sábado, 8 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25617: II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I: "E as crianças, meu Deus, porque lhes dais tanta dor?!"

 


Timor Leste > Liquiçá, Manati, Boebau > Outubro de 2017 > Aqui estava a erguer-se a futura escola luso-timorense de São Francisco de Assiz, um projeto da ASTIL.


Texto e fotos: © Rui Chamusco  (2018). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Fundadores: Rui Chamusco,
Glória Sobral e Gaspar Sobral


1. Segunda viagem e estadia do Rui Chamusco (de 27 de janeiro a 14 de junho de 2018) (*), em Timor Leste: foi uma longa estadia de quatro meses e meio, que culminou com a inauguração da Escola de São Francisco de Assis (ESFA), em 18 de março de 2018, em Boebau, Manati, Liquiçá.


O Rui Chamusco, nosso grão- tabanqueiro nº 886, é professor de música, do ensino secundário, reformado (e homem de sete instrumentos), natural da Malcata, Sabugal, a viver na Lourinhã. 



Rui Chamusco e Gaspar Sobral (2017).
A família Sobral tem um antepassado
comum que foi lurai, régulo,
no tempo dos portugueses.
As insígnias do poder (incluindo a espada)
estão na posse do Gaspar,
que vive em Coimbra.
Foto: LG (2017).


Tem-se dedicado de alma e coração a um projeto de solidariedade no longínquo território de Timor-Leste (a 3 dias de viagem, por avião, a cerca de 15 km de distância em linha reta). 

É cofundador e líder da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor-Leste, com sede em Coimbra. 

Através da família Sobral, e das crónicas do Rui, vemos seguramente melhor Timor-Leste, de ontem e de hoje: uma visão macro e micro. Enfim, um privilégio, para os nossos leitores.  E um obrigado ao nosso cronista, extensivo ao Gaspar, ao Eustáquio, à Aurora, à Adobe e outros protagonistas destas histórias (LG).

 

II Viagem a Timor: janeiro / junho de 2018 (Rui Chamusco, ASTIL) - Parte I


27.01.2018, sábado - Daqui,  Timor...

Pela segunda vez na minha vida piso terras do Oriente, mais propriamente Timor Leste. Eram as 13.30 horas do dia 27 de janeiro de 2018, sábado.

Depois das formalidades habituais a que fui sujeito, verifico que a minha mala de porão foi brutalmente aberta, não sei aonde, à procura de não sei o quê, pois nada faltava do que em Portugal nela foi metido. Apenas o computador apresentou o ecrâ estragado. Talvez um dia eu entenda porquê. Felizmente as autoridades aduaneiras compreenderam a situação e facilitaram o levantamento da mala.

Cá fora estavam os braços de um bom grupo de amigos, que à vez, apertavam o “malai” num abraço bem sentido, desejando-me um bom regresso à sua terra.

De volta a Ailok Laran, passando pelo cemitério de Santa Cruz para prestarmos homenagem ao pai do Gaspar e do Eustáquio, fomos recordando sítios, lojas, ruas, bairros, caminhos e vielas que, de salto em salto, nos levaram ao destino Bairro Pité -Ailok Laran.

À chegada, mais uma cena de beijos e abraços de muitas crianças e pais que ansiosamente nos esperavam. Muitos olhares de curiosidade, notícias sobre padrinhos e madrinhas, visita aos melhoramentos na casa do João Moniz (verdadeiro nome do Eustáqui), aposentos onde vamos permanecer a maior parte do dias.

Um jantar timorense: arroz, flor de papaia, mano (frango), água. Depois de mais uma conversa sob o céu estrelado, foi a hora do descanso e retempero corporal pelo sono.

28.01.2018, domingo - Carne de cão

O tempo para conversas neste momento é abundante. Por isso a cada instante há cenários de quem está à nossa volta, que nos dispomos a ouvir. Neste caso é o marido da Assun, que é de origem chinesa, e que na sua terra caçava macacos paravender. Diz ele que a carne de macaco é muito apreciada, e que quem dela come fica mais ágil e leve ( e macaco também?!)... e que a canja de carne de macaco afasta os maus espíritos. 

E esta, hein!!!...  Por isso nada me espanta que haja garrafas de licor com lagartos e outras coisas lá dentro.

Miséria a quanto obrigas!

Hoje o Eustáquio revelou que durante os três anos que ele, a irmã Benedita e a mãe estiveram em fuga no tempo da invasão indonésia,  chegavam a comer a proteção, a pele de vaca ou de cabrito,  que cobria o manípulo das catanas. E que o suor que se acumulava na folha das mesmas sempre que eram transportadas nos sovacos era bebido (lambido) com sofreguidão.

Como é que não devemos admirar estes heróis, que depois de tanta privação se ergueram e reconstruiram as suas vidas?

29.01.2018, segunda feira -  Valente, o filho de Vitor

Hoje, logo de manhã, estava combinado ir à escola do Valente, Fatumeta. Valente é um dos 13 filhos do falecido Vitor, que frequentava o sétimo ano, e que desde que morreu o pai não mais voltou à escola. Primeiro pela dor de ter perdido o baluarte da casa, depois porque a família não tem posses para pagar o dinheiro das fardas e outros. Informado sobre o caso prometi que iria resolver a situação.

Às 8 horas da manhã estava pronto para a irmos à escola de Fatumeta. Mas não tardou o recado: o Valente não pode ir à escola porque está doente. Tem febre... Foi então que resolvi ir a sua casa (uma humilde barraca a rebentar de pessoas e deobjetos), munido de dois comprimidos de Brufen, e armado em médico lhe ordenei: "Tomas um agora e outro daqui a oito horas". 

Fui acompanhado pela Assun e pela Adobe, minha afilhada. A nossa visita, o nosso gesto foi seguido pela gente do bairro(?) e logo aí me senti compensado pelos sorrisos e saudações que nos dirigiam. À noite voltamos lá a fim de saber se o remédio tinha dado resultado. Assim foi.

Medi-lhe a febre, com o termómetro que entretanto fui comprar, e o Valente estava em forma para prosseguirmos esta ação de reintegração escolar.

31.01.2018, quarta feira - O Valente volta à escola donde nunca deveria ter saído

O regresso de Valente à escola foi bem sucedido. Depois de uma longa caminhada por veredas e becos a torto e a direito, e sob um calor sufocante devido à alta densidade de humidade, durante uns quarenta minutos lá chegamos à escola: eu, oValente, a Adobe e a Marcelina. Recebidos com simpatia por parte de alguns funcionátios e professores, fomos atendidos por um elemento do conselho diretivo que amavelmente nos informou do que era necessário fazer. 

Feito o pagamento de 43 dólares destinados às duas fardas e a despesas escolares, pudemos fazer o caminho de volta. A professora Ina encarregou-se de telefonar para indicar o ano e a turma em que o Valente ficará incluido. Logo ao princípio da tarde chegou o a informação: O Valente frequentará a turma E do 7º ano, e terá a primeira aula às 13 horas. 

Missão cumprida!...  Mas eu pergunto: como é que por 43 dólares se deixa uma criança fora da frequência escolar? A família não pode pagar, e eu sou disso testemunha, Mas não doerá a cabeça a quem podendo resolver o problema o deixou arrastar? Quem puder entender que entenda...

Turmas com 50 alunos!

Pois é! Pensem o que quiserem, mas não posso deixar passar esta observação.

Enquanto estamos esperando de ser atendidos, e em conversa com a professora que nos fazia companhia, vim a saber que as turmas nas escolas de Timor têm como norma 50 alunos. Ouviram bem? O dobro das turmas das nossas escolas portuguesas. Como pode um professor dar a devida atenção a tantos alunos em simultâneo?! 

“Saimos daqui com uma grande dor de cabeça”, comentava a colega timorense. Nós em Portugal protestamos tanto quando as turmas ultrapassam os 25/30. Claro que não somos nós que estamos mal. “Com a dor dos outros aguento eu bem”. Mas é bom apercebermo-nos de que há outros em condições bemdiferente, bem piores que as nossas.

01.02.2018, quinta feira - "Fa Recadu", o culto dos mortos

Em Ailok Laran, sentados na “esplanada” gozando a fresca da manhã, chegam duas moças bem vestidas que com simplicidade vêm fazer um “Fa recadu”. Fiquei curioso em saber o que se passava. Foi então que me deram a seguinte explicação: 

Trata-se de um “Fa Recadu” - “da parte da família do defunto fazemos chegar os cumprimentos a toda a vossa família, e anunciamos que na próxima sexta feira, à noite, iremos fazer a vigília do desluto até de manhã, que será seguida de missa. E depois vamos todos ao cemitério depôr flores. Depois vamos para casa, onde será servido num simples café. As pessoas que quiserem podem ficar até ao dia seguinte para a festa”.

Este ritual faz parte das cerimónias de luto quando morre alguém, a saber: “a flor amarga” para a família mais chegada. Comem e vão ao cemitério rezar e e depôr flores; “a flor doce” para agradecer a todas as pessoas que acompanharam a família na sua dor. Todos os que cheiraram a morte devem participar nos festejos. 

Ainda fui informado de que, os parentes mais chegados devem guardar o luto durante um ano: as mulheres usam camisola preta ao avesso e os homens uma fita preta no braço.

Como diz o Eustáquio, a memória e a presença do falecido deve ser respeitada e celebrada, custe o que custar. É o respeito e a veneração por quem tanto bem nos fez.

 Temporal e brincadeira

Chuva torrencial com alguns relâmpagos e trovões à mistura findam a tarde e a noite de hoje. Vento forte derrotou algumas árvores do pátio. A intempérie que deflagrou parecia querer atemorizar a gente, mas não conseguiu.

Crianças de tenra idade desafiavam o vento e a chuva. Todos molhados divertiam-se com naturalidade nas poças de água ou em jogos improvisados; nadavam em seco, bachicavam-se uns aos outros curtindo a situação. Assim mesmo. Brincavam...Gente rija, sem preconceitos, capaz de tudo fazer sem nada ter. “Simples como as pombas...”

02.02.2018, sexta feira -  Como ir à montanha com este tempo ?

O sol está de volta, mas não sabemos por quanto tempo. As condições climatéricas continuam instáveis. Esta situação traz-nos alguma preocupação e ansiedade, pois a ida à montanha, a Boibau, torna-se perigosa. Árvores caídas, deslizamentos deterras, obstáculos sem conta. Dizem-nos que o “motor” (motorizada) é o melhor meio de transporte, mas que mesmo assim será preciso que o pendura desça de vez em quando para empurrar a mota devido à lama que bloqueia os caminhos.

Pois!...se tiver que ser, que seja!...

“Os discípulos de Emaús”

Companheiros de jornada e de ideais, de vez em quando damos connosco a relatar episódios pessoais das nossas vidas, partilha que nos faz cada vez mais amigos. E então o Gaspar, começando a contar, é um livro aberto com muitas páginas. Nem mesmo que se repita (alguns episódios já foram contados diversas vezes) acaba sempre por ter graça, porque o seu envolvimento total na história que relata, rindo-se de ele prórpio, acaba sempre por nos contagiar e de nos deixar bem dispostos.

Algumas vezes é dominado pela emoção, e chora se for preciso chorar. Recomposto, retoma o discurso com a mesma boa disposição. É uma pessoa muito culta, com bons sentimentos, mas também muito dispersa.”Talvez um dia transforme em livro as estas, vivências”, diz ele entusiasmado. Bagagem não lhe falta. E se o fizer, cá estamos nós para recomendar a sua leitura. E eu seu condiscípulo, a pensar que já sabia muito do meu amigo! Afinal, muito há para contar. (...)

03.02.2018, sábado - Halibur,  Família Sobral

Aproveitando a nossa chegada e estadia, o Painô (filho do falecido Pai Zé que era o mais velho dos seis irmãos Sobral) resolveu fazer uma festa de família, com o objetivo de manter e reforçar os laços familiares. Muita gente, vinda sobretudo da Dili e arredores; muitas crianças, muitos sorrisos, muitos abraços...um clima de verdadeira festa. 

Depois dos preparativos necessários, e já entrando pela noite, foram os discursos da praxe: Painô, Gaspar, Rui (com tradução para tétum pelo Gaspar), Álvaro, Abeka, Mari, Eustáquio (João Moniz) e por fim a Bene, única mulher dos 6 irmãos) fechou com a chave de ouro. Todos manifestaram o seu contentamento por este acontecimento e apelaram à união da família Sobral.

Muitas palmas, alguns esclarecimentos, nomeação por sorteio do mordomo do próximo encontro (Mari), que será no dia 6 de Janeiro de 2019. É uma benção de Deus ter uma família tão grande unida por laços familiares de sangue.

No final, para além das conversas informais que se prolongaram pela noite fora (o Gaspar esteve falando até às duas horas da manhã), houve músicas e danças com as crianças. O acordeão esteve e novo em ação.

06.02.2018, terça feira - O dinheiro para os afilhados

Hoje de tarde procedeu-se à entrega dos donativos em dinheiro que os padrinhos/madrinhas enviaram para os seus afilhados (as). Já não é a primeira vez que isto acontece, mas hoje tive a oportunidade de, in loco, presenciar o ato.

A alegria de ter na mão o molho de notas era evidente por parte das crianças e dos adultos (pais). Para quem não tem ordenado fixo e para quem tantas privações padece, qualquer dádiva é significativa. Todos estão informados de que o dinheiro recebido se destina particularmente ao apoio no desenvolvimento escolar dos seus protegidos. Fazemos confiança que assim seja, ainda que o controlo direto das economias familiares não esteja ao nosso alcance.

Claro que tenho de aqui expressar o agradecimento que em direto me fizeram todos os beneficiários desta entrega. Espero que cada padrinho/madrinha se sinta desta maneira agraciado, mas desejo que cada afilhado (a) o faça, pelas vias hoje mais utilizadas (facebook, whatsapp, messenger, telemóvel, etc...)

“Quem ajuda os pobres empresta a Deus”.

07.02.2018, quarta feira - Estranha e feliz convivência


O  Toqué ou Toké (em Timor), ou Tokay Gecko.
Copyright (c) 1998 Richard Ling/GFDL
Fonte: Wikimedia Commons
(com a devida vénia...)
Vd. aqui áudios com as vocalizações
deste pequeno réptil
(Wikipedia, em inglês).

Nestes bairros que circundam Dili, em Ailok Laran, a natureza que é mãe mostra todo o seu esplendor através de uma saudável convivência entre humanos, animais, répteis, aves... Com ou sem razão a galinha e os pintaínhos entram e passeiam pela casa; os teques  (osgas) percorrem as paredes; o toqué anda de árvore em árvore dando as horas; os leitões fossam os quintais; os cães têm livre trânsito; as melgas e os mosquitos picam onde bem entenderem. 

Há um profundo respeito e algum “animismo” em atribuir significado aos sinais que todos estes seres emitem. Por exemplo, se alguém vai sair de casa e encontrar um teque na saída, deve adiar a saída porque a presença do teque é um aviso: “não saias porque alguma coisa de mal vai acontecer”. 

Esta gente é muito crente, não só na fé religiosa que professam, nas igrejas de que são fiéis, nos santos e santas de cada religião mas também nos espíritos que habitam as coisas. São de uma sensibilidade religiosa impressionante. Por isso respeitam com significado religioso todas estas formas de vida. Talvez por isso este povo é alegre e feliz, apesar de passar por muitas dificuldades e privações.

Viver integrado neste mundo natural, considerar-se parte deste todo, respeitar mutuamente todos os seres, faz sentido e dá a cada um e à sociedade razões para ser feliz, ainda que pareça estranho.

08.02.2018, quinta feira  - “E habitou entre nós”

Ainda há muita gente que se admira da minha capacidade de adaptação. O facto de um malai ter escolhido viver como eles vivem, refiro-me claro está a viver sem as condições a que em Portugal estamos habituados, mais propriamente as que dizem respeito a hábitos de higiene e a hábitos alimentares. Até eles mesmos, os timorenses que nos albergam,  estranham a nossa força e vontade de ser como eles.

Mas só assim é possível uma verdadeira encarnação, não é verdade? Quem chega tem o dever de se adaptar e não de se impôr, mesmo que tenha de se humilhar e perder alguma coisa do que é seu, do que lhe é próprio.

Na verdade, até sinto alguma vaidade quando vendo o meu comportamento eles dizem: “este é dos nossos; só lhe falta mudar a cor da pele”. “O tiu Rui já é timorense”. Não posso querer melhor elogio...

09.02.2018, sexta feira - Alegria no trabalho

Hoje foi dia da instalação elétrica na casa do Eustáquio, mais propriamente nos quartos que preparou para a nossa estadia em Ailok Laran. O Painô, sobrinho do Gaspar,  que para além de ser “guarda costas” do Ramos Horta na sua residência em Areia Branca (Dili) é também o eletricista. É ele que vai fazer a instalação na escola de Boibau. Esteve connosco até às duas da manhã, mas deixou tudo pronto. Trabalhouque nem um desalmado, até o suor lhe escorrer no rosto.

E então os outros homens que com ele estavam, faziam o quê? Mais ou menos como em Portugal: enquanto um (funcionário) trabalha os outros vêm, dão opiniões ou assobiam para o ar. Ou seja, foi um tempo bem passado, com músicas tocadas,cantadas ou assobiadas que trouxeram alegria e boa disposição no trabalho. Já referi em ouras crónicas o ouvido musical que toda esta família tem como dom. Todos cantam, todos tocam. E depois apareço eu feito professor, (porque estudei música) a corrigir isto ou aquilo. Não há necessidade!.. Esta gente curte a música à sua maneira, que muitas vezes é bem melhor que a nossa, porque temos a maia de ser inteletuais.

Haja luz!...

10.02.2018,  sábado - É de cortar o cortar o coração!...

Mais uma vez fui visitar a casa do falecido Vitor. Despedaçou-me o coração! Como é que de um montão de chapas de zinco com dois ou três blocos de cimento à mistura vivem 14 pessoas, com crianças de todas as idades aos magotes? 

Algo temos de fazer! Alguém tem de ajudar! E eu sei que esse alguém vai aparecer. Isto não é pobreza. É miséria!... Confdesso que tive de me conter para não chorar. E noentanto, esta gente parace feliz. Irradiam sorrisos e simpatia por todo o lado.

Por outro lado fui saber das crianças que frequentam, a escola. O Mário, afilhado do João Meireles, a Marcelina, afilhada do José Manuel Campos e o Valente, meu protegido, estavam na escola. Fiquei satisfeito e vou continuar a estar informadosobre as crianças desta família tão necessitada. Tenho a certeza de que o Vitor, lá nooutro mundo, estará muito contente com esta nossa preocupação de fazer a suafamília um pouquinho mais feliz.

“Quem dá aos popbres empresta a Deus”. Não precisa de pagar o empréstimo. Basta que cuide de nós...

“Sobe a montanha! Sobe a montanha... e verás...”

Faz hoje 15 dias que chegamos. Muita coisa temos feito, mas há uma que ainda não conseguimos concretizar: subir a montanha rumo a Boibau. Queremos lá ir o mais depressa possível. O Painô já aqui tem o material eletrico para proceder à instalação da luz na escola. Possivelmente teremos de ir em motorizada, e de vez em quando haverá que descer para empurrar a mota. Vamos a ver em que aventuras nosmetemos. Espero que compreendam esta nossa demora, pois ela não depende exclusivamente de nós. Estamos prontos para a primeira oportunidade. Iremos dando notícias. Abraço!...


Obrigado,  crianças!

“De velhinho se volta a menino”, diz o ditado. A Adobe e a Noélia (afilhada da Evelyne) resolveram brincar comigo de uma forma muito carinhosa. Fizeram de mim gato sapato, com as suas invenções e criatividade, desde “penteados à punk”,massagens à desportista, cuidados de “manicure”; enfim, um pedaço de plasticina nas mãos de artistas. A alegria e a boa disposição sempre presentes, indicando que“grande arte é a música, a poesia e a dança. Mas o melhor de tudo são as crianças”...

De vez em quando dou comigo integrado nas suas brincadeiras: jogar à bola (claro que me dão um grande baile!), jogo das escondidas (com os mais pequeninos),cantar e tocar, etc... Aceitam-me tal e qual como sou: velhinho, malaio (estrangeiro).

Sou o Ti Rui, o pai Rui, o avô Rui, o irmão Rui. A maneira como me chamam pouco interessa, mas sim o que eu sou para elas e o que elas são para mim. Sinto-me bem,como um menino. Obrigado crianças!...


11.02.2018, domingo  - “Expressões de Timor Lorosae”

Eram já as 1.30h locais quando conseguimos uma ligação em direto, através do Whatsapp para Portugal, mas própriamente com Malcata. Quisemos dizer “presentes!” na inauguração da exposição “Olhares de Timor” da autoria do sr. Vitor Cordeiro,que amavelmente acedeu ao convite da Associação Malcata Com Futuro (AMCF) para assinalar o protocolo celebrado com a ASTIL (Associação de Amigos Solidárioscom Timor Leste), e que vai estar na sua sede (AMCF) durante alguns meses para que possa ser visitada. Dizia o sr. Vitor Cordeiro: “É a primeira vez que lhe ocorre umdireto de Timor, de todas as vezes em que a exposição é inaugurada”.

É a nossa forma de agradecer ao autor, à AMCF na pessoa do seu presidente da direção engenheiro José Escada, aos estimados sócios e pessoas presentes neste acto. Estamos convictos de que com estes olhares cruzados, graças à tecnologia utilizada, a ASTIL, a AMCF, Malcata, Timor, o Projeto de Solidariedade ficarão mais reforçados no caminho da cooperação e da interculturalidade.

“Parecem bandos de pardais à solta... Os putos, os putos...

Crianças
Em frente da casa do Eustáquio há um grande largo, onde cada dia, num abrir e fechar de olhos, se juntam às dezenas as crianças para jogar e brincar. Nada que os demova, nem o sol nem a chuva. Mas o cenário mais desejado é quando começa achover, a chover torrencialmente. Todos molhados desafiam o vento e a chuva, saltam de alegria, atiram-se para as poças de água. Como que gatos pingados correndo uns atrás dos outros. Desde crianças de dois anos, ninguém tem medo damolha ou das suas consequências. Enxugam a pouca roupa que vestem no próprio corpo como que a desafiar as leis da medicina, e pronto: estão quites para outrosdesafios. A satisfação e a resistência que manifestam causam-nos inveja, com vontade de voltar a ser criança. Somos uns priveligiiados podermos assistir a este espetáculo.

 Obrigado,  crianças!...

12.02.2018, segunda feira  - Manga caída do céu...

Há fenómenos que por mais que digamos serem coincidências mais parecem que são milagres. À frente da casa do Eustáquio há uma grande mangueira, com mais de cinco metros de altura e uma larga copa. É suposto que o tempo da floração seja no mês de Maio e que os frutos estejam prontos a comer nos meses de Julho ou Agosto. Já durante a primeira estadia, em Junho de 2016, lamentávamos o facto de nos irmos embora sem provar os seus deliciosos frutos. Muito menos agora, mês de Fevereiro de 2018, era de esparar provar esta iguaria.

Então não é que, devido a um forte vendaval, vem cair a nossos pés um manga bem madura que eu e o amigo Gaspar logo a seguir devoramos com sofreguidão?!

Vá se lá saber a que é devido que isto aconteça! Para nós foi um mimo de Alguém, que mesmo “contra natura” nos presenteou com uma manga (maná) caída do céu.

14.02.2018, quarta feira  - Concerto de Alvorada


Aqui e agora, em Ailok Laran - Timor, há um concerto galináceo matinal, a fazer lembrar Malcata-Portugal há mais de cinquenta anos. Quase todas as casas (famílias)têm aves e animais em convivência diária. Todos sabemos que é desde a manhã, de madrugada que se começa o dia. E é então que o concerto sonoro começa: o galo cantor, que ergue a sua voz num desafio constante; as galinhas que cacarejam; ospássaros piantes, os porcos que grunhem; os reclames dos vendedores ( primeiro é o

Pao! Pao! Pao!"...; as crianças que cedo vão para a escola; as saudações de quem por aqui passa... Já são oito e meia da manhã e os galos continuam a cantar. Esta natureza é luxuriante em tudo, até na qualidade do timbre destes bons cantores.

Aqui ao lado está um galo preso, cujo destino era ter sido morto para manjar da gente da casa. A meu pedido “ não matem o bicho que eu quero ouvi-lo cantar”, ainda está vivo, agora mesmo cantou. Afinal, não é só o Galo de Barcelos que canta depois de morto. Também aqui há um “morto vivo” que, juntamente com os outros bichos de côro, nos alegram cada manhã.

Santa impaciência!...


Os dias a passarem e nós aqui, impacientes, com pressa de ir a Boebau. Hoje esteve uma grande parte da tarde e da noite a chover, com trovoadas e relâmpagos à mistura. Começo mesmo a ficar impaciente. Primeiro é o atraso da partida do barco que traz as nossas encomendas, agora é o adiamento da ida para a montanha.

Parece até que alguém está a emperrar o andamento das coisas. Eu sei que nem sempre pode ser como a gente quer, mas tanta demora é devida ao quê? Virtude (feitio) timorense? Vontade de fazer bem as coisas? Não me conformo... Estou em pulgas!... Que Deus me dê paciência!... Santa paciência!!!

João Crisóstomo,
um amigo de Timor-Leste

 Notícia reconfortante

Há dias assim. Quando tudo parece que nada anda para a frente, surge uma notícia que nos anima e nos conforta. Eram já as dez horas da noite, quando toca o meu telemóvel, com uma chamada vinda dos Estados Unidos da América, do amigo João Crisóstomo. O João, que desde o encontro organizado na Paraia de Santa Rita (Torres Vedras) pelo amigo comum Eduardo Jorge Ferreira, se entusiasmou e embarcou neste nosso projeto de solidariedade (aconselho uma consulta na net ao site “João Crisóstomo - o Mordomo"), comunicou-me coisas  muito importantes, a saber:

(i) O Sr. Ralph Niemeyer vai chegar aí, a Timor, no dia 3 de Março. Ficará a cargo da Fundação Oriente e encetará contactos com o atual Presidente da República Sr. Francisco Guterres. Permanecerá três semanas em Timor, no intuito de ajudar e apoiar projetos de solidariedade. Na segunda semana pretende deslocar-se às montanhas, a Boebau, para conhecer in loco o projeto de “construção da escola em Boebau/Manati”. A terceira semana será dedicada a entrevistas e conferências de imprensa, particularmente em Dili, com entidades representativas da comunidade timorense.

(iii) Eu, João Crisóstomo, chegarei o dia 4 e juntar-me-ei ao amigo Óscar. Logo que chegue comunicarei convosco (Rui e Gaspar) para traçarmos programa para estes dias. Aí, no terreno, combinaremos melhor. Quero que vocês participem nas ações conjuntas, particularmente nas entrevistas e conferências de imprensa.

Este é o grande João Crisóstomo que, apesar da idade (e já lá vão 73) não pára de se envolver e lutar por causas que valham a pena. Foi assim por Aristides Mendes, foi assim pelo povo de Timor, foi assim pelas gravuras de Vila Nova de Foz Côa, e é assim pela criação de escolas em zonas carenciadas de Timor Leste. Um grande amigo que contagia, seja quem for, pelo seu dinamismo e clarividência. Um verdadeiro amigo, um tesouro...

Quanto a mim, sinto-me um privilegiado ser incluido entre os seus amigos. Mas confesso que me sinto acomplexado perante a necessidade de ter que aperecer na alta roda social. Não tenho estilo nem geito para altas andanças, e receio até fazermá figura. O João, que me está a meter nisto tudo, que me perdoe, mas sinto-me melhor em meios mais humildes, mais simples. Mas se tiver de ser, pois que seja.

“Tem de acontecer, porque tem de ser/ E o que tem de ser tem muita força/ E sei que vai ser, porque tem de ser/ Se é pra acontecer, pois que seja agora...”

15.02.2018, quinta feira  - Rituais de vida e de morte

Eram mais ou menos 21h00 quando um grupo de jovens, alguns munidos de guitarras, deram nas vistas, descendo o caminho que abrange a casa que nos alberga. Eu já me tinha dado conta de cantorias vindas das redondezas. Por issoperguntei a quem comigo estava: o que se passa?

Vim então a saber que, há mais ou menos um mês, tinha falecido uma senhora, professora, e que se cumpria o ritual vigente na região de Dili: durante quarenta dias as pessoas e sobretudo os jovens, juntam-se à noite na casa do defunto e com cânticos, rezas, jogos, conversas, comes e bebes celebram a vida e a morte do(a) falecido(a).

Aqui, há uma sintonia muito grande entre vivos e mortos. Com toda a naturalidade se convive com os sinais e símbolos dos que já partiram, mas que se sentem bem presentes. O respeito e veneração que os mortos merecem dos vivos são constantes,mas não há medo nem receio de os invocar ou recordar. Mais parece que estão connosco, mesmo que invisíveis. Não se veem... sentem-se. Mistérios profundos dasdicotomias: vida, morte; princípio, fim; alpha, omega; natural, sobrenatural; matéria, espírito; alma, corpo, etc, etc...

16.02.2018, sexta feira  - Água, um bem precioso...

Já há dois dias que não há abastecimento de água. Há muita água doce em Timor, pois chove quase todos os dias, mas há falta de água nas mangueiras. O sistema de abastecimento deixa muito a desejar. As infraesturas são carentes e/ou inexistentes.

Grande trabalho ainda há por fazer!

Estou a escrever este relato neste bairro periférico de Dili, a capital, aqui tão perto do centro das decisões politico sociais, e aonde as carências básicas de higiene, vias de transporte, saneamento, e muitas outras tanto se fazem sentir. Será assim em todos os povos em via de desenvolvimento?

alvez estas situações sejam mais sentidas pelos estrangeiros que pelos nativos.

Quem é de cá tem mais capacidade de resistência. Aliás este é o grande apanágio deste estimado povo: a resistência, a qualquer tipo de adversidade. Por isso mesmo o “Museu da Resistência” é tão visitado e apreciado. Mas, a melhoria das condições de vida é um desejo profundo de qualquer cidadão, de qualquer povo, de qualquer país. Também dos irmãos timorenses, dos amigos de Ailok Laran.

Urgência: defesa e promoção da língua portuguesa

É sobretudo através da linguagem verbal que a gente se entende, seja qual for a língua que se utilize. Aqui, em Timor Leste, o tétum e o português são as duas línguas oficiais, por opção dos governos timorenses. Outros tentaram que assim não fosse, especialmente os australianos que aliciaram com o inglês. Os indonésios, durante a ocupação deste território, tudo fizeram para que a língua bahasa fosse aprendida e divulgada. E, em boa verdade, podemos dizer que conseguiram os seus objetivos, através da criação de uma considerável rede escolar (mas que não chega a todo o território, nomeadamente às zonas montanhosas como é o caso de Boebau/Manati.

Soube nestes dias, que proibiam as crianças de falarem a nossa língua, e que castigavam os que fossem apanhados em flagrante. Em conclusão, a língua portuguesa foi ultrapassada pelo língua bahasa. Ontem mesmo presenciei um jogo de crianças em que a contagem era feita em bahasa. 

Hoje, apesar de todos os esforços feitos pelos governos timorenses e portugueses, a maioria das crianças, dos jovens e adultos não se fazem entender na língua de Camões. As escolas dereferência, os programas de Formar+ destinados a formar professores, os professores destacados de Portugal têm dado um precioso contributo, mas não chega. Precisamos de mais ação, de mais apoios, de mais empenho dos governos ede entidades afins para que a promoção e a defesa da língua portuguesa seja real.

O nosso projeto de solidariedade, que abrange a construção da escola em Boebau e o apadrinhamento de crianças pobres, tem este objetivo em vista: ajudar as crianças na apredizagem da língua portuguesa. Saber entender e falar muitas línguas éóptimo. Mas muitas vezes a confusão reinante é demais. Como diz o meu amigo D.Basílio do Nascimento “em Timor neste momento fala-se a língua tetumbahasês “.

Exemplos vivos de luta e resistência


Cada dia que passa somos surpreendidos pela presença de pessoas que sobreviveram heroicamente ao tempo e à guerra da invasão indonésia. Ouvir de suas bocas relatos e testemunhos é uma ocasião cheia de emoções. E então esta família Sobral está repleta de acontecimentos e episódios, muitos já relatados nas minhas primeiras crónicas de Viagem a Timor (*). 

Ressalto a figura da senhora Pascoela que há dias nos visitou, uma figura quase invisível pois a massa corpórea que apresenta pouco passará dos trinta quilos. O Gaspar abraçou-a cheio de emoção e de cuidados, porque já há muitos anos que não se encontravam. Creio até que chorou...

Pois a Pascoela fez parte do pequeno grupo de fuga, que orientado pela grande senhora Felismina de Oliveira, mãe dos Sobrais e madrinha da Pascoela, andaram três anos e mais escondidos pelas montanhas. Eram cinco: a mãe Felismina, os filhos João Moniz (Eustáquio) e a Benedita ainda crianças adolescentes, a Pascoela afilhada e o seu irmão Filomino. Percorreram a pé vales e montanhas até Liquiçá e mais paraalém até que, informados de que já não havia perigo, decidiram entregar-se às autoridades indonésias em Liquiçá.

O que o Eustáquio conta é de pasmar. A sobrevivência a que foram sujeitos obrigou-os a alimentar-se de tudo o queencontravam nas montanhas: raízes (mandioca), frutos, folhas. Arroz nem vê-lo!

Agora imaginem o que é um timorense viver três anos sem comer o alimento básico (arroz). Tinham um critério: o que as cabras comiam, sobretudo folhas, comiam eles também. Aconteceram fenómenos naturais que, só com a proteção divina foi possível superar. Eles dizem que foram milagres e a sua narração faz-nos acreditar que assim foi. A mãe, senhora Felismina, que era quem dirigia e orientava o grupo,levou sempre com ela um crucifixo e a imagem de Santo António. A primeira coisa que fazia era uma espécie de pequeno altar, ante o qual todos rezavam. Todos os elementos do grupo sobreviveram, dizem eles mais uma vez, por milagre, pois houve situações em que as balas passavam de um lado e do outro sem que alguém do grupo fosse atingido. A partir de 1979 foram regressando aos locais de origem: Bidau, Ailok Laran (Dili).

Como a casa de família tinha sido arrasada e queimada,tiveram de improvisar uma barraca. Depois, com o passar dos anos, foram reconstruindo as suas vidas e hoje a família Sobral é o baluarte de mais de uma centena de pessoas que honestamente vão contribuindo para que a sua terra Timor Lorosae seja um país em vias de desenvolvimento que a pouco e pouco se afirma no contexto das nações, no mundo. Na família Sobral revejo muitos outros grupos e famílias graças às quais a esperança de um mundo melhor é possível, também em Timor.Obrigado, Timorenses, por nos fazerem acreditar!... Obrigado Dona Felismina mulher de armas (crucifixo e imagem de Sto. António) e de combate, Dona Pascoela, Bene, Eustáquio, Filomino. Sois os exemplos vivos de resistência e de luta por um mundo sempre novo. Mereceis todo o nosso respeito e consideração.


17.02.2018, sábado - As carências e dificuldades na montanha

Há momentos tocou o telemóvel do Eustáquio. Era uma chamada do Abílio (construtor da Escola em Boebau) informando que precisava de gasolina paracontinuar o trabalho de colocação das janelas. Lá teve que o Amali (filho do Eustáquio) ir a Liquiçá comprar gasolina e enviar a gericana pela carreta (transporte público), que não sei a que horas chegará ao destino.

É asim a vida atribulada de quem habita as montanhas, o interior desconhecido, onde a falta de meios tanto se faz sentir. É precisa muita força de vontade para viver (sobreviver) em ambientes tão carentes de condições de vida e de comodidades que os meios urbanos proporcionam. 

A vida na montanha não é fácil, sobretudo para quem chega. Valha-nos a riqueza de paisagens e de recursos que a mãe natureza nos oferece, a hospitalidade dos seus habitantes, os sorrisos das crianças, a proteção de

Deus e dos antepassados.

Répteis preciosos...

Toqué e Teque  [vocábulos ainda não grafados nos dicionários de português] são dois répteis que todas as noites aparecem para nos fazerem companhia. O primeiro, lagarto de maiores dimensões, tem um som característico inconfundível: “Toqué!... Toquê!...” 

Dizem que, mais ou menos, de hora em hora manifesta a sua voz. Um bom relógio noturno. O governo timorense já decretou que é um animal em vias de extinção, e que portanto tem de ser protegido. Em tempos da ocupação indonésia chegaram a ser moeda de troca: um carro por um toqué. (*)

Hoje como já disse está protegido, gozando por isso liberdade de andar por onde quiser. Se por acaso entrar em casa considera-se a casa abençoada e é ele quem manda. Longe qualquer agressão, sairá quando ele assim bem entender. Neste momento, na casa do Anô aqui ao lado, anda um toqué que é rei e senhor. Que o toqué vos abençoe,  amigo!

Teque é uma espécie de lagartixa, para mim é uma osga, que se expressa em tom mais suave e que soa assim: “ Teque...Teque... Teque “. 

Aparece durante a noite onde houver alguma luz, com o objetivo de caçar algum mosquito ou inseto que lhe sacie o apetite. É impressionante a reação. Faz-me lembrar o lince, só que neste caso será “olho de teque e não olho de lince”. Passeiam por tudo o que é sítio em casa.

Eu até já na mala de roupa vi um. Também o teque é respeitado e apreciada a sua presença. Por exemplo, se alguém vai sair de casa por qualquer motivo e estiver um teque nos umbrais da porta, é sinal que não deve sair porque o teque avisa que alguma coisa má vai acontecer.

Culturas diferentes que temos de respeitar e acatar.

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(Seleção, alguns dos substítulos, revisão / fixação de texto: LG)

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Nota do editor:

(*)  Vd. poste de 4 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25602: Viagem a Timor: maio/julho de 2016 (Rui Chamusco, ASTIL) - VI (e última) Parte: Regresso a Lisboa, via Singapura e Londres... E que Deus seja louvado!


Guiné 61/74 - P25616: Parabéns a você (2280): João Gabriel Sacôto, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 617 / BCAÇ 619 (Bissau, Catió e Cachil, 1964/66)

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Nota do editor

Último post da série de 6 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25608: Parabéns a você (2279): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM (Mansoa, Bolama, Aldeia Formosa e Bissau (1972/74)

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Guiné 61/74 - P25615: S(C)em Comentários (39): E as "cunhas" (o factor C) eram como as bruxas: "yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay"

Cortesia de Freepik (2024)
1. Excerto do poste P19108 (*):


O nosso camarada C. Martins (ex-alf mil art, cmdt, 23º Pel Art, Gadamael Gadamael, 1973/74), e que é médico de família, hoje reformado, na sua terra (razão por que nunca quis dar a cara)..., citava há tempos o seu avô que, na inauguração da escola local, em pleno Estado Novo, ouviu da boca de um manda-chuva esta rotunda "verdade sociológica":

 "O escritório, para o rico; a enxada, para o pobre"... 

No fundo, é uma variante do ditado alentejano: 

"A rica teve um menino, a pobre pariu um moço"...

Não nascemos nem sequer morremos iguais, embora sejamos todos feitos - com a sua licença, caro leitor -, da mesma "merda"... E, ao longo da vida, há outros fatores que nos continuam a diferenciar, e que explicam por que é que o "ascensor social" não pára, para toda a gente,  em todos os "andares" ...

No caso da tropa, da arma e da especialidade, e da mobilização para o Ultramar (eufemismo para "guerra", "guerra colonial"...), o berço, o estatuto socieconómico dos pais, as habilitações literárias, os testes psicoténicos, o mérito, a instrução militar e o famoso factor C [a "cunha") e, já agora, a "sorte" e os "santinhos" ou os "bons irãs" ... ajudam a explicar muita coisa...

Didático, com graça, com ironia, mas naturalmente de forma redutora, o C. Martins queria dizer que o "pobre" ia para atirador de infantaria ("tropa-macaca"), o "remediado" ia para cavalaria, o "remediado com estudos" para a artilharia... e os "ricos" e os gajos com cunhas, esses, desenrascavam-se muito melhor: tinham especialidades que os livravam de ir para o Ultramar ("ir para fora"...) ou ficavam no "ar condicionado" de Bissau, Luanda ou Lourenço Marques... (Bom, falamos do Exército, e do serviço militar obrigatório, não queremos "guerras" com a Academia Militar, a Reserva Naval, a FAP, as tropas especiais, etc.)

O retrato pode ser grosseiro, mas, na época da guerra do ultramar / guerra colonial, não andaria muito longe da "verdade sociológica" do avô beirão do dr. C. Martins... Na sociedade portuguesa, tradicionalmenmte clientelar,  ser "filho de algo" sempre foi, historicamente, importante, se não mesmo decisivo. 

O mérito é uma noção recente, capitalista, burguesa, coisa de há menos de 100 anos... E a "cunha" (o factor C) era como as bruxas: que as havia, havia, e toda a gente "mexia (ou procurava mexer) os seus pauzinhos"... (**)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 17 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19108: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (1): Valdemar Queiroz (ex-fur mil at art, CART 2479 /CART 11, Contuboel, Nova Lamego, Canquelifá, Paunca, Guiro Iero Bocari, 1969/70)


(**) Último poste da série > 29 de maio de 2024 > Guiné 61/74 - P25579: S(C)em Comentários (38): Gandembel, em que é que foi diferente dos 3 G (Guileje, Guidaje, Gadamael ?) (Alberto Branquinho, ex-alf mil, CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69))

Guiné 61/74 - P25614: Notas de leitura (1698): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1857) (6) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Abril de 2024:

Queridos amigos,
Ainda que de forma ténue, chega uma organização administrativa para a Guiné das Praças e Presídios, aparece igualmente uma administração judicial, Honório Pereira Barreto continua a ser a figura tutelar, é um Governador altamente respeitado, intervém na hora própria, procura cortar cerce as sublevações, algumas delas geradas por atos de vingança, insurreições de régulos, estabelece acordos, corresponde-se regularmente com o Governador Geral, António Arrobas, este trata Barreto com uma enorme deferência; peço a atenção do leitor para duas prosas raras, a carta do cirurgião Francisco Frederico Hopffer, a intervenção de D. Pedro V aquando um ataque a Cacheu, mandando castigar quem foi timorato ou praticou mão-baixa. Moral da história, a Guiné já aboliu a escravatura, toda a população é liberta, os interesses pela agricultura vão entrar na rampa de lançamento.

Um abraço do
Mário


Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX
(e referidos no Boletim Oficial do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1857) (6)


Mário Beja Santos

Com discrição, vai-se introduzindo na colónia uma certa organização administrativa, a despeito da penúria de meios. É o caso da portaria n.º 123-A publicada no n.º 74, ano 1855, de 6 de agosto, temos um Regulamento da Organização Administrativa para a Guiné Portuguesa. Em síntese, o Distrito da Guiné fica dividido em dois concelhos e os concelhos em praças e presídios. A Praça de Bissau, o Presídio de Geba, Bolama e mais pontos dependentes de Bissau, formam o concelho de Bissau. A Praça de Cacheu, os Presídios de Farim, Ziguinchor, o Ponto Alvarenga e os mais dependentes de Cacheu e Presídios anexos, formam o concelho de Cacheu. O Distrito é administrado por um governador residente em Bissau, que será a capital, haverá Comissões Municipais compostas pelo administrador e por vogais.

Compete ao governador fazer tratados de paz e comércio com os gentios, bem como declarar-lhes a guerra nos casos em que o exija a segurança da Guiné Portuguesa ou a dignidade nacional ofendida; regular todos os anos os donativos, presentes, pensões que devem fazer e pagar aos chefes das tribos, ou aldeias, com as quais o Distrito estiver em relações. Haverá um Conselho de Administração, a presidir pelo Governador, um oficial de 1.ª linha mais graduado, tesoureiro, juiz Forâneo e um secretário do Governo. O mesmo regulamento da organização administrativa refere uma Administração Paroquial, prevendo em cada uma das Praças de S. José de Bissau e de Cacheu a existência de um Regedor de Paróquia. Mais refere a Administração dos Grumetes, prevendo em cada Praça ou Presídio a existência de um juiz dos Grumetes.

Estamos em 1856, o n.º 83 do Boletim, com data de 16 de fevereiro, refere que o senhor Comendador Honório Pereira Barreto, Tenente-Coronel de 2.ª linha e Governador da Guiné ofereceu gratuitamente todo o emadeiramento para a construção de um edifício para a residência do Governador da Guiné. Também os negociantes da Guiné Portuguesa, à frente dos quais se acha o seu ilustrado Governador Honório Pereira Barreto, responderam ao convite o Exmo. Governador Geral da Província fazendo donativo de 2:500$000 reis em arroz para socorro dos habitantes de Cabo Verde. Estamos no ano da libertação de escravos e de uma sucessão de fomes e epidemias, mormente em Cabo Verde. Aparecem referências aos Curadores dos Escravos e Presos Pobres.

No n.º 199, do mesmo ano 1856, 31 de outubro, um conjunto de personalidades dirige-se ao Governador Geral agradecendo-lhe a organização administrativa que deu a Bissau, “senão que também a concepção de serem arrematados os direitos das Alfândegas, único meio de obstar a que a Fazenda Pública seja delapidada com manifesto prejuízo dos negociantes de boa fé; os quais, em razão dos enormes direitos, ultimamente legislados, se veriam na dura alternativa de prevaricar ou abandonar o comércio”.

Um dos documentos mais impressionantes que pude ler consta do Boletim Oficial n.º 2, 1857, com data de 23 de março. Escreve o Dr. Francisco Frederico Hopffer, cirurgião de 2.ª classe:
“Com quanto o meu estado de saúde seja valetudinário (com falta de saúde, ou estar enfermiço) sofrendo eu de palpitações do coração e do sistema nervoso de um modo atroz, tudo resultado do meu destacamento de vinte meses na Guiné, de onde há apenas catorze dias regressei, todavia não posso continuar a gozar a licença que me foi concedida, vendo a minha pátria em perigo, pela epidemia colérica que lhe bate à porta. Estou fraco e exausto de forças físicas, mas sobeja-me a vontade de servir aos meus conterrâneos. O tempo das epidemias é o campo de glória para o facultativo, e bem dura nos custa essa glória.
Doente e alquebrado, assentado no hospital, ministrarei os cuidados da minha profissão aos que deles carecem. Se não puder, pela úlcera que ainda tenho nos pés, ir ver os doentes, andando, vê-los-ei numa cadeirinha. Finalmente, quero morrer no meu posto de honra, onde gloriosamente já sucumbiram dois colegas.”


Outra curiosidade, no Boletim n.º 207, ano de 1858, 20 de janeiro, vem do Ministério da Marinha e Ultramar a seguinte informação. Houvera correspondência do ministro dos Estados Unidos na Corte de Lisboa, pedindo que, por motivos relacionados com certas indagações científicas, se obtenham porções de cabelo das diversas raças do homem assim como de todas as espécies animais de que se possam conseguir. Por esta circular, o Governador Geral apela a que se satisfaça o pedido. Os assuntos da escravatura continuam na ordem do dia. No Boletim n.º 208, de 7 de fevereiro, fazem-se referências à atividade da Junta Protetora dos Escravos Libertos, autoriza-se o Governador Honório Pereira Barreto a passar cartas de alforria aos indivíduos que haja ou venha de futuro a haver na Guiné Portuguesa.

E Honório Pereira Barreto continua a ser a figura central da Guiné. No Boletim nº12, 1857, de 31 de agosto, aparecem cópias de duas convenções celebradas pelo Governador Barreto e pessoas notáveis de Cacheu com os gentios de Cacanda e Nagas, segue-se o louvor real. Nesse mesmo Boletim, o rei pede ao Governador Geral o maior escrúpulo na escolha do oficial a quem nomear como Governador de Cacheu, para não se repetirem situações como a que se passara em 8 de julho quando a praça de Cacheu fora atacada pelos gentios de Cacanda, quem repeliu valentemente o ataque foi o administrador do concelho, o governador militar recursara-se determinantemente a dar as proveniências e ordens mais convenientes, o dito Governador ia ser enviado para Conselho de Guerra, tratava-se do 2º tenente Dias. E vem prosa inédita:
“Sua Majestade manda recomendar ao mesmo Governador Geral os melhoramentos convenientes da fortificação de Cacheu, para que não possa facilmente ser surpreendida por qualquer porção de gentios. E vendo-se finalmente o abuso cometido pelo Governador de Cacheu, de guardar o dinheiro que recebia para a compra da lenha, mandando-a cortar pelos soldados sem a pagar; quer o mesmo Augusto senhor que se providencie o abono de lenha e outros semelhantes, por modo que não se repitam tão criminosos abusos. Sua Majestade espera que o Governador da Guiné, que louvavelmente acudiu com toda a prontidão a Cacheu, transportando-se de Bissau onde estava, procurará estabelecer uma polícia severa que evite as desordens que deram ocasião ao ataque de Cacheu.”


No Boletim n.º 5, de 15 de abril relata-se a grande homenagem ao Governador Geral, António Maria Barreiros Arrobas, era Governador há quinze anos e muitíssimo estimado. Nesse mesmo Boletim há o louvor de Arrobas a Honório Pereira Barreto por ter em curto lapso de tempo enviado para Cabo Verde remessas de socorros. Recorde-se que do Boletim n.º 23, de 1858, 24 de março, Barreto pedira a exoneração de Governador. E aqui findam as referências ao ano de 1858 quanto à Guiné Portuguesa.


Edição em língua portuguesa da editora norte-americana Legare Street Press, 2023
Postal ilustrado antigo do rio Geba, não se conhece editora
Entrada de Bissau, do lado sul, cerca de 1914
Este mapa da Guiné Portuguesa consta do trabalho de Georges Courrent, um comerciante estabelecido na Guiné Portuguesa que enviou um trabalho para a revista La Dépêche Coloniale, edição de 15 de abril de 1914
Nunca tinha visto esta imagem de Bissau, vem também na mesma reportagem que se referiu para a ilustração anterior

(continua)

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Notas do editor

Post anterior de 31 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25589: Notas de leitura (1696): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1856) (5) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 3 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25599: Notas de leitura (1697): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P25613: Humor de caserna (63): Em 1971, por uns bons 250 contos (equivalente, a preços de hoje, a mais 75 mil euros), um 1º cabo miliciano arranjava um subsituto para ir para o ultramar


Rui A. Ferreira, o valoroso e 
e "bem amado" comandante
 da CCAÇ 18 (Aldeia Formosa,
jan 71 / set 72)

 1. Sabemos que era assim: quem tinha  cunhas, dinheiro, património, intimidade com o poder (económico, financeiro,  político, militar, religioso...) e outros privilégios, como ser "filho de algo" (dentro da elite do regime) podia, com relativa facilidade, fazer a tropa cá, na "metrópole", a capital do Império,  e evitar o incómodo, a maçada, a chatice, de ser mobilizado para o "ultramar" (ou "ir para fora", como dizia o Zé Povinho).

Lemos e tomámos boa nota de mais uma revelação destes casos, de que se pouca fala (contrariamente aos dos faltosos, refratários e desertores): consta de um depoimento  de um  ex-fur mil, do pelotão de reconhecimento, da CCS/BCAÇ 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73), publicado no livro do nosso saudoso Rui Alexandrino Ferreira (1943-2022) , "Quebo: Nos Confins da Guiné" (Coimbra, 2014, pp. 252/253). 

Na altura era dinheiro: 250 contos dava para comprar uns  quatro automóveis Fiat 127, o carrinho da classe média baixa...Ou um bom andar mobilado na Reboleira, Queluz ou Paço de Arcos do J. Pimenta, pois, pois!

Mas temos que reconhecer que era bem mais caro do que os 10 contos que muito boa gente gente deu, nesse tempo,  ao "passador" para poder chegar a Paris, a salto...

Mas o furriel que conta esta história (e que se formou mais tarde em direito),  não aceitou as "pressões" nem os "argumentos" da sua querida mãe, viúva há dois anos, e que temia pela sorte do filho. No seu depoimento,  de 2008, ele é sincero, dizendo (e honra lhe seja feita!):  

"Confesso que andei indeciso, mas sempre com a sensação de que se pagasse a alguém para ir por mim, me arrependeria toda a vida. (...) Hoje conhecendo-me melhor, tenho a certeza de que não me perdoaria". (...) (páqg. 252).

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Nota do editor:


Vd. também os postes da série:

22 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19127: 'Então, e depois? Os filhos dos ricos também vão pra fora!'... Todos éramos iguais, mas uns mais do que outros... Crónicas de uma mobilização anunciada (8) :A minha cunha era tão frágil., que não rachava um pau de Gamão ou Abrótea (José Colaço)