sem indicação de fonte).



Tira da banda desenhada “Operação Mar Verde”, da autoria de A. Vassalo [ex-fur mil comando Vassalo Miranda, nosso camarada da Guiné], uma edição da Caminhos Romanos, 2012.



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Ilha de Soga > Novembro de 1970 > A 1ª Companhia de Comandos na LDG Montante, nos preparativos para a saída. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 174, sem indicação de fonte)



Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Novembro de 1970 > O general Spínola na LDG, momentos depois de se ter dirigido aos Comandos, fardados e equipados como se fossem gerrilheiros do PAIGC. (Foto publicada no livro, a preto e branco, em pequeno formato,  pág. 175, sem indicação de fonte)




Guiné > Arquipélago dos Bijagós > Carta de Bubaque (1057) > Escala 1/50 mil > Posição relativa das ilhas de Soga, Bubaque, Rubane e Formosa.

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2021)




Guiné > Brá > Em 1965, os então 1º cabo Abdulai Jamanca e o soldado Justo Nascimento.  (Foto publicada no livro,  pág. 171, sem indicação de fonte)

Foto (e legenda): © Virgínio Briote (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Guiné > Presumivelmente em Brá ou Fá Mandinga > s/d >  Soldado Caetano Gomes, morto na ilha de Sogo,   em acidente no mar, já depois do regresso d Op Mar Verde. (Foto publicada no livro,  pág. 181, sem indicação de fonte)

1. Continuamos a reproduzir excertos das memórias do Amadu Djaló (1940-2015), infelizmente já falecido, em Lisboa, no Hospital Militar, aos  74 anos.

A fonte continua a ser o ser livro "Guineense, Comando, Português" (Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp.), de que o Virgínio Briote nos disponibilizou o manuscrito em formato digital. A edição, que teve o apoio da Comissão Portuguesa de História Militar, está há muito esgotada. E muito pouco provável que haja, em breve, uma segunda edição, revista e melhorada. Entretantio, muitos dos novos leitores do nosso blogue nunca tiveram a oportunidade de ler o livro, nem muito menos o privilégio de conhecer o autor, em vida.



Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria >
IV Encontro Nacional do nosso blogue >
20 de Junho de 2009... O VB e o Amadu.
Foto: LG (2010)
O nosso coeditor jubilado, Virgínio Briote (ex-alf mil, CCAV 489 / BCAV 490, Cuntima, jan-mai 1965, e cmdt do Grupo de Comandos Diabólicos, set 1965 / set 1966) fez, duarnte largos meses, com enorme paciência, generosidade, rigor e saber, as funções de "copydesk" (editor literário) do livro do Amadu Djaló, ajudando a reescrever o livro, a partir dos seus rascunhos.

Recorde-se, aqui o último poste 
desta séreie (*):  o então sold cond auto,  Amadú Djaló,   foi um dos poucos guineenses a frequentar o 1º Curso de Comandos da Guiné, que decorreu entre 24 de agosto e 17 de uutubro de 1964. Desse curso fizeram parte 8 guineenses: além do Amadu Djaló, o Marcelino da Mata, o Tomás Camará e outros. 

Deste curso sairam ainda os três primeiros grupos de Comandos, que desenvolveram a actividade na Guiné até julho de 1965: Camaleões, Fantasmas e Panteras. E começou logo, o Amadi, a entrar em combate. no Grupo Comandos Fantasmas, do alf mil 'comando' Maurício Saraiva. 

Hoje vamos dar um salto de 6 anos, e vamos com ele até Fá Mandinga (Sector L1, Bambadinca), à  ilha de Sogo e depois a Conacri... Foi seleccionado  em meados de 1969 para a 1ª Companhia de Comandos Afrocanos (em formação), comandada pelo cap graduado 'comando' João Bacar Jaló, seu amigo de Catió, e com a supervisão do major Leal de Almedida.  

Um ano e tal depois, em 22 de novembro de 1970, vêmo-lo a caminho de Conacri, no âmbito da Op Mar Verde. Faz hoje 52 anos. Vamos aqui recordar as memórias que ele nos deixou dessa temerária operação. 

Há mais de oitenta referências no nosso blogue sobre a Op Mar Verde. Mas o depoimento do Amadu Djaló é único: ele esteve lá, também sentiu dúvidas sobre a "legitimidade" da operação (fora do território nacional,e numa terra donde eram provenienetes os seus progenitores!), também experimentou sentimentos contraditórios (incluindo medo) mas não desertou como alegadamente terá desertado  o tenente 'comando' graduado João  Januário Lopes. Regressou, vivo, e continuou nos comandos e depois na CCAÇ 21 até ao 25 de Abril de 1974. É o único militar, guineense, que escreveu sobre a Op Mar Verde.




Capa do livro de Bailo Djaló (Bafatá, 1940- Lisboa, 2015), "Guineense, Comando, Português: I Volume: Comandos Africanos, 1964 - 1974", Lisboa, Associação de Comandos, 2010, 229 pp, + fotos, edição esgotada.




Operação Mar Verde, 22/11/1970: Para Conacri
rapidamente e em força
(pp. 168/183)

por Amadu Djaló (*)



(i) Acaminho da "misteriosa" ilha de Soga

Quando chegámos a Fá Mandinga a primeira coisa que fizemos foi ajudar o pessoal da formação a preparar mais de trezentos pregos para uma viagem que íamos fazer e ainda não sabíamos para onde.

O capitão João Bacar Jaló e o major Leal de Almeida, mal desembarcaram do heli, deram ordens para distribuir os pregos pelo pessoal e logo a seguir tomámos os nossos lugares nas viaturas. Sabíamos que íamos directos ao Xime [1], e depois o destino era desconhecido.

No Xime embarcámos numa LDG que, logo que o pessoal entrou todo, começou a manobrar para sair do porto e a seguir rumou para ocidente.

Na minha e nas nossas cabeças, as dúvidas eram cada vez maiores, ninguém nos dizia para onde íamos e o que íamos fazer. Como Bissau ficava para ocidente, o capitão João Bacar disse que se desembarcássemos em Bissau mandava matar o carneiro capado que tinha em casa.

Bissau ficou à nossa vista e pensei na grande noite de festa que iríamos ter. A lancha encostou na margem contrária e quando vimos a cidade a passar à frente dos nossos olhos perdemos as esperanças. Estava cansado, fui dormir, e não sei o que se passou durante o resto da noite. Quando acordei, já depois das 7h00 de terça-feira, o barco estava fundeado em frente de uma ilha, no meio do mar.

Disseram-me que estávamos entre Bubaque e a Ilha de Soga, no arquipélago dos Bijagós. Que estamos a fazer neste sítio? Era uma pergunta que todos faziam, resposta ninguém tinha. O que vimos foi um grande movimento na ilha que me disseram chamar-se Soga.

Nesta altura veio-me à lembrança que, em Fá Mandinga tínhamos recebido instrução de combate dentro de cidades [ministrada pelo cap art Morais da Silva, hoje cor ref, membro da nossa Tabanca Grande... LG]. E também recordei o que tinha ouvido do adivinho de Paunca [Mamadu Candé, pág. 166 ]. Que íamos para uma grande cidade e que íamos sofrer muitas baixas. Eu nunca falei nesta conversa a ninguém, a não ser ao João Bacar. Fiquei com estes pensamentos na cabeça.

Na noite de terça-feira, os militares fizeram um espectáculo na lancha, que durou até às 02h00 da madrugada de quarta-feira. Quando me levantei na manhã seguinte, a minha cabeça não parava com perguntas. Ia ser uma quarta-feira comprida [2].

Por que estamos nas Ilhas dos Bijagós se aqui não há guerra nenhuma? Por que estão aqui uns gajos, que alguns dizem que falam francês? Em nenhuma parte de Portugal se fala francês! Por que viemos até aqui e não fomos combater? De que é que estamos à espera, neste local?

Já estávamos saturados de mar, mas pelo menos saltávamos para a água. Estávamos a tomar banho quando vimos um heli a passar ao lado do nosso barco e a pousar na ilha de Soga. A seguir vimos um bote, só com um marinheiro, a aproximar-se da nossa lancha. Ficámos ali a observar e, pensei para mim, que as nossas interrogações iam brevemente ter resposta.

Quando o bote encostou, o motorista chamou o major Leal de Almeida e o capitão João Bacar, que desceram para o bote e rumaram directos à ilha. Em ânsias ficámos a aguardar, cerca de duas horas, até que vimos o bote voltar na nossa direcção.

As pessoas que vinham eram nossas conhecidas, era o major e o capitão e não os largámos de vista, a ver se descobríamos alguma coisa nos olhos deles. Quando subiram, a olhar para o chão ou para o lado, chamaram os quadros da nossa companhia.

A reunião começou com o major Leal de Almeida a distribuir objectivos: o grupo do alferes Djamanca [3] ia ocupar a emissora. O furriel Demba Chamo Seca ia com a sua equipa [4] e com um grupo da Frente de Libertação da Guiné-Conacri [5], chefiado pelo comandante Tcham, cortar a luz à central eléctrica. O grupo do alferes Tomás Camará [6] ia atacar a Guarda Nacional.

A minha equipa reforçava a equipa do furriel Talabio e devia seguir com um grupo do FLNG para o Palácio. Eu ia com o major Leal de Almeida, levava dez soldados africanos da 15ª CCmds e mais onze milícias, comandadas pelo régulo Sambel Coió [7] e mais quarenta homens do FLNG, num total de sessenta e nove homens, com dois morteiros de 60, dois de 82, um canhão sem recuo e uma MP e onze carregadores, naturais da República da Guiné-Conacri. O nosso primeiro objectivo era cortar as ligações ferroviárias entre Conacri 1 e Conacri 2, rebentar com os caminhos-de-ferro. Depois ficávamos ali em reserva para um eventual pedido de apoio dos outros grupos.

A seguir entregou-nos mapas das zonas e papeis com os objectivos de cada agrupamento e, no final de tudo, disse-nos que o objectivo era Conacri.

Quando ouvimos falar de Conacri ficámos abananados e as reacções foram imediatas.

 Nós estamos de acordo em actuar em qualquer parte do território nacional. Não estamos em guerra com Conacri!    reagiu assim o tenente Januário, que era o 2º comandante da CCmds. 

E quase todos os quadros estavam de acordo com esta reacção. Os únicos que não se manifestaram foi o comandante da companhia, o capitão João Bacar, e o alferes Sisseco. Entretanto, contrariando as ordens recebidas, o alferes Justo desabafava para os soldados:

– Vocês sabem para onde nos queriam mandar? Para Conacri!

Nessa altura os soldados também se manifestaram abertamente contra a ideia. Perante esta situação, o major Leal de Almeida escreveu uma mensagem a dizer que a 1ª Companhia de Comandos recusava a missão.

Este foi um momento muito, muito difícil. Para os dois comandantes e para nós também. Para mim, a missão de tirar os companheiros da prisão era uma operação própria para os Comandos. E, se a decisão fosse essa, era uma missão completamente legítima e para ser executada por nós. Esta era a minha ideia, aquilo que o meu íntimo me dizia.

Então, o major disse-nos que ia mandar a mensagem e que, a partir deste momento, a vida militar dele estava nas nossas mãos. Se, posteriormente, a companhia decidisse participar na acção, podiam pensar que tinha sido ele, que era o único branco da CCmds, que nos tinha influenciado.

 –
  Meu major, nós não tomaremos nenhuma decisão sobre esta ou outra missão enquanto o meu major não regressar. 

Uma opinião quase geral. Algumas horas passadas voltámos a ver o heli na direcção de Soga e o bote a vir outra vez a caminho da lancha. Quando acostou, quem é que vinha nele? Era o comandante Alpoim Calvão, que nos tinham dito que era o comandante da operação.

Quando acabou de subir para a LDG, nós levantámo-nos e cumprimentámo-lo. Mandou-nos sentar e ouvimo-lo chamar pelo major e pelo João Bacar. Estiveram cerca de uma hora reunidos.

Depois da reunião, o nosso major foi o primeiro a aparecer. Quando passou ao meu lado, que estava sentado junto do médico da companhia, ouvi-o dizer:

– Eu não vos disse? Mandaram-me buscar!

Entraram para o bote os dois, o major e o comandante Calvão, e rumaram noutra direcção. A preocupação entre nós era cada vez maior. No nosso barco reinava um silêncio total, cada um a pensar para si. Um soldado, o Galé Bari, era o único que, de vez em quando, nos entretinha com histórias que nos faziam rir. Mas a noite foi tão comprida e tão cansativa como tinha sido o dia. Os pensamentos surgiam uns atrás dos outros. Não era só o facto de ter medo. Era também a vergonha de recusar entrar numa acção para a libertação dos nossos companheiros presos e haver outras unidades envolvidas.

Seriamos os únicos a tomar esta decisão? Nós não sabíamos, não podíamos entrar em contacto nem com os fuzileiros nem com as milícias do Sambel Coió.

Quinta-feira [8] de manhã, ainda antes das 9 horas, voltámos a ouvir o barulho do heli e vimo-lo na direcção de Soga. E vimos o bote, outra vez a dirigir-se para a nossa lancha. Quando encostou, reconhecemos o nosso major, que, soubemos depois, tinha passado a noite em Bissau.

Quando subiu, vimo-lo com outra cara. Cumprimentou-nos alegremente e nós ficámos mais animados. A seguir mandou os quadros reunirem-se com ele.

Disse-nos que os objectivos se mantinham e falou sobre a forma como íamos agir. Primeiro, não levávamos as nossas fardas, nem as nossas armas. Levávamos Kalashs e íamos vestidos com roupa do PAIGC, equipamentos, chapéus, tudo de cor castanha. Segundo, que havia um capitão do Exército da Guiné-Conakry que comandava uma companhia que ia connosco. E terceiro que todos nós levávamos um braçal, de cor verde, no ombro esquerdo e que serviria de sinal da operação “Mar Verde”. E que qualquer pessoa que, em Conacri, nos mostrasse um pano, grande ou pequeno, desde que fosse de cor verde, era dos nossos.


(ii) A caminho de Comacri, e que Alá nos proteja!


Terminou a reunião, dizendo que a operação estava bem planeada. E que tínhamos, em Conacri, gente à nossa espera, mesmo militares, que apoiavam a nossa acção!

 
– E as fardas e as armas, onde estão?  – perguntou  um e depois outros.

  Aí atrás, em baixo, onde vocês estão. Alguns de vocês estão sentados nelas!

Eram umas caixas que estavam ali, meio desprezadas. Estavam ali desde que tínhamos embarcado na LDG. Ninguém deu por elas, ninguém tinha achado que valesse a pena olhar para elas.

Abrimo-las e logo começámos a fardar-nos. Uma hora depois ninguém parecia pertencer ao Exército Português.

Por volta das 10h00, avistámos um barco muito velho a navegar na nossa direcção. Trazia o general Spínola, corremos para a formatura. Quando chegou, o capitão João Bacar Djaló mandou apresentar armas, o general correspondeu à continência e depois iniciou um pequeno discurso.

Que se não fosse governador ia connosco. Mas que nós iríamos participar com o espírito dele e que havíamos todos de regressar, se Deus quisesse. Gritámos o nosso grito “Comandos ao ataque”, três vezes. Depois deste grito, já não podíamos voltar atrás, era o nosso juramento.

A partir deste momento, acabaram-se as reclamações. Mesmo assim, um pequeno grupo não estava satisfeito com a missão.

Acabada a reunião, o nosso general [9] regressou no barco e nós saltámos para a ilha de Soga. Aqui esperava-nos o trabalho de formar os grupos e enquadrar a gente da Frente de Libertação da Guiné-Conakry.

Faço aqui, agora em 2009, uma nota que nunca revelei. A última ordem que recebi do major Leal de Almeida foi que se tivéssemos êxito na acção, era que devia manter-me em Conari até o Movimento de Libertação da República da Guiné controlar totalmente a situação. Só depois, o meu grupo seria recolhido de avião, de barco ou até em viaturas. Esta ordem foi-me transmitida na sexta-feira [10], dia destinado aos preparativos, um dia em que nem tempo tivemos para almoçar. Só mais tarde jantei no barco.

Pensando hoje, lembro-me que houve sobreviventes do desembarque na Normandia, na IIª Guerra Mundial e talvez eu não estivesse assim tão perto do fim dos meus dias. Só que as guerras têm diferenças.

A nós, o PAIGC não nos poupava. Que me lembre, não me recordo de ver algum dos nossos matar os feridos. Nem deixávamos nenhum ferido do PAIGC na terra de ninguém. Se estivesse ferido, pedíamos a evacuação para o Hospital Militar. Certamente, alguns entre nós, brancos ou negros, não se comportavam assim, tão dignamente, mas não eram a maioria. E se nós fossemos apanhados pela tropa de Sékou Turé, de certeza que não haveria nenhum sobrevivente.

A partida deu-se às 17h35 dessa mesma quinta-feira, 20 de Novembro, comigo a falar para dentro e a mirar os tarrafos [11] até ao pôr-do-sol. Talvez eu estivesse a olhar pela última vez aquelas paisagens da minha Guiné.

A frota era constituída por seis navios: duas LDG e quatro patrulhas. A nossa lancha foi a terceira a partir. No mar víamos, às vezes, dois barcos que seguiam na dianteira. Continuámos a navegar até sábado 
[21 de novembro] , quando nos foram feitas importantes recomendações. Ninguém podia acender luz nem fumar fora do porão. O jantar ia ser servido às 17h00. E a ordem de desembarcar ia ser dada até às 23h00.

Ao pôr-do-sol começámos a ver as luzes de Conacri. Lembro-me de olhar para o relógio, eram 19h00, quando disse para um colega, o 1º cabo Galé Bari, para me deixar dormir um pouco.

 És parvo? Nós vamos dormir nas ruas, um sono de que nunca mais vamos acordar!

 Podem sobrar alguns     respondi.

 
– Não, vamos morrer todos, ninguém vai sobrar!

Estava a gozar, ele a dizer para o lado e nós a rirmo-nos.

Quando chegámos ao local onde íamos fazer o transbordo para os botes, a lancha parou e o pessoal começou a sair.

Se não me engano, éramos quatros grupos sob o comando do capitão João Bacar Jaló. O alferes Djamanca, eu, Amadu Bailo Djaló, o furriel Talabio Djaló e o pessoal da Frente de Libertação da Guiné-Conakry. Os primeiros a desembarcar foram os grupos do Jamanca [12] e do Talabio Djaló.

Outros grupos já estavam em acção em Conacri [13], ouvíamos tiroteio cerrado e rebentamentos. O meu grupo, em que ia o major Leal de Almeida, foi o último a desembarcar. No momento em que estávamos a passar da lancha para os botes, ouvi, no meu rádio, o comandante Calvão a dizer ao nosso major que o tenente Januário tinha desertado.

 O quê ?  – perguntou  o major.

 
  O Januário desertou!

 
   O quê?

 
– O Januário fugiu  rematou o comandante.

   Mas fugiu com o grupo, ou sozinho?    insistiu o major.

 
– Stop       fechou assim a conversa o comandante.

Para mim e talvez para outros, não estava a ser novidade esta deserção. Ainda em Soga vi o tenente Januário vestido com roupa civil, uma calça de terylene verde e uma camisola branca, de manga curta.

 Djaló, eu não entro no ataque. Vou-me entregar, portanto não levo farda. Vou com esta roupa, as botas de fecho ao lado e quando lá chegar, tiro o dólmen e o quico e fico à civil.

Fiquei surpreendido mas não acreditei. Eu sabia que o tenente Januário tinha um irmão que combatia pelo PAIGC, tal como alguns de nós tínhamos familiares que também combatiam por eles.

Quando pusemos os pés em terra, Conakry estava às escuras e os tiros e rebentamentos eram mais esporádicos. Meia hora depois do desembarque talvez, ouvi pelo rádio o comandante Calvão dar ordem de retirada, com a indicação de abandonarmos as posições em terra.

A missão do meu grupo tinha sido abortada. O grupo do capitão João Bacar tinha acabado de chegar ao porto e ficámos ali, a aguardar a chegada dos restantes grupos. Momentos depois, chegou o grupo do Jamanca, que vinha completo e que não tinha conseguido localizar a emissora. Agora, restava-nos esperar o Talabio Djaló e os seus homens. Este grupo trazia-nos preocupações porque, desde que desembarcou, não deu qualquer sinal, nem chamou nem respondeu aos nossos contactos rádio. Não sabíamos o que era feito dele e do grupo. Até ao momento, era o único grupo com o qual não tínhamos tido qualquer notícia.

João Bacar disse que o meu grupo e o dele tinham que manter aquela posição até que todo o pessoal estivesse embarcado.

As duas últimas equipas, nove homens comigo, foram as últimas a embarcar para o bote que nos transportou para a lancha. Quando já estávamos encostados à lancha, preparados para entrar, ouvi o João Bacar dar ordem ao furriel Djalibá Gomes para ir buscar o Talabio, que acabava de informar que estava a chegar ao porto.

O bote, em grande velocidade, regressou ao cais e, passados uns minutos, vimo-lo a regressar, mas só trazia o Djalibá e o motorista do bote.

 Onde está o Talabio?

–  O Talabio não estava no cais. Quem lá estava era o IN    respondeu o Djalibá!

O Talabio nunca mais chamou, a hora marcada para a partida já tinha passado e foi decidido iniciar o regresso à nossa Guiné.

Mais tarde, soube pelo Francisco Gomes Nanque, um soldado da minha equipa que tinha ido na missão do furriel Talabio, o que tinha acontecido.

Depois de desembarcar, o grupo do Talabio dirigiu-se para o Palácio, onde se confrontou com a guarda. Da troca de tiros resultou um ferido no grupo, um engenheiro natural da Guiné-Conakry, chamado Bari, que ficou incapacitado de andar. O Talabio deve ter-se preocupado mais com o transporte do ferido do que com o rádio. E, quando chegaram ao porto, no regresso da missão, o Talabio pediu pelo rádio ao João Bacar que os fossem recolher.

Todas as nossas tropas já estavam nas lanchas. Restavam apenas aqueles nove homens. Os gendarmes atacaram com rajadas o bote que se aproximou do cais para os recolher e foi então que deram com os homens do Talabio. Do grupo só escaparam dois, o Francisco Nanque e o soldado Mário Dias, que conseguiram sair do local a nado.

O Francisco foi recolhido por um navio holandês mas como ninguém o percebia levaram-no para a próxima escala, na Libéria. Como ninguém se percebia, chamaram um cubano para servir de intérprete. Francisco disse que era soldado português e que tinha feito parte das tropas que tinham atacado algumas instalações em Conacri.

A Libéria não tinha relações com o nosso país, mas também não via Portugal como um grande inimigo. Enquanto mantinham o Francisco detido, num regime pouco rigoroso, fizeram seguir para Lisboa, a informação de que tinham em seu poder um soldado português, chamado Francisco Gomes Nanque, que afirmava ter participado no ataque a Conacri. Segundo o Nanque, não demorou muitos dias a resposta de Portugal, que lhe foi dada a conhecer pelas autoridades liberianas: que o Nanque tinha sido soldado, de facto, mas já tinha passado à disponibilidade e que se dizia que tinha participado na agressão a Conakry o devia ter feito por razões materiais e que o Estado português não tinha nada com isso.

 
   Eu sou militar português!  insistia o Francisco Nanque.

Dias depois, perguntaram-lhe se tinha coragem para ser entregue na Embaixada de Portugal, na África do Sul. Com roupas novas que lhe deram, embarcou acompanhado de dois polícias liberianos. Entretanto, Sékou Touré já tinha reclamado várias vezes ao Presidente da Libéria que o soldado lhe devia ser entregue.

Chegado ao aeroporto de uma cidade sul-africana, que o Nanque não recorda o nome, foi levado pela polícia ao encontro de um cônsul português que se encontrava, por acaso, no aeroporto. Muito surpreendido, o cônsul afirmou que o embaixador português na África do Sul se encontrava em Lisboa. Depois de várias peripécias, os polícias liberianos que o acompanhavam não viram outra saída senão voltarem para a Libéria. Apanharam um avião que fazia escala em Londres. No controle dos passageiros, autoridades da fronteira inglesa, inteiradas do assunto, sugeriram que se contactasse a embaixada portuguesa em Londres.

Ao corrente da história, o embaixador prontificou-se a falar com o Francisco. Sempre acompanhado pelos dois polícias da Libéria foi transportado às instalações da embaixada de Portugal, onde foi recebido pelo embaixador. Depois das identificações, o embaixador acedeu em ficar com o Francisco Nanque e, na frente da polícia, deu ordens para o encerrarem numa sala, fechada à chave. Mal os polícias saíram, o Francisco ouviu o rodar das chaves e recebeu um abraço sorridente do responsável pela embaixada.

No mesmo dia, o embaixador enviou uma mensagem para Lisboa e, no dia seguinte, o Francisco desembarcou no aeroporto da Portela, onde estava uma viatura militar que o transportou para o QG. Um dia de interrogatórios depois, levaram-no para o Depósito Geral de Adidos, com a ordem de não lhe permitirem qualquer saída. O comandante Calvão foi informado do caso e encontrou o Francisco no DGA. Que não podia estar preso quem tinha entrado numa operação para libertar os nossos prisioneiros de Conacri. Albergou-o em casa, durante cerca de quinze dias, e levou-o a conhecer Lisboa e os arredores. Depois, reencontrei o Francisco Gomes Nanque, em Brá, que me contou esta história.

Soube-se também que o Mário Dias foi a nadar até uma pequena ilha onde foi recolhido por pescadores. Pouco se soube da odisseia dele, apenas que, cerca de três dias depois de ter sido encontrado, foi entregue às autoridades de Conakry.

Voltando ao regresso de Conakry. Era um domingo, por volta das 07h00, havia nevoeiro, e continuámos a navegar durante aquele dia e a noite seguinte, até que chegámos à Ilha de Soga.

Os fuzileiros e o pessoal da Frente de Libertação da República da Guiné-Conari regressaram aos seus locais e, a nós, mandaram-nos desembarcar na Ilha de Soga [14].

 Agora estamos em Soga, a fazer o quê? Sem transporte, porquê? O que é que estamos a fazer aqui, neste local?

Alguns de nós ouviram as declarações do tenente Januário à rádio Conacri. Que pertencia aos Comandos Africanos. E quando lhe perguntaram onde estavam sediados, o tenente disse que o quartel era em Fá Mandinga.

   Fá Mandinga, onde é?

   Perto de Bambadinca     respondeu.

 Pensámos que, talvez, as razões da nossa prolongada estadia em Soga se pudessem prender com as declarações do Januário.

A paisagem não mudava. E neste intervalo de tempo, num dia [15], tivemos uma fatalidade. Alguns companheiros nossos estavam a tentar arranjar peixe. Um deles lançou uma granada ofensiva para a água, na altura em que, sem saber, o soldado Caetano Gomes estava mergulhado. Morreu.

Nós íamos passando o tempo da forma como podíamos, falando uns com os outros, trocando impressões sobre as missões.

O grupo do Jamanca não conseguiu chegar à emissora de Conacri, que era uma acção muito importante. Segundo o Jamanca, tinha ocorrido um erro fatal para a missão. O indivíduo, natural da Guiné-Conacri, que ia levar o grupo à vivenda da emissora, já não ia a Conacri há alguns anos. Ele sabia onde era a vivenda da emissora, mas quando lá chegou com o grupo a vivenda não estava lá. No lugar da vivenda estava um edifício com vários pisos e ficaram sem saber onde ficava a emissora.


(iii) É o meu filho, Amadu!

As preocupações tinham passado para nós, os que estávamos em Soga. Escrevemos cartas para as famílias, metemos as cartas numa caixa de correio e, três dias depois, veio um heli que as levou todas. Estávamos contentes, nada nos tinha acontecido e as nossas famílias em breve iam receber notícias nossas. Aproximava-se a Festa do Ramadão, que estávamos habituados a respeitar e a passá-la fora do quartel. Passámo-lo em Soga, com o régulo Sambel Coio a dirigir as orações.

Mais ou menos 15 dias depois chegou uma lancha para nos levar para Fá Mandinga. A viagem iniciou-se à meia-noite e qualquer coisa e quando chegámos ao Xime era quase meio-dia, sempre a navegar. Uma grande coluna de viaturas estava à nossa espera.

No cais do Xime, a companhia de europeus [16], que estava lá aquartelada, estava à nossa espera no cais, com máquinas a tirarem-nos fotos. Depois prosseguimos o nosso trajecto, em coluna até Fá Mandinga. Pessoas das tabancas, mulheres, crianças, homens de todas as idades, vieram para as bermas da estrada saudar o nosso regresso. Fomos passando de tabanca em tabanca até Fá Mandinga. Quando finalmente chegámos, o capitão João Bacar Jaló disse-me:

 – Amadau, vai para Bafatá e diz às nossas famílias que preparem um bom jantar.

Logo que pude, apanhei lugar num carro civil que acompanhou a coluna e fui, feliz, em direcção à minha cidade. O carro parou à porta da minha casa, eram mais ou menos 15h00 daquela tarde, um sobrinho meu estava na varanda da frente, a brincar. Ouvi-o chamar pela minha mãe, a dizer que o tio já estava ali. A minha mãe não acreditava, que não podia ser, que aquele carro era civil, que eu nunca vinha em carro civil.

Quando saltei da viatura, perguntei ao meu sobrinho pela minha mãe. Ela ouviu, gritou alto, é o meu filho Amadu! Veio a correr, encontrámo-nos no meio do corredor, com um grande abraço e eu voltei a sentir o coração dela a bater com força.

Ela estava muito fraca, agarrei-lhe na mão e levei-a para o quintal. Depois, a minha irmã contou que ela estava muito fraca porque não comia quase nada desde a minha despedida. Dizia que o seu filho comprou o peixe, escolheu o prato e não comeu.

Naquele momento, não pude deixar de pensar no erro que tinha cometido naquela 2ª feira, quando comprei uma cabeça de bicuda e lhe pedi para fazer a caldeirada. Infelizmente, antes da comida ficar pronta, vieram procurar-me, estava eu no mercado. Um soldado tinha-me pedido para vir cá fora falar, num sítio mais sossegado. Foi nessa altura que soube da ordem que tinha vindo de Bissau, a mandar recolher toda a tropa de Comandos para uma reunião. Quando cheguei a casa, mudei de roupa, preparei a minha bagagem e despedi-me da família. A minha mãe ainda me disse para esperar pelo almoço e eu, infelizmente, respondi que não tinha tempo.

Esta resposta feriu a minha mãe profundamente, no fundo do coração. E a minha irmã estava ali a dizer-me que, a partir daquela tarde a minha mãe quase não comia, porque não tinha vontade.

Uma surpresa tive eu e os meus companheiros, que tínhamos estado em Soga, e que tínhamos escrito cartas para os nossos familiares. Quando regressámos ao nosso quartel, dias depois, essas cartas que nós tínhamos escrito foram-nos entregues abertas. Soube depois, que as cartas tinham sido remetidas para o Comando-Chefe, abertas e lidas e só depois, reenviadas para Fá.

________


Notas do autor Amadu Djaló e/ou od editor Virgínio Briote

[1] Nota do editor: sede da CArt 2715.

[2] Nota do editor: 11 Novembro 1970.

[3] Nota do editor: Grupo “Hotel”.

[4] Nota do editor: “Índia”.

[5] Nota do editor: do “Front de Libération National Guinéen”, constituído em março d e  1969 por refugiados guinéus na Costa do Marfim, Senegal e Gâmbia.

[6] Nota do editor: “Óscar”.

[7] Nota do editor: Sambel Coio Baldé, ex-régulo de Sancorlá, tinha sido libertado do Tarrafal.

[8] Nota do editor: 12 de novembro de 1970.

[9] Nota do editor: ao princípio da tarde de 20 de novembro de 1970, o general Spínola, após ter visitado Mansambo e a tabanca de Gandamã, deslocou-se para o ilhéu de Soga.

[10] Nota do editor: 20 de novembro de 1970.

[11] Vegetação rasteira que bordeja a costa.

[12] Nota do editor: da LDG Bombarda.

[13] Nota do editor: os prisioneiros portugueses, 26, foram libertados por volta das 04h00 da manhã por um grupo de 30 fuzileiros, comandado pelo 1º tenente Cunha e Silva e transportados para a LFG Dragão.

[14] Nota do editor: às 16h25,  de 2ª feira, 23 novembro 1970, os navios fundearam ao largo do ilhéu de Soga, após o que todos os militares portugueses desembarcaram.

[15] Nota do editor: 25 de novembro  de 1970.

[16] Nota do editor: CArt 2715

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos / Parênteses retos com notas / Subtítulos: LG]
____________

Nota do editor:

Último poste da série > 19 de novembro de 2022 > Guiné 61/74 - P23796: Recordando o Amadu Bailo Djaló (Bafatá, 1940 - Lisboa, 2015), um luso-guineense com duas pátrias amadas, um valoroso combatente, um homem sábio, um bom muçulmano - Parte IX: "Amadu, que vamos fazer ao puto ?"... "Meu alferes, vou levá-lo para Bafatá, a minha irmã cuidará dele!"... A história do puto, "turra", Malan Nanque, que o Amadu salvou e adotou como sobrinho...

Guiné 61/74 - P23803: A galeria dos meus heróis (48): Adeus e até à próstata! (Luís Graça)


Lourinhã > Grafito > 24 out 2020 > Uma quadra de Fernando Pessoa, num parede de um prédio devoluto já entretanto demolido 

Foto: © Luís Graça (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].

 

A galeria dos meus heróis > 

Adeus e até à próstata!

por Luís Graça  (*)


1. Encontrámo-nos na cafetaria do jardim da Gulbenkian, em Lisboa. Recordo-me de nos termos cruzado, por mero acaso, numa exposição sobre o cérebro humano. Acabámos por ver o resto, juntos, e no fim fomos beber um bica e dar os dois dedos de conversa da treta. Era sábado e estávamos livres. Já não via o meu amigo psicólogo há uns largos tempos.

No passado, tínhamos estado ligados a projetos de intervenção e investigação  no domínio da promoção da saúde no local de trabalho, desempenhando ele as funções de assessor para a área da saúde mental. Além disso, era especialista em perturbação do stress pós-traumático  (PSPT), provocado por situações-limite como a guerra, os acidentes, as agressões, os assaltos, e outras formas de violência, mas também a experiência de doença, e nomeadamente da doença oncológica.

Éramos amigos de longa data, sem sermos propriamente íntimos. Ele tinha feito a licenciatura em psicologia no ISPA – Instituto Superior de Psicologia Aplicada. E a tropa nos serviços psicotécnicos do exército.  Doutorou-se depois,  em Lovaina, na Bélgica. Tivera mais sorte do que eu, que não escapei à “guerra do ultramar”, como então se dizia: interrompera-me os estudos e,   depois da “peluda”,  foram mais quatro anos a ganhar ânimo para entrar na calha e continuar a estudar… A trabalhar  e a estudar.

Havia, no entanto, uma “pedrinha no sapato” entre nós. Eu embirrava com a expressão stress pós-traumático  de guerra e, talvez inconscientemente,  dava ouvidos ao coro dos “durães”, os antigos militares das tropas especiais para quem isso era “doença dos cobardes” (as duas expressões, ditas em tom sarcástico,  eram do meu amigo que, por sua vez, achava que eu também ainda sofria de traumas de guerra).

Houve uma altura em que o tema da guerra era recorrente nas conversas entre nós. O que me irritava de sobremaneira.  Mas a mim, desta vez, não me apetecia nada voltar a falar da tropa e  da guerra e, no fundo,  a ter de assumir que durante alguns anos não conseguira ser dono do meu destino. De facto, uns puderam continuar a estudar, sem sair do país, outros, mais afortunados,  demandaram portos de abrigo lá fora. E eu conhecia alguns,  faltosos e refractários, que se piraram antes que a tropa lhes pusesse a mão em cima, e sobre quem tinha sentimentos ambivalentes.

−E tu, meu estúpido, perdeste a guerra e anos de vida! – atenazava-me , uma e outra vez,  o meu amigo da onça, sempre que se falava do tema, em tom paternalista e algo diletante. (Afinal, o que sabia ele da experiência pessoal da guerra ?).

Desta vez, e para variar, estávamos ambos a falar dos “casos” e dos “ocasos” da vida.. Eu tratava-o por “Psi” (de psicólogo). E ele retribuía-me  com outro diminuitivo, o “Soc” (de sociólogo). E veio então à baila a notícia, que eu acabara de receber, uns dias antes, da morte de um conhecido meu, de quem, de resto, não guardava as melhores recordações, mas de quem sentia pena, sem saber por quê. Tinha sido doente do IPO, tal como eu.

− Alguém que eu possa ter conhecido ? – indagou o meu amigo “Psi”.

− Não me parece… Mas até é possível, julgo que ainda era do teu tempo, ou seja, do tempo em que tu lá andaste, com as tuas meninas, a entrevistar doentes pré-terminais. Ele foi visita frequente do IPO, andou por lá em tratamento em diferentes períodos. Quase diria que já fazia parte da mobília…

E adiantei:

− Claro que não te vou dizer o nome, mas tu, como “Psi”, eras capaz de gostar de ter conhecido a personagem.

− Alguém, um bocado bronco, que fazia gala de dizer às "meninas", às médicas,  às enfermeiras e às radioterapeutas  que “tinha sido pegador de touros e ainda gostava de montar” (a cavalo) ?!...

− É capaz de ser o mesmo, talvez o tenhas apanhado no início, na  primeira fase do tratamento, eu só o conheci mais tarde. Era uma figura patética, para o fim da vida. Mas era popular no IPO, e cirandou por lá uns anos. Foi bravo na morte, tenho que o reconhecer.

− É capaz de ter ficado fora no nosso estudo, na altura ele não reunia os requisitos, um deles era ser doente oncológico em cuidados paliativos… Mas julgo que ainda cheguei a falar com ele… Achei-o, além de um triste marialva, um bocado exibicionista e histriónico, se queres que te diga… Mas não sei se  estamos a falar da mesma pessoa…

− Nessa altura, ele devia estar muito longe de saber que ia morrer… Bem pelo contrário. E tinha-se voluntariado para um ensaio clínico, também não sei se chegou a ser aceite… Descobri que tínhamos, afinal, em comum alguns conhecidos, um deles da terra dele,  mas o que nos aproximou foi, de facto, o IPO, que frequentámos juntos durante algum tempo. Vimo-nos ainda diversas vezes. E ele acabou por me confiar umas fotocópias de um caderno com as suas memórias. Ainda eram umas largas dezenas de páginas, talvez perto da centena.  Pediu-me um “parecer”. Achava que eu tinha pinta de crítico literário. No fundo, confiou em mim, não sei por quê, nunca lhe disse o que fazia… Queria saber se valeria a pena publicar a sua “história de vida”, em livro, e “ainda em tempo útil” (sic), à medida que o tratamento não parecia estar a resultar… Tinha um tique: olhava para o relógio como se estivesse a cronometrar o tempo de vida que lhe restava… Os direitos de autor seriam entregues à Liga dos Amigos do IPO, instituição onde tinha sido “tratado por anjos” (sic).


2. E aqui o meu amigo psicólogo, com nome na praça, e que me fazia companhia, não sei se a contragosto (eu achava que sim, que ele dessa vez, num sábado soalheiro, estava mesmo a fazer um frete), não conseguiu deixar de arregalar o “olho clínico” e de passar a mostrar maior interesse na conversa, disparando-me logo uma pergunta algo sarcástica:

−Está bem, mas diz-me então, tu que leste o manuscrito com a sua história de vida: o teu conhecido encaixava-se em que tipo da fauna humana ?

Quis responder-lhe no mesmo tom de chalaça e non-sense:

−Não sou bom em zoologia e muito menos em taxinomia… mas podes pô-lo na gaveta do caceteiro, do energúmeno, do vilão, do “mau da fita”, do “lobo mau” da história do Capuchinho Vermelho… Isto por alguns histórias que sei dele...Podia ter sido marialva e pegador de touros, um valentaço, e ser um gajo minimamente decente, com valores, com ética, com bom senso…

−Também não gosto de catalogar ninguém às primeiras impressões… Mas arriscava-me a dizer que o teu conhecido não passava de um reles predador…

− Predador ?!...

− Sim, como a hiena… Tu que andaste pela Guiné, sabes que lá chamam “lobo”, em crioulo, à hiena. O que  eu acho que é uma ofensa para o lobo, para mim um animal nobre e altamente social…

− A hiena também o é, um animal social, é extremamente eficaz a caçar em grupo, como o lobo em alcateia… Mas não sei se o epíteto é bem aplicado ao nosso conhecido…Podia contar-te histórias do pequeno cacique, capacho dos agrários, ricos e poderosos, capanga, como dizem os brasileiros…

− É sempre interessante, não ?!, conhecer estes exemplares, e estudá-los, pelo menos em laboratório… Não os gosto de encontrar na vida real….Mas tu e eu temos que saber lidar com toda a fauna humana, todo o “bicho-careta” que nos pede ajuda…

− Tu, sim – respondi eu −, que fazes clínica, és psicoterapeuta, ouves no divã, tal como o padre no confessionário, muitas histórias, boas e más, alegres e tristes, cómicas e trágicas… Eu limito-me  a contar ou a inventar algumas, das poucas que me chegam aos ouvidos…


3. Descrevi então ao meu amigo “Psi” quem era essa tal “hiena” da minha pequena história… Oriundo da pequena burguesia rural da província, ali do Médio Tejo, na fronteira entre a Estremadura e o Ribatejo, era o que se podia chamar uma figura recorrente da pequena história da nossa História, com H grande. Sobretudo dos períodos mais conturbados como o foram a “aventura dos Descobrimentos”, as guerras, as invasões (com destaque para as napoleónicas), as revoluções, enfim, todos os períodos de convulsão social, a guerra civil, como a dos tempos do Liberalismo, da República ou dos anos 20/30 que levaram à ascensão da Ditadura Militar e depois ao Estado Novo… Mas também, mais recentemente, a guerra colonial, o fim do salazarismo e do marcelismo, o 25 de Abril, o Verão Quente de 75…

Nos anos 50 o nosso homem tivera a sorte de poder fazer mais do que a quarta classe do ensino primário. Abrira um colégio privado lá na terra (uma vilória na margem direita do rio Tejo), o pai "pô-lo a estudar",  como então se dizia. Deve ter feito o 2º ano,  no máximo. Revelou-se desde cedo um arruaceiro, envolvendo-se “à porrada” com alunos e professores.  Claro, foi expulso, e de algum modo fazia gala disso. É ele próprio que o conta nas suas memórias.

Na época mandavam-se estes casos para o Colégio Nuno Álvares, ali perto, em Tomar. O pai lá fez o sacrifício, na secreta esperança de o corrigir e de “fazer dele um homem”… Deve ter vendido mais umas jeiras de terra da herança da mulher (que essa, sim, é que tinha algo de seu, com restos de família fidalga em Alenquer). O gosto por touros e cavalos  deve ter vindo desses tempos. Mas eu sei pouco do seu passado, baseio-me no que ele contou, no seu manuscrito, ou numa ou noutra conversa avulsa. E algumas confidências enojaram-me, como as suas alegadas "conquistas amorosas".

Ofereceu-se para a Força Aérea, andou por lá os seis anos da praxe, como “mecânico de aviões” (sic). Se bem percebi passou por Cabo Verde e Angola. Aprendeu uns truques de boxe. Passou a confiar na sua estrelinha da sorte e nos seus punhos. Mas foi o fator C que lhe abriu as portas de um emprego civil,  com ordenado certo ao fim do mês, quando regressou de Angola em 1962. O veterinário municipal da terra, que era um cacique a União Nacional, deu-lhe uma mãozinha... 

Passou a vender produtos zoofitossanitários e veterinários, percorrendo boa parte da Estremadura e do Ribatejo. Habituou-se à vida de “caixeiro-viajante”, e à liberdade que isso lhe proporcionava, ficando semanas inteiras fora de casa. Não sei se chegou a ter duas famílias em dois sítios diferentes, mas tinha os seus “arranjinhos por fora” (sic) ao longo do caminho de casa…

− Bem, daí a sociopata vai uma distância…

− Também nunca disse que ele fosse um sociopata, nem sei se ele, em vida, chegou a ter problemas com a justiça… Mas teria alguns traços do sociopata, no mínimo era um homem violento. E, na verdade, não nutria sentimentos de compaixão pelos outros. Contou-me (mas não deixou isso escrito) que atropelara mortalmente um “pobre diabo”, na Estrada Nacional nº 1, na reta da Benedita, de noite. Numa noite de temporal. "Sem culpa"...,  mas nem sequer parou, para prestar socorro à vítima.  “Ia a mais de 150 km à hora, quando lhe apareceu um vulto, curvado,  a sair da berma da estrada”… Bateu-lhe de lado… Confirmou a notícia da morte pelos jornais,  no dia seguinte: “Uma chatice, mas devia ser um bêbado de fim-de-semana”, acrescentou ele, com o maior dos desplantes… e sentindo-se impune. A polícia nunca chegou a descobrir o autor do atropelamento mortal e o caso foi arquivado.

E aqui o meu amigo “Psi”, que na juventude andara pelas “águas turvas de um grupúsculo maoista” (a expressão era dele), ironizou:

− Não é caso virgem. Temos gente (e muito respeitável)  que faz (ou faria) o mesmo, a coberto da impunidade. Ainda bem que a humanidade, a corja humana, não veste toda por igual, como na Coreia do Norte , ainda hoje, ou na China do tempo do “Grande Timoneiro”, meu ídolo de juventude.

− Nem come só arroz chau-chau ou hambúrgueres!

− Às vezes, “Soc”, pergunto-me como é que um gajo, quando é novo, pode ser tão cretino!…

− Para o bem e o mal, a  fauna humana é diversa e multicolorida… E adaptativa. Imagina o  que seria um mundo de presas sem predadores ?... Ou só predadores: comiam-se uns aos outros… Mas, quanto às igrejas, deixa lá – contemporizei eu – muito boa gente sofreu do mesmo mal, antes e depois do 25 de Abril…

−Estou de acordo contigo… O comunismo enquanto utopia foi a doença infantil da nossa geração, nascida no pós-guerra, filha bastarda do Salazar e do Cerejeira…

−… e que terá preenchido o vazio ideológico deixado pela crise do catolicismo. No fundo, saíste de uma igreja para te enfiares noutra… Dizem que houve muitas conversões na manhã do dia 26 de Abril… Tu e eu conhecemos algumas…

O “Psi” não gostou da minha insinuação, relativa ao seu passado. E procurou desconversar:

− Mas voltando ao teu, afinal nosso, conhecido… Parece-me ter sido um gajo que não cresceu, ou não quis crescer… Mas eu diria que não há rapazes maus… Os “teddy boys” do nosso tempo, lembras-te ? Carros, gajas, bandos, música ié-ié…

− Sempre os houve e haverá, bandidos e aprendizes de bandidos que tanto sabem usar os punhos, como engatar, com um sorriso sedutor, a menina do coro e, logo a seguir, ajudar a velhinha a atravessar a rua…

− Estou a ver… Na província, isso ainda é (ou era) notório, tal como nos filmes do velho Faroeste…

− Quanto ao nosso fulano, perguntas… Pelo que li nas fotocópias do seu manuscrito, era um anticomunista primário ou, se calhar, nem era nada. Gabava-se de ter “partido o focinho a alguns comunas, em Rio Maior” e noutras “arenas de combate patriótico”  (sic) onde atuou no Verão Quente de 75. (De vez em quando, eu apanhava, no seu discurso,  alguns restos da sua tosca formação político-ideológica.) E depois, durante a campanha eleitoral de Ramalho Eanes, em 1976, diz que chegou a andar com ele aos ombros… Coitado do Eanes!... O que nunca apurei (nem quis, sabendo-o já bastante doente) foi a sua eventual participação nas redes bombistas que atuaram em 1975, pondo parte do país a ferro e fogo… 

E ainda acrescentei:

− No seu diário faltavam duas ou três folhas, justamente as dessa época. E eu nunca o inquiri sobre isso, achava que não tinha esse direito, para mais numa situação em que  a sua saúde se estava a degradar a olhos vistos... Mas não me parece que tenha sido um operacional de coisa alguma, quando muito um "peão de brega", gostava isso sim de “molhar a sopa”, como terá acontecido algumas vezes ao longo do Verão Quente de 75, nas terras onde havia "caça aos comunas" e que faziam parte do seu roteiro de "caixeiro-viajante".


4. Com um sorriso amarelo, contou-me, da última vez que o vi (e que na prática foi uma despedida), que fora a própria médica do IPO quem lhe passou a “certidão de óbito antecipada”:

−Senhor Jota Jota (alcunha fictícia)…, sabe que eu nunca fui de paninhos quentes… O médico tem de dizer a verdade ao doente… No seu caso chegámos ao fim de linha. A medicação, que tomou e que é inovadora, deu-lhe muitos meses de vida… Será uma esperança para futuros doentes com tumores como os seus… A si, deu-lhe mais qualidade de vida, mas não vale a pena continuarmos… Seria causar-lhe falsas ilusões e mais sofrimento. Tem metástases espalhadas por várias partes do corpo, e tudo começou na próstata… Agora a bexiga e o pâncreas… Bem, vamos ter que o passar para os cuidados paliativos. Não quero que sofra. Vou-lhe recomendar também a consulta de psicoterapia. Boa sorte e coragem.

A verdade é que o Jota Jota  apagou-se uns dois ou três ou meses  depois, pelo que eu  vim a saber mais tarde. Esteve numa unidade cuidados continuados, com muita morfina em cima daquele corpo…

Mas, muito antes já lhe tinha devolvido, pelo correio, o seu manuscrito com uma nota, elegante, cortês, até simpática, mas cínica: “Meu caro J… Escrever não é fácil. E menos ainda quando, no fim da viagem (ou da picada, você esteve em Angola, sabe do que falo), um gajo, como nós, olha para trás e põe-se a rebobinar o filme da p… da vida…”

Ele escrevia mal ecom erros de ortografia, mas eu não tinha coragem de dizer-lhe isso diretamente na cara… Como dizer isto, afinal,  a um homem que, pela conversa da sua médica,  ia entrar, dentro de pouco tempo, no terminal da morte, mesmo sabendo que ele era um narcisista ?!… 

Não o desencorajei, acabei por criar-lhe falsas esperanças: que a escrita precisava de ser melhorada, a pontuação, a ortografia, a ligação entre as partes, o fio cronológico, havia parágrafos a acrescentar, outros a cortar ou melhorar, que havia saltos bruscos, "brancas", lapsos de memória, erros factuais...  Enfim, havia que acautelar a privacidade de certas pessoas que, não sendo figuras públicas, eram citadas… 

E depois conviria saber se a Liga dos Amigos do IPO daria o seu aval à iniciativa, por muito boa que fosse a intenção do autor… E era preciso, não menos importante. encontrar um editor… E ainda restava saber qual seria a aceitação do livro, o volume de vendas, o montante dos direitos de autor… Enfim, uma trabalheira. (Eu fazia questão de o tratar por você, para manter um certo distanciamento afetivo, ele era,  de resto,  mais velho do que eu.)

Claro, nunca me chegou a responder. Não teria já ânimo para pensar no projeto, um pouco megalómano e mitómano,  do livro. Teve, até ao fim da vida, uma boa companheira,  creio que de origem cabo-verdiana… Mais do que companheira, enfermeira. Nunca a conheci, a não ser de fotografia:  teria idade para ser filha dele.

Embora tendo casado muito jovem, e com filhos, mas cedo  divorciado, o Jota Jota  era um “engatão compulsivo”. De estatura média, entroncado,  casaco de couro (a lembrar o dos seus tempos da Força Aérea), arranjaria mais tarde uma “pileca” para lisonjear o seu ego e completar a sua auto-imagem de marialva de pacotilha. Gostava de dar a sua “volta  ao redondel”, que era o largo da feira lá do sítio onde morava…  quando ainda tinha forças para tal… Mas nos últimos meses a sua decadência física foi galopante, disse-me um seu conterrâneo,  meu conhecido..

Às tantas tive pena daquele meu companheiro de infortúnio, mesmo sabendo que a sua vida tinha sido um caso de “pulhice humana”, e que tinha feito mal a muita gente, acomeçar por jovens mulheres que ele seduzira,  e que era incapaz de autocrítica e arrependimento…

− Não gosto de bater nos mortos, nem mesmo daqueles que foram em vida, grandessíssimos filhos da mãe…

E acrescentei, retomando a conversa com o "Psi":

− O Jota Jota, à sua escala, reles, desprezível, terá sido um deles… Grande ou pequeno, para mim é um filho da mãe...

− Tal como os esbirros e os lacaios da Santa Inquisição, da PIDE, do Pombal, do Salazar… – complementou o meu amigo “Psi”.

− Eh!, pá, não falo das figuras históricas, deixá-las lá dormir o sono eterno no Panteão Nacional dos Figurões, esse ridículo  ossário das nossas pretensas memórias coletivas… Até por que os portugueses não conhecem a sua própria história…

− Os outros povos também não – respondeu o “Psi” −, sou capaz de concordar contigo, não há céu nem inferno, apenas limbo para aqueles que, no seu tempo, foram grandes, poderosos ou famosos…

− “Aqueles que por obras valorosas se vão da lei da morte libertando!”… Vê o pobre diabo do Camões… Quem o lê hoje ?

− Lemo-lo nós, no nosso tempo, por obrigação, nunca por devoção ou paixão… − ironizou o “Psi”.

− Para mais agora que perdemos o Império (ou a sua ilusão, nunca tivemos dimensão para ser uma nação imperial e imperialista).

− Algumas dessas figuras, a quem chamamos herois,  deram-nos bastos motivos para os continuarmos a odiar, mesmo depois da morte…

− Sim, há homens (e mulheres)  a quem a História não perdoará, a menos que se continue a falsificar a História…

O tema era caro ao “Psi”, que me adiantou:

− Haverá sempre gente pronta a acreditar… e a mentir. Mas felizmente que a História, enquanto ciência, não é do domínio da fé e da propaganda.

E aqui ele foi taxativo;

− Sim, está por fazer a lista dos mais famosos mortos execráveis  de cada país… Mas a nossa História ainda é um ninho de mentiras...

E eu abanei a cabeça, em sinal de concordância, acrescentando que, no dito país dos brandos costumes, não chegaríamos  hoje a um consenso sobre esse macabro “Top Ten”.

− E depois há o “enviesamento ideológico”, como tu, ”Soc”,  gostas de lembrar…  Vê como a historiografia trata os vencidos e os vencedores… Vê o caso dos irmãos, Dom Pedro e Dom Miguel…

− Ou dos pais, o Dom João VI e a espanhola, a Dona Carlota Joaquina, takvez uma das nossas rainhas mais odiadas da nossa História… Mas voltamos ao nosso Jota Jota…, que decerto não ficará na nossa História com H grande…


5. O mais patético foi vê-lo, poucos meses antes de morrer, contar-me, sentado num dos bancos do pequeno espaço ajardinado que existe no IPO, frente ao edifício principal, que aquela devia ser a sua “última visita à Santa Casa” (sic), como ele lhe chamava, ao hospital.

Aguardava  pela ambulância que o devia levar a casa, uns cento e poucos quilómetros a norte de Lisboa.  Fazíamos horas,  eu ia adiando o clique de telemóvel para a minha boleia,  talvez por não querer perder o final daquela história de um homem a lutar contra a morte. Pergunto-me hoje se não fiquei ali apenas por caridade (a palavra repugna-me), ou por compaixão… Ou por simples curiosidade mórbida...Mas ao mesmo tempo eu não queria desmerecer a tão inesperada quanto surpreendente confiança que ele depositara em mim, que só me conhecia do IPO…

Já antes me confirmara que se sentia um “doente milionário” (sic)… Provavelmente queria dizer “privilegiado”. Mas fez questão de esclarecer:

− VIP!... Um doente VIP!...

Nunca tinha ouvido uma tal expressão, algo surrealista e de todo deslocada num sítio daqueles, onde se sofria e morria todos os dias...

− VIP ? – interpelei eu, para logo a seguir acrescentar:

− Mas é um direito, que o meu amigo tem, o direito à saúde,  consagrado na Constituição…

Não sei se ele entendeu a minha observação, tanto mais que ele não deveria ser, pelo que eu deduzia, um fervoroso apoiante do SNS, o Serviço Nacional de Saúde… Mas logo percebi onde queria chegar:  de facto, e pelas suas contas de “caixeiro-viajante”, os gastos do IPO, “só com a sua humilde pessoa” (sic) , já ascenderiam a cerca de 200 mil euros (sem me explicar como teria apurado esse valor).

− Dava para comprar um bom apartamento em Lisboa – asseverava ele.

− Sim, talvez há uns largos anos atrás… − atalhei eu. – Agora Lisboa é fogo, o metro quadrado já ultrapassa os 3 mil euros…

Com algum humor negro, a que se juntavam uns restos esfarrapados da sua proverbial gabarolice,  garantia-me que a “menina da farmácia” (sic)  já brincava com ele, quando lá ia levantar a sua medicação:

  Senhor Jota Jota, por este andar vai levar o IPO à falência.

E seguia-se a justificação:

− A gente gasta  um milhão e meio de euros por semana só em medicamentos. O senhor leva a parte de leão…

E ele ria-se, não era bem riso, era uma estranha mistura do riso alarve do marialva fanfarrão e do sorriso triste, amarelo, forçado, do palhaço.  Ao mesmo tempo, provocava-me compaixão e irritação. Ele era daquele tipo de doentes para quem o “consumo sumptuário” de cuidados médicos (consultas, exames, fármacos, aparelhos…, "quanto mais caros melhores!"), era uma forma de “status” social… Era um traço distintivo… dos ricos com que ele se gabava de ter privado, "nos bons velhos tempos"....Ele sorria porque se sentia de algum modo lisonjeado com as palavras da “menina da farmácia”… Afinal, estava no “quadro de honra dos doentes despesistas” (sic). Havia nele um estranho prazer, quase sadomasoquista,  por estar a gastar, com a sua doença, tanto dinheiro ao Estado.

Duvido que a farmacêutica (ou mais provavelmente a técnica de farmácia que estava de serviço), em geral tão circunspecta e distante, fechada na sua “redoma de vidro” (colocada por causa da Covid-19), lhe tenha dito, textualmente, essas palavras, e muito menos falado nos milhões do orçamento do IPO. É mais provável que tenha sido a sua médica  oncologista  a dar-lhe essa informação, embora muito por alto. Mas eu registei  as suas palavras como tal, no meu caderninho de notas,  com a data desse dia.  

Logo que a ambulância partiu  com o meu companheiro de infortúnio,  tive o pressentimento (para não dizer a certeza) que nunca mais o voltaria a ver. E, confesso, com algum alívio… A sua história acabrunhava-me. Ou, talvez pior, a “sentença de morte” que lhe fora ditada pelos médicos…”Já não havia nada a fazer", conformava-se ele, completando já talvez o seu processo de luto...


6. R
ecordo-me ainda de ele me dizer, ao contar-me a primeira vez que teve de ir a um urologista:

– Sou um maricas, não posso ver sangue! 

Andara a “mijar sangue” (sic), e a levantar-se amiudadas vezes, de noite, para ir à casa de banho. Até pensou que tinha apanhado algum “esquentamento” (sic).

Foi protelando  a ida a um consulta médica, até que uma crise maior, há uns  anos atrás,  o forçou a chamar o 112. Aliás, não foi ele, mas a sua “Bia", o seu "anjo da guarda" (sic)...

A ambulância do INEM  levou-o, de imediato, à urgência do centro hospitalar da sua área de residência. Ele protestou, que tinha um seguro de saúde caríssimo, que queria ser visto num hospital privado, que o público tinha má fama, que ia ficar toda a noite numa maca, aos berros, no corredor, e por aí fora.

− Mas em boa hora lá me  levaram ao sítio certo. Dei de caras, no SO, com um urologista, que não era homem mas mulher, para minha surpresa.  A princípio, confesso, senti-me intimidado  e até humilhado quando ela me mandou despir as calças, e ficar em posição fetal na marquesa…

E justificou-se, como se tivesse perdido a honra:

− Nunca  tinha feito o toque retal, nunca ninguém (e muito menos uma mulher) me tinha posto o dedo no cu… Nem o dedo nem outra merda qualquer!

− Nunca tinha feito sequer uma eco prostática  ? – quis saber eu, evidenciando  algum pudor, delicadeza e cautela na pergunta.

− Nada, nunca precisei, graças a Deus! 

Perante a reação, algo desastrada, do doente, a médica riu-se para aliviar a  tensão, e gracejou:

− Senhor Jota Jota,  porte-se como um homem, já não tem idade para ser criança!... Aqui é apenas um paciente. Mas está no seu direito de recusar o toque retal… Se se portar bem, eu conto-lhe no fim uma história engraçada… Vem a propósito do pudor masculino, e passou-se comigo no início da minha carreira médica…

E,  depois de feito o toque retal, a médica prosseguiu:

− Como viu,  não doeu nada... Ou doeu ?!

− Não, senhora doutora.

E o senhor J... está inteiro, não perdeu nada!… Mas falando de coisas sérias: a próstata está muito inflamada, e mais dura do que seria normal… Vamos já fazer análises clínicas, para ver o valor do PSA (que deve estar alto) ... E muito provavelmente vamos ter que fazer uma biópsia nos próximos dias… Só  lamento o sr Jota Jota não ter vindo mais cedo ao urologista, ou à urologista… Fica aqui mais um dia ou dois, em observação e para fazer a eco, as análises… Depois irá para casa, ficando à espera que o chamem para a biópsia… (Infelizmente, vai ter que a fazer, mas é para melhor esclarecimento do diagnóstico.)

A médica fez depois questão de tranquilizar o doente, continuando a conversa bem humorada que mantivera logo de início:

− Afinal, a urologia é uma especialidade tão masculina ou tão feminina como qualquer outra… No caso de nós, as mulheres médicas urologistas, só não podemos é ter as unhas compridas e pintadas… Ou melhor, não convém…

E finalizando:

− Fique tranquilo… Tudo se há de compor. Hoje, se formos a tempo, ninguém morre de carcinoma da próstata… Esperemos é que não haja mais complicações… O nosso corpo é uma caixinha de surpresas... É preciso saber falar com ele, saber vê-lo e ouvi-lo,  estar atento aos seus sinais... E então agora vou-lhe contar a história que lhe prometi, no caso de se portar bem como aconteceu.

E a história podia resumir-se nestes termos, tal como o Jota Jota ma contou, com graça, pondo-se na pele da médica:

− Como deve imaginar, a urologia foi durante muito tempo uma especialidade médico-cirúrgica exercida por homens… Nos EUA as mulheres começaram mais tarde, nos anos 60… No nosso caso, só mais recentemente. Eu fui a primeira mulher do meu ano,  do meu curso, a escolher esta especialidade como primeira opção… O meu pai, alentejano, caçador, “bon vivant”, bom garfo e melhor copo (faleceu de gota, coitado!), levou-me um dia a uma montaria, uma caçada ao javali.  Era uma espécie de prémio, pelo meu sucesso no exame da especialidade. Eu era a única mulher no meio de tantos caçadores, todos empertigados nas suas fatiotas.  Um mulher de arma em punho, está a ver ?!...  Isto foi no Norte, em Trás-os-Montes, junto à raia espanhola… Desde miúda que eu gostava de acompanhar o meu pai, embora perto de casa, na caça ao coelho, à lebre,  à    perdiz… Quando fui, pela primeira vez, à montaria, os presentes, todos homens, começaram a torcer o nariz à minha presença, alguns tossiam para disfarçar o desconforto, ou puxavam grandes fumaças dos cigarros… E antes que se  avolumasse o mal-estar e se começasse a gerar algum burburinho, o meu pai (que nestas coisas tinha um sexto sentido apurado, a par de muita graça e bonomia, ou não fosse um "chaparro" de gema)  fez-me a presentação ao grupo dos machos lusitanos (também havia alguns espanhóis): “A minha filha, fulana de tal, médica, urologista… Estejam à vontade, meus senhores, podem continuar a mandar as vossas cara...lhadas (acho que foi esse o termo que ele usou), que ela, embora seja uma senhora muito bondosa e fina, está farta de ver piças e cus… Só espero é que os senhores nunca precisem  dos seus serviços, dela ou dos seus colegas”… Fez-se silêncio, por uns largos segundos, até que alguém, de copo na mão,  exclamou, para desanuviar o ambiente: “Seja bem vinda, doutora. Vê-se que é uma mulher de armas!”.

O nosso homem, o Jota Jota,  ficou visivelmente bem disposto e lisonjeado com estes mimos todos, vindos de uma mulher, para mais doutora… E, à despedida, teve este rasgo de bom humor, que deixou a médica encantada e até enternecida:

− Então, adeus, e até à próstata,  senhora doutora!


© Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados

[ Nesta série, " A galeria dos meus heróis", a realidade e a ficção misturam-se. E ainda bem que  temos a literatura, uma forma de arte, que os seres humanos inventaram, e que nos ajuda a suportar melhor a verdade e a mentira, o céu e o inferno, a sordidez e a beleza da vida... LG]

___________

Nota do editor:

(*) Último poste da série > 17 de agosto de  2022 > Guiné 61/74 - P23532: A galeria dos meus heróis (47): O tio Ortiz (1906-1944) (Luís Graça)

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Guiné 61/74 - P23802: In Memoriam (461): Braima Baldé morreu, aos 78 anos, no passado dia 18, foi meu soldado em Cufar, na CCAÇ 1621 e um amigo para a vida(Hugo Moura Ferreira)

 

Tabanca da Linha > Algés > Restaurante Caravela De Ouro > 48º Convívio > 19 de maio de 2022 > O Braima Baldé (1944-2022) e o Hugo Moura Ferreira.


Foto (e legenda): © Manuel Resende (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].


Lisboa > Chelas > Restaurante "Pelicano Dourado" > 1 de dezembro de 2007 > Almoço-convívio  de antigos combatentes da Guiné (de um lado e do outro).   O restaurante "Pelicano Dourado" era então propriedade de Joaquim Djassi  (imfelizmente já falecido em 19/12/2010)  ficava na Zona J de Chelas, em Lisboa. A cozinheira era a esposa do Djassi, a dona Leontina Pontes, natural de Catió.

Da esquerda para a direita: A. Marques Lopes, o António Pimentel, o Xico Allen (falecido esre ano), o Braima Baldé, o Hugo Moura Ferreira. A foto deve ter sido tirada pelo Joaquim Djassi com a máquina do Hugo Moura Ferreira..



Lisboa > Chelas > Restaurante "Pelicano Dourado" > 1 de dezembro de 2007 > Almoço-convívio de antigos combatentes.

Na foto, da esquerda para a direita: António Pimentel, Marques Lopes, Braima Baldé (de pé) e Joaquim Djassi. A foto deve ter sido tirada pelo Xico Allen. Inimigos de ontem, amigos de hoje: o fula Braima Baldé foi ferido em combate em Buba, foi soldado na CCAÇ 763, entretanto substituída pela CCAÇ 1621 onde esteve o Hugo Moura Ferreira... Por sua vez, o biafada Joaquim Djassi foi um guerrilheiro do PAIGC

Foto (e legenda): © Hugo Moura Ferreira  (2007). Todos os direitos reservados.  



Cascais > Carcavelos > Junqueiro > Hotel Riviera > Magnífica Tabanca da Linha > 32º almoço-convívio > 20 de julho de 2017 > Em primeiro plano, o Braima Baldé, seguido do Hugo Moura Ferreira e o Marcelino da Mata (1940-2021)... O Zé Manel Diniz (1948-2021), de pé, em segundo plano. Náo sabemos de quem é a foto. E
m princípio, deve ser atribuída ao Hugo Moura Ferreira, ex-alf mil CCAÇ 1621, Cufar, CCAÇ 6, Bedanda, e 1º Rep/QG/CTIG, Bissau, 1966/68.


1. A triste notícia foi-nos dada pelo o nosso camarada Hugo Moura Ferreira, na sua página do Facebook,  em 18/112022, às 00:01:

Caros Amigos,

Estou triste! Faleceu hoje o meu Amigo, que também fazia parte deste "Magnífico Grupo de Pessoas". [Referência à Magnífica Tabanca da Linha]. O Baima Baldé, que faria 79 anos em Janeiro de 2023. Tenho conhecimento que faleceu em casa, sem sofrimento, na Paz de Deus.(*)

Foi meu soldado em 1966, em Cufar, na CCaç 1621 e mantivemos uma amizade profunda e longa que envolvia as respetivas Famílias.

Deixo-vos 3 fotos de confraternizações, acima reproduzidas

(i) Uma em Chelas, há uns anos, no restaurante "O Pelicano Dourado" (**), do Joaquim Djassi, que já partiu (***), onde alguns de nós fazíamos encontros, com receitas guineenses.

(ii) Outra de um dos nossos convívios em que ainda tínhamos entre nós o José Diniz e o Marcelino da Mata [Achamos que a foto é do 32º almoço-convívio da Tabanca da Linha, realizado em 20 de julho de 2017 no Hotel Riviera, Junqueiro, Carcavelos, Cascais.. O editor LG ];

(iii)  e mais uma do nosso 48º Convívio, no Restaurante Caravela d' Ouro, em Algés

Pode ser que se encontrem no Além e consigam fazer uns Convívios de vez em quando!

2. Comentário do editor LG:

Em nome de toda a Tabanca Grande, apresento os meus sentidos pêsames à família do Braima Baldé e aos seus camaradas e amigos mais íntimos, a começar pelo Hugo Moura Ferreira. 

Embora fosse membro da Tabanca da Linha, o Braima não pertencia formalmente à Tabanca Grande, como a generalidade dos nossos amigos e camaradas guineenses, que vivem na diáspora, e momeadamente em Portugal. 

Há barreiras a vencer, a começar pela tão falada "infoexclusão"...Há barreiras económicas, técnicas, sociais, culturais, linguísticas, que os impedem de participar das nossas iniciativas, dos convívios ao blogue... 

Sabem lidar com o telemóvel, mas têm mais dificuldade em chegar ao nosso blogue. Se calhar, devíamos fazer muito mais por eles...que nem sequer sabemos por onde andam, onde vivem, o que fazem, como vão sobrevivendo. 

Têm  que ser os seus amigos, e antigos camaradas dearmas, como o Hugo Moura Ferreira, a dar-nos notícias deles... Infeliuzmente, esta é muito triste. A da última despedida do Braima Baldé. Fica, em todo o caso, registada no blogue dos amigos e camaradas da Guiné.

Há 3 referências, no nosso blogue, a um outro Braima Baldé, que foi alf mil 'comando', na 1ª CCmds Africanos e depois na CCAÇ 21,  citado pelo Amadu Djaló (aqui n blogue, em depoimento recolhido pelo Virgínio Briote).

O Braima Baldé (1944-2022) será referenciado no nosso blogue como Braima Baldé (II) (descritor). Mas como não teve qualquer interaçao directa connosco,  não tomamos a liberdade de o integrar na Tabanca Grande, a título póstuo, como temos feito nalguns casos. A menos que o Hugo MouraFerreira tenha fotos e histórias do Braima como combatente,  que queira e possa partilhar connosco. De qualquer modo, o Braima não fica na vala comum do esquecimento. 

__________

Guiné 61/74 - P23801: Notas de leitura (1520): "Por Cabral, Sempre - Forum Amícar Cabral 2013 - Comunicações e discursos"; organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Abril de 2020:

Queridos amigos,
As efemérides em torno de figuras consagradas devem merecer uma organização que permita desvelar olhares renovados sobre o pensamento e ação do dito consagrado. Este fórum Amílcar Cabral que teve lugar na cidade da Praia em 2013 tem muita parra e pouca uva, muito salamaleque e pouca visão repercutente de como o pensamento de Cabral continua a ser atual em África. Do desapontamento de tanta comunicação deslavada, com o mais do mesmo, chama a atenção a capacidade reflexiva de Carlos Lopes, a investigação cuidada do historiador Julião Soares Sousa, o mais influente biógrafo de Cabral, que desvela o realismo e a profundidade da visão do líder do PAIGC que jamais ignorou que conduzia uma luta em que não podia dar muitos exemplos edificantes do sucesso da era pós-colonial, o PAIGC alargava-se enquanto novas nações viviam atormentadas por elites cúpidas e corruptas, prometendo unidades e desunindo-se rapidamente, o historiador, bem documentado, olha para a África de hoje e pondera que o pensamento de Cabral, hoje, tem a mesma frescura que há mais de cinquenta anos atrás, lamentavelmente.

Um abraço do
Mário



Cabral, o pensamento revolucionário no mundo contemporâneo (1)

Mário Beja Santos

Por Cabral, Sempre, comunicações e discursos apresentados no Fórum Internacional Amílcar Cabral, em janeiro de 2013, na Praia, com organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins, Fundação Amílcar Cabral, 2016, tinha como tema central a leitura do pensamento de Amílcar Cabral à luz da contemporaneidade. Para além da sessão inaugural, das mensagens, dos discursos e dos anexos, ao longo de mais de quinhentas páginas discorre um bom punhado de oradores, lê-se tudo do princípio ao fim à busca de tratamentos inovadores, olhares refrescados sobre o líder político ainda hoje considerado como figura de pódio do pensamento revolucionário, há um travo amargo de muita parra e pouca uva, muito incenso e pouca convicção, bastante retórica e palavreado fácil, mais escória do que metal sonante. No entanto, impõem-se três nomes com comunicações que apraz registar e fazer a síntese da essência do que ficou registado: Carlos Lopes, Julião Soares Sousa e Miguel de Barros com Redy Wilson Lima.

Carlos Lopes ventilou o temário “Amílcar Cabral como promotor da ideia pan-africana”. Foi aos primórdios da ideologia pan-africanista e como esta afetou os jovens africanos oriundos das colónias portuguesas. Equiparando a pujança intelectual de Cabral com a de Frantz Fanon, escalpeliza três conceitos dominantes no seu pensamento: a definição de unidade, a falta de ideologia em África e o combate pelo lugar na História. Muito cedo os novos estados emergentes do pós-colonial, com a boca cheia de promessas de unidade, desentenderam-se e fragmentaram-se. Cabral justificava a unidade Guiné – Cabo Verde em congruência com o pan-africanismo, não ignorando a corrente refratária em Cabo Verde de um sentimento de hostilidade na Guiné, por razões históricas, em relação a Cabo Verde. Assumiu a unidade como um compromisso com o pan-africanismo, não iludindo que precisava de promover uma defesa anticolonial contabilizando aquilo que ele chamava a história em comum. Serviu-se da cultura como elemento primordial que daria no decurso da luta armada a identidade da nova nação. Pouco dado a ilusões, nunca deixou de supor que a sua luta triunfasse mas não se mentia com os tremendos riscos postos, alcançada a independência. Como observa Carlos Lopes no termo da sua comunicação:
“Desde cedo, Cabral e Mário de Andrade, alertados pelas derivas totalitárias de Sékou Touré, Nkrumah e Kenyatta, se preocuparam com a utilização identitária como forma de construção de uma ideologia travesti do pan-africanismo. Para proteger os movimentos a que estavam associados tais perigos, multiplicaram os apelos à democracia popular e direta. Esta revelou-se, porém, ser uma muito débil resposta a tendências que se revelaram fortíssimas.
A famosa chamada de atenção de Cabral para o suicídio da pequena burguesia deve ser entendida como um eufemismo para confessar a impossibilidade de conter as derivas dos movimentos nacionalistas, ou o seu aproveitamento para fins menos nobres. Na realidade, trata-se de uma confissão indireta de que o processo histórico, expressão tão usada nos anos 60, tomaria o seu rumo. Para mal do pan-africanismo e do próprio projeto nacional”
.

Mais adiante, Julião Soares Sousa discreteou sobre “Os desafios da construção do Estado em África: uma releitura do pensamento de Amílcar Cabral na perspetiva da contemporaneidade". O historiador propôs-se analisar os desafios atuais da construção do Estado em África mediante uma releitura contemporânea do pensamento de Cabral. Cabral advogava uma proposta de rutura radical com a herança político-administrativa colonial, era imperativo barrar o caminho de qualquer modalidade de neocolonialismo ou criar elites negras prontas a repetir as mesmas táticas dos colonos. Daí ter sempre tratado a luta de libertação como um ato de cultura, a necessidade de o novo Estado se pautar pela autonomização económica e daí a sua permanente advertência para o desenvolvimento da agricultura, dizia repetidamente que era imprescindível a descentralização dos ministérios e que esta devia ser implementada de acordo com as necessidades das massas camponesas. Cabral também foi premonitório sobre os perigos da elite política se concentrar em Bissau, seria um íman para atrair e empolar o centro urbano em detrimento do desenvolvimento dos campos. Realista, punha em destaque os objetivos sociais e as necessidades básicas da população, atormentando assim os ideólogos de pacotilha quando asseverou: “Lembrar-se sempre de que o povo não luta por ideias, por coisas que estão na cabeça dos homens. O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela luta, mas para obter vantagens materiais para poder viver em paz e melhor, para ver a sua vida progredir e para garantir o futuro dos seus filhos”. A luta armada foi crescendo enquanto África continuava à espera de uma verdadeira revolução, Cabral tinha consciência dos problemas da Nigéria, mesmo tendo sido contrário à secessão do Biafra, tinha plena consciência das diferenças gritantes entre os detentores dos cargos públicos e o povo, era profundamente crítico das novas cliques políticas que rapidamente se enriqueciam e pavoneavam com carros luxuosos, indiferente a um povo pobre e desgraçado. Igualmente se mostrava apreensivo com a má gestão dos dinheiros públicos, do mesmo modo como tecia considerações para os golpes de Estado que assolaram África entre 1965 e 1966, um caráter golpista que se prendia com o tribalismo, a ganância do poder e a tentação neocolonial. Como observa o historiador Julião Soares Sousa, foi um processo eivado de contradições em que se tentou forjar o desenvolvimento do sentimento nacional perseguindo chefes tradicionais, ficcionando tentativas de golpes de Estado, gerando estados de terror entre as populações, afastando-as de todo e qualquer sentimento revolucionário. Não era por acaso que Cabral insistia na questão da pequena burguesia e de que lado ela iria estar, ou na contrarrevolução. O historiador aborda o contexto de uma rutura epistemológica essencial dada pela crise do socialismo e pela chegada em pleno do liberalismo económico a África que acarretou novos quadros de instabilidade e a anomia do Estado. Como ele escreve, “Em África muitos Estados, nomeadamente os frágeis, não têm conseguido cumprir com alguns critérios básicos devido às fracas ou nulas infraestruturas do poder, que nem sempre penetram toda a sociedade, associadas a outras importantes dimensões internas (fraco controlo sobre o território e sobre a população e ausência de estudos e de estatísticas) e externas (excessiva dependência do exterior)”.

Em jeito de epílogo, Julião Soares Sousa pondera a pouca eficiência dos Estados, o modelo de boa governação, regressando ao pensamento de Cabral e foca diretamente o que se tem passado na Guiné: “Como a classe política tem tentado encobrir, ao longo do tempo, a sua grande responsabilidade, criando a ilusão de que de facto os reais problemas residem nas Forças Armadas. A elite política tem-se aproveitado da situação de instabilidade por ela criada para acumular riqueza proveniente das ajudas internacionais, proventos ilícitos e até submergir o Estado em negócios obscuros ou transformando-o numa autêntica máfia (…) Cabral afirmava que deveriam ser os melhores filhos a assumir a liderança do processo de reconstrução nacional na era pós-colonial. Isto é, todos aqueles que, pela sua conduta moral e política, entregassem todo o esforço, sacrifício e capacidade ao serviço do povo (…) Na sua perspetiva, o dirigente deveria ser ‘o intérprete fiel da vontade e das aspirações da maioria revolucionária e não dono do poder, o senhor absoluto que se serve do Partido e não serve o Partido. Caberia ao Partido [entenda-se Estado] expressar a vontade popular no âmbito da democracia revolucionária, isto é, as aspirações do povo livremente expressas’.”

E de seguida, iremos dar a palavra a um curiosíssimo trabalho sobre o pan-africanismo de Cabral na música de intervenção juvenil na Guiné-Bissau e em Cabo Verde.

(continua)

Carlos Lopes
Julião Soares Sousa
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23794: Notas de leitura (1519): "O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume I: Eclosão e Escalada (1961-1966)", por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2022 (4) (Mário Beja Santos)