terça-feira, 22 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26068: Timor Leste: Passado e presente (26): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo V: a situação sanitária em 1945: "valeu-nos a fé em Deus e a confiança nos governos da Colónia e da Nação"

Timor Leste > Parque Dom Boaventura. Comemoração,  dos 20 anos do referendo sobre a independência da Indonèsia (1999-2019). Foto: cortesia de Wikimedia Commons (editada pelo Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)

A estátua de Dom Boaventura foi inaugurada em 23 de novembro de 2012, por ocasião comemoração do 37° Aniversário da Proclamação da Independência (28 de Novembro de 1975 – 28 de Novembro de 2012) e do centenário da Revolta de Dom Boaventura (1912 – 2012).


O temível liurai do reino de Manufahi, Dom Boaventura da Costa (falecido possivelmente em Ataúro, c. outubro de 1912), também conhecido por vezes como Dom Boaventura da Costa Sottomayor, ou só Dom Boaventura. 

Foi o grande líder da revolta anticolonial de Manufahi (dez 1911 / outubro de 1912), que hoje os timorenses consideram um símbolo da resistência contra a dominação colonial (enquanto o Dom Aleixo Corte Real, embora "patriota", chacinado com quase toda a família pelos japoneses, será um exemplo do "colaboracionismo colonialista", não tendo hoje direito a estátua monumental como a de Dom Boaventura (como todos os "heróis nacionais" é representado artisticamente como um gigante, um super-homem).

Boaventura era cristão e falava corretamente português.  A revolta de Manufahi (ao que parece, também alimentada pelos vizinhos colonialistas holandeses) foi sufocada com muito sangue e prisões. Nesta data acabam as "campanhas de pacificação de Timor"... Na Guiné só 20 e tal anos depois...


Foto do Arquivo de História Social > Álbum Fontoura. Imagem do domínio público, de acordo com a Wikimedia Commons. (Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, 2024)



Capa do livro de José dos Santos
Carvalho:"Vida e Morte em
 Timor Durante a Segunda 
Guerra Mundial",
Lisboa: Livraria Portugal,
1972,  208 pp. , il


1. José dos Santos Carvalho exercia as funções de autoridade de saúde   quando o território português de Timor foi invadido e ocupado pelas tropas japoneses, tornando-se em mais um palco de guerra do Pacífico (com Dili depois a ser alvo de bombardeamentos esporádicos por parte da aviação dos Aliados).

 Sobre esse doloroso período (fevereiro de 1942 / setembro de 1945), o médico publicou, 30 anos depois, um livro de memórias,  "Vida e morte em Timor durante a  Segunda Guerra Mundial" (imagem da capa, à direita). Vê-se em todo o caso  que o livro está marcado pela contenção nas confidências e pela autocensura. (Apesar da fugaz  "primavera marcelista", e das mudanças de coméstica do regime político em vigor, continuava a manter-se a censura à imprensa, ao teatro, ao cinema, à rádio e à televisão, bem como às editioras.)

O dr. José dos Santos Carvalho exerceu as funções de chefe interino da  Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em Lahane, nas imediações de Díli,  desde meados de 1943.  Seria natural de Armamar, e devia estar na casa dos 30 e poucos anos. Presumimos também que tivesse uma dupla formação  em medicina tropical e saúde pública.

Fora colocado, em  meados de 1940, em Timor como médico de 2ª classe, do "quadro comum colonial".  Devido à guerra, levou alguns meses a chegar ao território (seguindo pela rota do Cabo). Desembarcou em Díli justamente no fim do ano de 1941.  Celebrou a entrada do novo ano, dividido, tal como a "elite colonial" de Timor, entre duas coletividades, o Sporting e o Benfica... 

O livro que escreveu sobre Timor durante a ocupação japonesa,  baseia-se nas suas vivências,  recordações e registos  pessoais bem como nas memórias de outros portugueses, seus companheiros de infortúnio, como o tenente António de Oliveira Liberato e o deportado político, dr. Carlos Cal Brandão.

Em anexo ao seu livro, com  interesse documental para  a historiografia da presença portuguesa em Timor, o autor publica também os relatórios anuais do serviço de saúde relativos a 1943, 1944 e 1945  (pp. 142-194), dando-nos a conhecer um pouco melhor a nosologia local,  bem  como a  organização e o funcionamento  dos serviços de saúde em tempo de guerra.
 
Os relatórios (com uma introdução cerimoniosa ou protocolar) eram dirigidos  ao governador da colónia,  na altura, o cap Ferreira de Carvalho, que por sua vez, irá publicar, no seu regresso, o "Relatório dos acontecimentos de Timor" (Lisboa, 1947).
 
O livro (disponível em formato digital na Internet Archivee o autor merecem  ser aqui lembrados. Recorde-se que a obra  foi digitalizada e carregada,  em 2010, no Archive.org,  por um sobrinho do autor ("Fernando in Lisbon"). Na dedicatória  lê-se: "Ao Fernando, com um abraço, muito amigo, do tio, José. Lisboa, 2/v/72" (**)

Sobre a situação da saúde da população nessa época e naquele território, bem como sobre a organização e funcionamento dos serviços de saúde naquela longínqua colónia portuguesa do sudeste da Ásia, continuamos a 
reproduzir aqui alguns excertos e apontamentos. 

A sua leitura ajuda-nos a perceber até que ponto a saúde das populações e os serviços de saúde são tão  vulneráveis em situações-limite como a guerra com todo o seu cortejo de horrores, arbitrariedades e privações. Mas também como, entre "inimigos", pode haver sempre algum entendimento e até cooperação no domínio sanitário, por razões "humanitárias"

Pormenor a destacar: de de um "quadro de pessoal" de 52 profissionais de saúde (médicos, farmacêutico,  enfermeiros, auxiliares e praticantes de enfermermagem, bem como pessoal administrativo e  auxiliar), os serviços de saúde de Timor ficaram reduzidos, com a guerra, a uns escassos 12 (tendo perdido cerca de 77%: uns que morreram, outros que abandonaram os serviços).

Estes relatórios têm algo de patético. O seu autor quer ficar bem na fotografia da história mas a verdade é que os serviços de serviço da colónia deixaram praticamente de funcionar, pela cruel realidade da guerra e o forcado acantonamento dos portugueses (em três pontos, Lahane/Dili, Luiquicá e Maubara).  

Já de si mal equipados e insuficientes para acudir a um  população de quase meio milhão de habitantes (com, no início, apenas 4 médicos e 1 farmacêutico. e alguns, poucos, enfermeiros qualificados,...), entre 1942 e 1945 só puderam funcionar pontualmente,  respondendo a alguns casos de emergência médica, e com um único serviço de saúde, digno desse nome, o pequeno hospital de Lahane (o qual tinha um único médico, ao seu serviço... o dr. José dos Santos Carvalho, autor dos relatórios, e que nem sequer teria formação específica, como cirurgião ou internista, era médico de saúde pública).

Dos 28 louvores atribuídos formalmente, pelo Governador aquando da cessação das suas funções, com datas de 10 de outubro  e 21 de novembro de 1945, apenas se contempla um profissional de saúde (o médico de 2ª classe José dos Santos Carvalho). Os restantes são;

  • militares (oficiais, sargentos e praças) (n=10), 
  • pessoal da administração (chefes de posto e outros) (n=10), 
  • deportados (=6),
  • 1 missionário 
  • e o diretor da Sociedade Agrícola Pátria e Trabalho...

Mais tarde, já em junho de 1947, no relatório que fez para o Governo sobre os "acontecimentos de Timor",  o antigo Governador alargou a lista dos portugueses e inclui uma mão cheia de timorenses, vivos e mortos, merecedores do reconhecimento da Pátria portuguesa: são mais de 60 os liurais, chefes de suco, "moradores" (milícias), e outros "indígenas" expressamente citados. Nenhum deles, porém, ligado aos serviços de saúde.

Por sua vez, o liurai de Ainaro, Dom Aleixo Corte Real (1886-1943) já tinha sido contemplado, em 30 de outubro de 1946,  com o grau de comendor da Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, a mais alta distinção do País. 

São os relatórios de saúde, possíveis,  de uma época negra da nossa história, elaboradas por um medico que é antes de mais uma autoridade, e que por isso não podia deixar de estar alinhado, política e ideologicamente com o regime de Salazar. 

Era, além disso, um homem crente: a divina Providência terá protegido a pequena comunidade portuguesa... (mas, feitas as conta, o desastre demográfico foi brutal: um terço dos portugueses e dos timorenses terá morrido, com a guerra, a fome e as doenças).


Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo V:  Relatório dos Serviços de Saúde 
(Ano de 1945) (pp. 168-193) (Excertos)



José dos Santos Carvalho | Relatório respeitante ao período de 1 de janeiro a 17 de outubro de 1945 |

Senhor Governador da Colónia de Timor, Excelência


Terminadas as minhas funções de chefe da Repartição Técnica de Saúde e Higiene, em 16 de Outubro do ano corrente, cumpre-me apresentar a V. Exª o presente relatório, o qual já pôde ser elaborado sem preocupações de que a polícia nipónica o quisesse examinar. 

Tal poderia ter sucedido aos anteriores, os quais, por esse motivo, embora de pleno acordo com a verdade dos factos,  não explanavam, contudo, além de outros pormenores de menos importância, a má ou nenhuma vontade dos japoneses em nos fornecerem os recursos essenciais para mantermos a saúde perfeita da população portuguesa. 

Melhor que ninguém, V. Ex.
 conhece tais assuntos, e é por isso que não se me antolha útil o eu expor, neste relatório, esse aspecto político respeitante à Saúde Pública. (...)

O pouco que se arrancou aos nipónicos à força de diplomacia, coragem e teimosia, foi imenso, atendendo a que eles nada queriam dar-nos; e tanto bastou para nos aguentarmos com vida, embora em condições as mais precárias, até ao dia da paz. 

Estado sanitário da população 

Manteve-se o milagre do ano anterior (*). As previsões pessimistas que eu tive a honra de formular a V. Exª no final do relatório referente a 1944, por extraordinária felicidade e manifesta protecção da Providência, não foram confirmadas. 

Se houve muitas doenças, elas não levaram aos óbitos que seria de esperar, atendendo às circunstâncias, pois a sua percentagem foi muito reduzida, por certo inferior à da Metrópole. 

Qual a explicação? É que não houve doenças infectocontagiosas que, propagando-se, dariam epidemias, as quais atingindo organismos imensamente debilitados, fatalmente provocam grande número de falecimentos.

A população sofreu a doença na sua quase totalidade, porém as doenças amicrobianas constituíram a grande maioria dos casos; foram as moléstias devidas a carência dos princípios nutritivos, que predominaram. O béribéri atingiu quase todos e os casos de avitaminoses frustes foram excessivamente frequentes.

Valeram à maioria dos portugueses a sua fé em Deus e confiança nos Governos da Colónia e da Nação, o que lhes deu ânimo e alento  (...).

Vejamos sumariamente, agora, os factos mais importantes referentes a saúde pública em cada um dos meses: 

  • Janeiro - Registaram-se vários casos de doença grave por hipoalimentaçao. As moléstias mais frequentes foram: sezonismo ulceras tropicais, edema dos membros inferiores (beribéri),[ilegível],  diarreias (devidas a alimentação imprópria) . Em Lahane morreram duas chinesas, há muito tempo internadas, profundamente atacadas pelo beribéri. 
  • Fevereiro - Aumentou o número de doentes com edema dos membros inferiores e da face. (...)
  • Março - Começaram a morrer os doentes de avitaminoses; as resistências orgânicas estão esgotadas.  (...)
  • Abril - Regista-se o primeiro caso de escorbuto, num europeu, em Liquiçá. Começam a observar-se casos nítidos de raquitismo, nas crianças (...)  
  • Maio - As doenças por carência alimentar alastram tanto, que atingem quase todos. O estado sanitário dos portugueses de Liquiçá é tão grave que os próprios japoneses mandaram um seu médico observá-los. Este, secundado por um enfermeiro, examinou e deu alguns medicamentos a 79 doentes e fez curativos a feridas e úlceras. Os tratamentos feitos consistiram em injecções de vitamina B1, e em distribuição de papéis dessa vitamina em concentrado sólido, de óleo de fígado de bacalhau e de comprimidos de aspirina.  (...)  
  • Junho (...) | Julho (...) | Agosto (...)
  • Setembro - O estado sanitário da população melhorou consideravelmente devido à alimentação farta e à frescura do clima. Esta deu origem a alguns casos de gripe e bronquites. Não houve óbitos. 
  • Outubro - Com a paz, os portugueses de Lebomeu, foram distribuídos por Liquiçá, Maubara e Díli, tendo feito as viagens já em boas condições. (...)

Movimento cirúrgico 

Durante o ano não houve casos de doença que necessitassem tratamento por alta cirurgia ou material especial. Por isso, não nos vimos na contingência de pedir auxílio aos nipões. Eles é que, por sua vez, precisaram da nossa ajuda. 

Conforme, na ocasião, tive a honra de informar a V. Ex.ª foi solicitada a minha atuação no hospital japonês, no dia 29 de maio, para operar uma mulher javanesa que tinha dado á luz no dia anterior e conservava ainda as secundinas do útero, do que não tinha sido socorrida, por causa dos médicos japoneses então em serviço, não terem conhecimentos de obstetrícia. Forneceram todo o material que eu requisitei e assistiram à operação, que decorreu o melhor possível.  (...)

Estado sanitário da população portuguesa, concentrada,  ao terminar a guerra

Embora nos últimos tempos a alimentação tivesse melhorado é facto que,  quando a hora da paz soou, os portugueses se encontravam ainda em estado de evidente inanição. 

Espectros, nos chamou o ilustre escritor Ferreira da Costa. Em quase todos observei os seguintes sintomas: 

  • «Emagrecimento extremo,
  • pele transparente colada aos ossos,
  • cor palidíssima,
  • olhos encovados e sem brilho,
  • andar incerto,
  • tronco curvado,
  • ausência de vigor físico,
  • depressão da vontade,
  • memória apagada,
  • músculos atrofiados,
  • cárie ou queda dos dentes,
  • edemas maleolares ou faciais,
  • palpitações cardíacas aos menores esforços. "

Como explicá-los? Pela fome. As deficiências de nutrição, já apontadas, nesse e nos anteriores relatórios, levaram-nos à miséria orgânica e acabariam por nos dar morte natural o que, por certo, era plano dos nipões, pelo menos até ao dia em que se convenceram de que perderiam a guerra. 

Veio a paz. Pudemos de novo alimentar-nos e foi ainda a terra ubérrima de Timor que nos forneceu os alimentos de que carecíamos. Voltamos a saborear arroz fresco, frutos, legumes e hortaliças, batatas, leite, ovos e carne. Os nossos organismos começaram a refazer-se. 

Porém, em minha opinião, serão necessários vários anos para alguns poderem recuperar por completo a saúde primitiva, pois outros já não o conseguirão. 

É necessário tratar e amparar os convalescentes de Timor. Se tal fosse possível seria magnífico que os doentes fossem examinados e medicados gratuitamente, hospitalizando-os se necessário, e quando em convalescença se lhes desse, até cura completa, repouso em sanatórios ou casas de saúde ou subsídio razoável para poderem viver confortavelmente e com alimentação substancial, em clima favorável. 

Visto se notarem doenças dentárias em todos os portugueses que sofreram a guerra em Timor, o que foi resultado de vários factores, como a quase ausência de vitaminas A, C e D na alimentação, a falta de escovas e de pós ou pastas dentífricas, e ainda ao facto de as doenças dos dentes, nomeadamente as cáries, não poderem ser tratadas, por não haver médico especializado na Colónia — e se o houvesse não teria o material preciso — é necessidade urgente para eles o tratamento odontológico, o que obrigará a despesas que a magríssima bolsa da maioria não comporta. 

Também seria de aconselhar que, pelo menos aos suspeitos fosse radiografado o tórax, para pesquisar as formas de tuberculose com sintomas apagados, devendo ser internados em sanatórios aqueles que se verificasse serem portadores daquela terrível doença. 

Estado sanitário da Colónia de Timor depois de terminada a guerra 

Sabe-se que morreram muitos milhares de timorenses durante a guerra, uns assassinados, outros por doença, outros por falta de alimentos. 

Os japoneses obrigaram a população nativa a trabalhos esgotantes, não tendo poupado as mulheres e mesmo os velhos e as crianças. Não atendiam a meios para poderem manter as estradas próprias para a viação, mesmo na época pluviosa, e para cultivarem intensivamente as hortas, donde tiravam o arroz e hortaliças para as rações dos soldados e reservas para o futuro, como se verificou ao encontrarem-se, no fim da guerra, espaçosos armazéns, cheios de alimentos. 

Nestas condições não lhes convinha dar ração aos trabalhadores, que morriam de fome. 

Os timorenses, como em outras épocas de guerra, recorreram ao sagú para se alimentarem, pois a providência dotou largamente as regiões do litoral de Timor com várias espécies de palmeiras, cuja medula, depois de preparada, dá aquela preciosa fécula. 

A história repete-se. Lendo os relatórios dos chefes militares que dominaram a revolta de Manufahi em 1912 (***), lá encontramos registado este facto, assim como a noticia de grandes epidemias de sarna e boubas, exatamente como agora. A sarna e as boubas são doenças da miséria. 

Como os timorenses não tinham possibilidades de adquirir panos e sabão, cobriam o corpo com farrapos imundíssimos. Além disso, as condições da guerra facilitam imenso a promiscuidade, o que favorece o contágio. Daí, as pandemias observadas. 

A sarna,  não tratada em Timor,  rapidamente atinge aspectos de gravidade, absolutamente desconhecidos nos países temperados. Esta dermatose alastra por toda a pele de uma maneira incrível, não poupando a face e pavilhões auriculares, e revestindo uma forma papulosa, sintomas que raríssimas vezes se podem observar nas regiões não tropicais. 

 O prurido torna-se insuportável, mesmo para o timorense, tão habituado a suportar os parasitas. O coçar repetido com unhas sujas dá origem a escoriações da pele que rapidamente se inflamam e ulceram, ficando o corpo cheio de chagas repelentes. Depressa se dá a invasão do sangue pelos micróbios. E essas septicémias são quase sempre mortais se não forem tratadas. 

Foi um assinalado favor da Providência, o terem restado no Hospital Dr. Carvalho razoáveis quantidades de enxofre e vaselina. Deste modo pudemos acudir prontamente aos europeus e timorenses na zona de concentração, quando a sarna aparecia entre eles, e mesmo a timorenses do interior que conseguiram mandar-nos portador. 

As boubas, doença que constitui um dos grandes flagelos que afligem os timornses, alastraram de maneira inacreditável, devido aos japoneses não tratarem senão os seus compatriotas. 

Felizmente para nós, também, todos os casos desta doença, que se deram na zona, foram imediatamente curados, pela injecção de suspensão de salicilato de bismuto em óleo de coco, segundo o método de que falei nos relatórios anteriores. 

As epidemias de disenteria mataram muita gente, segundo me informaram. A tuberculose, entre os timorenses, também tomou grande incremento. 


Houve doenças introduzidas em Timor pelas tropas japonesas

 (i) Dengue 

Em 1943, um médico nipónico apareceu no Hospital Dr. Carvalho, a informar-se se entre os portugueses havia dengue, e se nos anos anteriores a doença era conhecida na Colónia. As minhas respostas foram negativas. 

Então ele insistiu, dizendo que havia casos de dengue entre os soldados japoneses, ao que eu retorqui, explicando esses casos pela vinda quase diária de navios ao porto de Díli, nos quais podiam vir soldados doentes (quer nos períodos evidentes da doença, quer durante o período de incubação) e os mosquitos transmissores, os Aêdes aegypti (Stegomya fasciata). 

Dediquei-me, então, com todo o interesse, à procura desses mosquitos, pois até então, não os tinha visto em Timor. O resultado foi infrutífero. Encontrei muitos mosquitos do género Aedes, mas a espécie acima citada, não apareceu. Durante a guerra, nao houve casos de dengue entre as pessoas tratadas pelos médicos portugueses.

 (ii) Bilharziose japonesa 

As diferentes bilharzioses, tão frequentes em África, não tinham, até à guerra, aparecido em Timor. Uma delas, a schistosomíase oriental, muito espainada no Japão, provoca nos doentes cirrose hepática, acompanhada de ascite e esplenomegalia. 

Ora registaram-se três casos com estes sintomas (dois sm Liquiçá e um em Díli) que podem ser considerados suspeitos. O laboratório poderia resolver o problema, mas não o possuímos... É assunto a estudar, agora que há recursos consideráveis.

 (iii) Sodoku 

Pouco tempo depois da chegada dos japoneses a Timor, em março de 1942, tive ocasião de diagnosticar e tratar, em Baucau, onde nessa época era Delegado de saúde, três casos de «sodoku», uma doença inoculada pela mordedura dos ratos, a «rat-bite fever» dos autores ingleses. 

Mais tarde, em Quelicai, o dr. Correia Teles encontrou outro caso.  Seria, pois, razoável, a hipótese de que os ratos infectantes tivessem feito viagem nos transportes japoneses, pois, até aí, a doença era desconhecida em Timor. 

Porem até ao aparecimento da moléstia, os barcos nipónicos somente aportavam a Díli, não tendo havido deslocamento de tropas para oriente, na direção de Baucau. Para mim, foi uma coincidência. 

Apareceu uma doença nova na Colónia, com nome em língua japonesa, em ocasião da presença de tropas nipónicas no território. Mas torna-se necessário considerar que o nome em japonês, embora sugestione, não quer dizer que a moléstia é própria do Japão, pois têm-se visto casos dela em todos os continentes e existe frequentemente nas vizinhanças de Timor, onde há bastantes anos é conhecida (índias Holandesas, Austrália e Filipinas). 

Em minha opinião, a doença tinha passado desapercebida até então, não só por ser rara, mas ainda por a lesão infectada, no sítio da mordedura, justificar, aparentemente a febre recorrente que o doente apresenta. 

(iv) Difteria 

Era doença que ainda não tinha sido diagnosticada na Colónia. Em Liquiçá houve, em 1943, uma epidemia de anginas e laringites. Ora, o pai de uma das crianças que faleceram, o deportado José Serafim Martins, apresentou, em seguida à morte da filha, uma coriza renitente que passou; porém durante meses sofreu de graves perturbações da deglutição, pois os alimentos passavam-lhe da boca para as fossas nasais. 

Isto foi explicado por mim, pela hipótese de que se tratava de uma paralisia do véu palatino, cuja origem provável seria uma difteria. Fica aqui a hipótese registada para, de futuro, se investigar o bacilo diftérico nas anginas. (...)

(v) Doenças que é de temer terem sido veiculadas velos soldados 

No Japão são frequentes as seguintes moléstias, que podem ter sido trazidas para Timor: variadas helmintíases, disenteria abiana, leptospiroses, tifo, cólera e encefalites.

Das três últimas, pelo menos, deve a Colónia estar livre, pois não consta que tenha havido epidemias, com sintomas que as lembrem. 

Em resumo, parece que a estadia das tropas japonesas em Timor, em pouco afectou o quadro nosográfico da Colónia. Na visita de investigação que eu e o dr. Costa Félix fizemos à região da Fronteira, nada encontrámos que modificasse esta opinião. 

Medicamentos recebidos dos japoneses 

  • Em 10 de janeiro— 20 Kg. de açúcar (para a preparação de xaropes). 
  • Em 6 de fevereiro — 10 frascos de 350 tablóides de 0,30 grs. de quinino. 
  • Em 15 de abril— 10 frascos de 350 tablóides de 0,30 grs. de quinino. 
  • Em 20 de junho — 5 frascos de 350 tablóides de 0,30 grs. de quinino. 
  • Em 26 de julho — 3 frascos de 500 tablóides, de 0,222 de quinino, e 2 frascos de 350 tablóides, de quinino. 
  • Em agosto — Foram entregues ao Delegado de Saúde de Liquiçá: 30 ampolas de óleo canforado, alguns comprimidos de atebrina e pequenas quantidades de algodão hidrófilo, gaze, ataduras, álcool e quinino. 
  • Em 4 de agosto— 10 frascos de 400 tablóides de 0,30 grs. de quinino. 
  • Em 27 de agosto — Vários medicamentos, 20.000 tablóides de 0,30 de quinino e algum material de penso. 
  • Em 5 de setembro — Uma nova remessa de medicamentos e material cirúrgico. 
  • Em 7 de setembro — 335.750 tablóides de quinino. 
  • Em 10 de setembro — Vários medicamentos de uso veterinário, sendo úteis sobretudo, muitos fras-cos de desinfectantes (cresil e formalina) . 
  • Em 2 de outubro — 319.840 tablóides de quinino e bastante material de penso. 

Os medicamentos entregues pelos japoneses, no final da guerra, foram fornecidos «ad hoc», pois eles nada se importaram com as várias listas de remédios e material imprescindíveis, que foram por mim elaboradas e insistentemente reclamadas por V. Exª . 

Muitos deles vinham deteriorados e alguns não podiam ser por nós utilizados, por me ter sido impossível identificá-los, embora com bastante trabalho, pelo facto de terem somente rótulo em caracteres japoneses.

Pediu-se ao vice-cônsul sr. Suzuki para mandar um médico japonês ao Hospital Dr. Carvalho, com o fim de me elucidar, mas, mesmo assim, houve falhas, devido ao pouco conhecimento do médico nas línguas inglesa ou alemã e à sua manifesta incapacidade em matéria de Farmácia. 

Os trabalhos de seleção e contagem dos tablóides de quinino, e a arrumação dos medicamentos em frascos e latas, foram exaustivos, devido à extrema necessidade de evitar a sua deterioração. (...)

Ocupação sanitária da Colónia  ao terminar a guerra 

Ao conhecer o fim da guerra, viu V. Ex.ª  a urgentíssima necessidade da imediata e pronta ocupação do Timor Português, utilizando aqueles que, apesar de tudo, se tinham mantido na Ilha. 

V. Ex. a ordenou, e tanto bastou para que todos seguissem a ocupar os seus postos. Indicado o problema por V. Exª , organizei um esquema da Colónia, dividindo-a em áreas, para cada uma das quais foi enviado um enfermeiro disponível. 

Os dois médicos ficaram no Hospital Dr. Carvalho, prontos a tratarem os doentes ou feridos que lhes mandassem do interior e a seguirem para aí no caso da sua presença ser necessária.

Deste modo pôde, rapidamente, fazer-se um esboço de assistência às populações timorenses que há tanto tempo dela necessitavam. Cada enfermeiro levou instruções pormenorizadas sobre a sua zona de acção e trabalho a fazer, ficando subordinado, em parte, às autoridades administrativas, o que se fez por não poder haver Delegados de Saúde no interior da Colónia e por ser necessário que as autoridades locais tivessem facilidade em resolver todos os assuntos com a prontidão con- veniente. 

Graças aos fornecimentos já então recebidos dos nipónicos, foi possível dar a cada enfermeiro o preciso, em medicamentos e material cirúrgico e de penso, para tratar sezonismo, sarna, boubas, disenteria, gripe, úlceras tropicais e feridas, e sintomas frequentes em Timor. 

Todos foram munidos de seringas e agulhas, para injecções. Levaram também boa quantidade de drogas desinfetantes e desinfestantes, para poderem sanear as casas que iam ser habitadas pelos portugueses da reocupação. 

Enfim, com muito trabalho, mas com imensa alegria, puderam enviar-se,  para toda a Colónia, socorros sanitários consideráveis. (...) 

A Colónia ficou assim dividida em 18 zonas de assistência sanitária, onde se trabalhava, a quando da vinda das forças portuguesas, com zelo e eficiência. 

O destacamento sanitário em Timor 

Chegadas as tropas portuguesas, em 29 de setembro, com um destacamento sanitário constituído por vários médicos e enfermeiros, munidos de bastantes medicamentos e material, cessaram as essenciais preocupações dos clínicos de Timor. Uma das principais, que era o aparecimento da varíola entre os portugueses, pôde ser imediatamente afastada. 

Foi-nos fornecida prontamente, a meu pedido, toda a vacina necessária, pelo que pudemos imunizar muita gente contra aquela terrível doença, a qual, felizmente, não atacou ninguém na zona de concentração, durante a guerra, facto que é certamente de agradecer aos cuidados da Repartição de Saúde, que todos os anos mandava praticar a vacinação, no tempo de paz. 

A comandar o destacamento, veio o dr. Costa Félix , «gentleman» irrepreensível com quem tive grande gosto em colaborar, informando-o de todos os problemas que ele teria de enfrentar, e das soluções que, a meu ver, seriam convenientes. 

Deste modo dei-lhe os elementos que me pareciam úteis de nada fazendo reserva. Os relatórios, os meus estudos sobre alimentos e medicamentos timorenses, as ideias e esquemas sobre a reorganização dos Serviços de Saúde, as lições de enfermagem, os estudos sobre a epidemiologia e meteorologia de Timor, tudo pus à sua disposição para lhe facilitar a tarefa. 

A seu convite, e com plena aprovação de V. Exª,  tive o prazer de o acompanhar na sua primeira visita ao interior da Ilha, para examinar diretamente as condições sanitárias dela. Foi escolhida a região da Fronteira, precisamente aquela em que tinha havido rebelião. 

Seguimos, sem uma arma, viajando, algumas vezes, de noite, não tendo o menor receio, firmados na certeza de que os portugueses sabem captar o coração do indígena conforme V. Exª disse no inesquecível discurso, pronunciado em Díli, perante o comandante das tropas australianas. 

O meu físico, então muito enfraquecido pela miséria e fome, nada sofreu, antes pelo contrário. Tratava-se de um serviço a cumprir, o que fiz com todo o gosto. Visitámos a Ermera, Fátu-Bessi, Lebo-Meo, Hátu-Lia, Atsabe, Bobonaro, Marobo, Memo, Balibó, Batugadé, Beco, Suai, Tilomar e Fóhorem.

À maioria destes postos, não haviam chegado as nossas tropas e alguns não tinham sequer um europeu para nos receber. Em quase todos comemos e nalguns dormimos com as portas abertas e sem qualquer guarda. 

Entrega da Repartição ao dr. Costa Félix

 Por portaria de V. Exª , de 16 de outubro de 1945, fui exonerado de chefe da Repartição Técnica de Saúde e Higiene de Timor, pelo motivo do meu regresso à metrópole, tendo feito entrega, ao sr. dr. Francisco José de Lacerda Costa Félix,  dos documentos da Repartição, com exceção daqueles referentes ao período da guerra, que não é necessário ficarem em Timor, e que podem ser precisos em Lisboa, se, para esclarecimento de algum assunto, houver necessidade de os apresentar. 

(...) O material, roupas e medicamentosforam postos a disposição da secção de farmácia do Destacamento Sanitário, poucos dias depois da sua chegada, tendo o chefe respetivo, capitão farmacêutico miliciano, Mário Artur Borges de Oliveira, inventariado e arrumado tudo, conforme o seu critério e saber profissional. e Hi- 1 Capitão-médico dr. 

Funcionamento burocrático  da Repartição Técnica de Saúde e Higiene 

A todos os assuntos que correram pela Repartição, se pretendeu sempre dar andamento rápido, seguindo-se as regras do tempo normal. Em certos casos tal era impossível, o que, a meu ver, em nada prejudicou o serviço. Foram precisos diplomas especiais do Governo da Colónia, para resolver problemas de emergência, como por exemplo, o que criou os cursos de enfermagem durante a guerra. 

A Delegação de Saúde de Liquiçá recebia ordens e instruções da Repartição, por notas de serviço, e informava do mesmo modo. O Chefe da Repartição pôde sempre, rapidamente, despachar com o Governador da Colónia. 

Apesar das dificuldades, nem o Estado, nem os particulares perderam, por deficiência burocrática. No arquivo da Repartição, poder-se-ão ver as informações e propostas ao governo da Colónia, a correspondência com a Delegação de Saúde e com as Repartições de Saúde e com as Repartições de Fazenda e do Gabinete e os pormenores dos diversos trabalhos, cujas linhas gerais foram descritas no presente e nos dois antecedentes relatórios. 

Relações com os japoneses 

A princípio, até 5 de setembro de 1942, nos edifícios do Hospital Dr. Carvalho, encontravam-se somente portugueses. As tropas nipónicas conservavam-se em Díli. Porém, naquela data, estando eu em Lahane, substituindo o dr. Rodrigues, para o que me tinha oferecido, chegaram consideráveis forças nipónicas, tendo o seu comandante, um capitão vindo ter comigo. Portando-se com correcção, mas com toda a frieza, falando inglês razoável, disse que vinha ocupar parte dos edifícios do Hospital, que não era necessária para nós, e por isso, pedia para eu imediatamente mandar desocupá-la. 

Tentei convencê-lo a que não ocupasse, ao menos, os edifícios mais próximos dos portugueses, mas tudo foi em vão. Instalaaram-se assim: no pavilhão da 3ª classe; no pavilhão de mulheres; no pavilhão de doenças infecciosas, que estava quase concluído e na casa da residência do Chefe dos Serviços de Saúde,  Compreender-se-á bem o que isto significou para nós. Até aí estávamos separados dos nipónicos. Agora tínhamos quase de conviver com eles. 

Ficámos somente com o edifício principal do Hospital, as suas dependências, e a casa mortuária. Uma limitadíssima área de terreno circunjacente, ficava à nossa disposição incluindo o pequeno jardim. Mas nem este escapou. 

Passados dias vieram dizer-nos que iam construir abarracamentos para as tropas, encostados ao nosso Hospital. Depois de muito trabalho, o Administrador do Concelho, Engenheiro Canto, convenceu-os a construirem-nos no jardim, o que foi feito, ficando situados a menos de dez metros de nós. 

Só quem passou aqueles maus bocados pode compreender a nossa situação. Com japoneses ao lado, poderiam vir mais tarde as suspeitas e acusações de que «estávamos com eles» . Os australianos, vendo as novas construções, certamente viriam destruí-las com a sua aviação, e pobres de nós. Tudo isto foi ponderado. 

Porém, ninguém arredou pé. Era preciso mantermo-nos no Hospital, em que sempre tremulou a bandeira portuguesa; e, deste modo, nunca seguimos para Liquiça, o que foi muitas vezes «aconselhado» pelos japoneses Foi desta maneira que, ao fim da guerra, as nossas tropas encontraram um bom edifício para os doentes. 

Sofremos em Lahane, muitas dezenas de bombardeamentos. Algumas, foram pertíssimo. Os vidros e persianas das janelas ficaram estilhaçados, e o telhado de zinco muito furado por várias vezes. Todos se mantiveram no seu posto. Os japoneses instalaram nos edifícios que ocuparam, não só o seu hospital, mas também tropas armadas, o que certamente era do conhecimento dos aliados. Construíram à roda do hospital português mais de quarenta barracões cobertos a zinco, que pretenderam camuflar com folhas de palmeira, mas que eram perfeitamente visíveis do ar. A maioria deles foi destruída pelas bombas australianas e americanas. 

O comando das tropas japonesas nossas vizinhas, era de um médico. Este e os seus colegas, diferiam muito dos outros oficiais nipónicos. Eram mais atenciosos e corretos. Tratavam-me com certa delicadeza, quando comigo falavam nas línguas inglesa ou alemã, mas sem familiaridades, o que, de resto, era o que eu desejava. 

Deste modo, em Lahane, o pessoal dos Serviços de Saúde não sofreu vexames, por faltas de consideração. Por várias vezes vieram médicos procurar-me pedindo informações acerca da nosologia de Timor, das suas plantas medicinais e da organização dos serviços de saúde portugueses, as quais eu dava, nas suas linhas gerais. 

De quando em quando, aparecia a polícia nipónica, a qual era recebida pelos funcionários da Administração do Concelho de Díli, que estava instalada no edifício do Hospital.  Os soldados japoneses, às vezes, também entravam no hospital, ou queriam meter conversa. Felizmente nunca abusavam demasiadamente. A época pior foi aquela em que estivemos com guarda à vista, o que depois soubemos ter sido motivado pela cedência de bases nos Açores aos Aliados.

 Tivemos que entregar a casa mortuária, para a instalação da guarda. Esta fazia rondas permanentes, o que nos perturbava o sono durante a noite, devido ao barulho produzido pelo arrastar das botas ferradas das sentinelas. 

A nossa revolta era imensa, por nos vermos presos, como é obvio. Do Consulado do Japão, vizinho do nosso hospital,  foi pedida por várias vezes, a minha assistência ao cônsul Hossokawà e ao vice-cônsul Sr. Suzuki, o que fiz, depois de autorizado por V. Ex* , atendendo aos deveres humanitários da minha profissão e à necessidade de mantermos boas relações com o consulado. . . . 

Felizmente nunca o exército japonês exigiu ou pediu qualquer serviço aos dois médicos portugueses, a prestar aos seus oficiais ou praças. 

Serviço de Saúde, no território do enclave de Oecussi 

Este território ficou isolado com o desenrolar dos acontecimentos da guerra. Somente a princípio foi possível enviar-lhe medicamentos. 

Mais tarde pediu-se ao consulado do Japão, para mandar para aquela região, medicamentos que se lhe entregaram.  Estes nunca lá chegaram. Os dois enfermeiros auxiliares Francisco da Silva e Mateus Rodrigues Pereira, mantiveram-se sempre no seu posto prestando os seus serviços com muita eficiência, embora quase sem medicamentos. 

Comportamento do pessoal dos Serviços de Saúde 

Os médicos e enfermeiros produziram o máximo, para poderem mitigar os sofrimentos dos portugueses. Nenhum deles gozou qualquer licença, nem a requereu, durante o estado de guerra. Não foi necessário pensar em sanções disciplinares, pois nao houve faltas, o que muito me apraz registar. Todos cumpriram o seu dever profissional. 

Resumo da actividade dos Serviços de Saúde durante a guerra 

Trataram-se os doentes, aproveitando-se todos os recursos; o numero de óbitos de europeus, foi extraordinariamente reduzido, atendendo às circunstâncias. No Hospital Dr. Carvalho não faleceu qualquer europeu.

Deram-se à população os conselhos convenientes, para evitar, tanto quanto possível, as doenças previsíveis. Investigaram-se os recursos medicamentosos e alimentares existentes em Timor e de possível utilização prática, a meteorogia da Ilha, a sua epidemiologia, a sua etnografia médica, trabalhos das minhas horas vagas. Instruíram-se enfermeiros para os quais preparei lições dactilografadas. 

 Forneceram-se ao governo da Colónia, os elementos necessários para poder pedir aos japoneses, com conhecimento de causa, o essencial em medicamentos e alimentos Estudaram-se e expuseram-se ao Governo da Colónia, na devida altura, os problemas e as dificuldades, que era necessário resolver, a bem da Saúde Pública. Fez-se uma eficiente ocupação sanitária da Colónia, antes da chegada das tropas expedicionárias. 

Forneceram-se ao Destacamento Sanitário, as convenientes informações para imediatamente poder entrar em acção consciente. 

Hospital Dr. Carvalho, em Lahane, aos 16 de Outubro 1945. O Chefe da Repartição, int.°, José dos Santos Carvalho 

______________

Pessoal dos Serviços de Saúde, morto por causa violenta ou na prisão, durante a guerra (n=12)

Dr. José Aníbal Torres Correa Teles — Médico de 2. a classe 

Dr. Diniz Ângelo de Arriarte Pedroso — Médico de 2. a classe, contratado

Serafim Joaquim Pinto — Enfermeiro de 1ª classe 

Alcino José Gregório Madeira —Ajudante de enfermeiro

Fernando José Maria Senanes — Ajudante de enfermeiro 

Afonso Borges Gomes  — Praticante de enfermeiro

João da Costa Tilman  — Enfermeiro auxiliar (prestava serviço na ambulância de Ainaro)

Domingos Soares  — Ajudante de enfermeiro auxiliar (Aguardava aposentação)

Mário Alves Rebelo  — Ajudante de enfermeiro auxiliar (Morto na Hátu-lia)

Domingos Alves de Sousa   — Ajudante de enfermeiro auxiliar (Prestava serviço na ambulância do Beco)

 Pessoal dos Serviços de Saúde, falecido durante a guerra (n=3)

Manuel Turquel dos Santos — Enfermeiro de lª classe. Morreu afogado numa ribeira de Barique, em 1943 

Victor José Gregório Madeira  — Enfermeiro de 1." classe Faleceu em Liquiçá, em 19 de Abril de 1945.

José Luiz de Oliveira — Ajudante de enfermeiro aposentado. Faleceu em Liquiçá, em 20 de Julho de 1945 

Pessoal dos Serviços de Saúde, que passou para a Austrália (n=5)

Mário Artur Borges de Oliveira — Farmacêutico de 1ª classe 

José Gonçalves Ricardo — Enfermeiro-mo

Marcelo José Nunes —Enfermeiro de 1ª classe 

Francisco Xavier dos Remédios — Enfermeiro de 1ª  classe

 Alfredo Maria Borges — Praticante de enfermeiro 


Pessoal dos Serviços de Saúde que, tendo ficado em Timor, ainda não se tinha apresentado até 16 de Outubro de 1945 (n=2)

Viriato José Pereira Mestre —Praticante de enfermeiro. (Constou-me que estava louco, em Barique, quando acabou a guerra) 

Paulo Gama —Enfermeiro auxiliar 

(...) Pessoal de enfermagem que se apresentou ao serviço depois de terminada a guerra (Até ao dia 16 de Outubro) (n=18)

Categoria / Nome / Data da apresentação 

Praticante de enfermeiro Luís António Nunes Rodrigues 4/9/945 

Enfermeiro auxiliar Lamberto da Silva Boavida 25/9/945 

Enfermeiro auxiliar Francisco Alves Gomes 18/9/945 

Enfermeiro auxiliar Mário Viana Andrade 13/10/945 

Ajudante de enfer.° auxiliar Manuel Sarmento 19/9/945 

Idem, José Cunha Gusmão 2/10/945 

Idem,  Santiago da Silva 19/9/945 

Idem, Mateus Costa Ximenes 23/9/945 

Idem, Mateus Soares 11/9/945 

Idem, Joaquim Jacob Fernandes 20/9/945 

Praticante de enfer.° auxiliar Bernardino Inácio Soares 2/10/945 

Idem, José Raimundo Guterres 26/9/945 

Idem, Daniel da Piedade 2/10/945 

Idem, João Sousa Ribeiro 1/10/945 

Idem, Cláudio Boavida 

Pessoal Auxiliar

25/9/945 Chauffeur Cândido Gusmão 

18/9/945 Servente Alberto Soares 

20/9/945 Servente Domingos Alves  (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto, negritos, título: LG)

________


Notas do editor:

(*) Últmo poste da série > 17 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26053: Timor Leste: Passado e presente (25): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo IV: a situação sanitária em 1944: "um presente desolador e um futuro sombrio"...

(**) Vd. poste de 26 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25683: Timor-Leste, passado e presente (9): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Parte I


(...) "Revolta do Manufahi ou Guerra do Manufahi (tetum: Funu Manufahi) foi um conflito armado entre a administração colonial portuguesa de Timor Português e forças do reino de Manufahi e reinos vizinhos, que lideradas pelo liurai D. Boaventura da Costa, se sublevaram nos finais de 1911. 

"A revolta iniciou-se a 24 de dezembro de 1911, com a morte do comandante do destacamento militar de Same, o tenente Luiz Álvares da Silva, do comandante militar de Faturberliu e de alguns europeus, tendo o conflito armado durado até outubro de 1912, terminando com captura e exílio do liurai e o fortalecimento do poder e influência do governador Filomeno da Câmara e da administração colonial portuguesa na região. 

"Os relatórios oficiais da administração colonial portuguesa contam 12567 timorenses prisioneiros e 3424 mortos, com a perdas das tropas coloniais a ascenderem a 289 mortos e 600 feridos. 

"Estima-se que, como resultado da rebelião de Manufahi,  15000 a 25000 pessoas foram mortas, o que representa mais de 5% da população então estimada de Timor Português." (...)

Guiné 61/74 - P26067: Tabanca dos Emiratos (12): "Prova de vida" (Jorge Araújo)









Emiratos Árabes Unidos > Abu Dhabi > 2024 > Uma visita ao "SeaWorld",na Yas Island

Fotos (e legenda): © Jorge Araújo (2024). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné].



Jorge Araújo, ex-fur mil op esp / ranger, CART 3494 / BART 3873 (Xime e Mansambo, 1972/1974); nosso coeditor, a viver há uns anos entre Almada e  Abu Dhabi, Emiratos Árabes Unidos. É um dos nossos coeditores. Como autor, tem mais de 320 referências no nosso blogue. Tem várias séries: "Tabanca dos Emiratos", "Memórias cruzadas...", "(D)o outro lado combate"...


1. Mensagem de Jorge Araújo, nosso coeditor, que um grave problema de saúde, do foro oftalmalógico,tem afastado há mais de um ano das nossas "lides bloguísticas". Há dias mandei-lhe uma telegráfica mensagem com o seguinte teor: "Jorge, estou preocupado com o teu/vosso silêncio... Diz que estás bem, tu e a tua Maria... nas Arábias. Um abraço fraterno, Luís" (segunda, 14 de outubro de 2024, 10:28).


Data - 21/10/2024, 12:14
Assunto - O teu silêncio

Caríssimo camarada e amigo Luís Graça,
Bom dia desde as Arábias (aqui são + três horas).

Antes de mais espero e desejo que te encontres bem, ao mesmo tempo que agradeço, sensibilizado, as preocupações manifestadas no contacto da semana passada relativas aos meus/nossos silêncios.
É verdade que me encontro, de novo, neste lado do mundo, onde cheguei há um mês, sem ter formalizado, por escrito, a renovação da "prova de vida". Por esse facto, não sei por onde começar: se antes ou depois do início desta nova (versão) da "operação deserto",

Mas como os nossos convidados regressaram ontem à capital Lusa, aqui vão algumas notas bem quentinhas, com uma temperatura no exterior de 36º. Entretanto, e pelo facto deste contacto ser considerado tardio, ele deveria dar lugar a uma punição, tipo "Serviço à C.O.L." (Clube Oriental de Lisboa) ou à "S.C.L." (Sporting Clube Lourinhanense) , colectividades que esta época são equipas adversárias na mesma competição.

Dito isto, importa referir, como ideia de senso comum, que aqui os tempos e os quotidianos da vida individual e colectiva são diferentes quando comparados com outros lugares e culturas. Por isso, são passados e vividos de outras formas, com outros ritmos, de modo a aproveitar e a fruir as diferenciadas ofertas que se nos apresentam, ganhando tempo e espaço ao foco nas nossas origens.

Quanto à minha visão, ela continua aquém das minhas expectativas mas, como reza a história da medicina, cada um de nós não caminha para novo. Perante esta teoria, o que deveremos fazer? Continuar na busca do que não se tem, pois somos projecto e processo único.

Agora que está concretizada a renovada prova de vida, anexo algumas imagens avulsas, onde os diferentes contrastes falam por si, para servirem de enquadramento ao referido anteriormente.

Até breve,

Com um forte abraço de amizade e votos de muita saúde.
Jorge Araújo e Maria João
________

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Guiné 61/74 - P26066: Humor de caserna (79): O soldado que foge, apavorado, do bloco operatório ao ver "tantas tesouras e faquinhas"... (Maria Celeste Guerra, ex-alferes graduada enfermeira paraquedista, FAP, 1962/65)

 


Maria Celeste  [Guerra, ex-alferes graduada enfermeira paraquedista]:  é do 2º curso (1962). Esteve na FAP de 1962 a 1965. Cumpriu uma  missão de serviço em Moçambique e duas na Guiné. 

Fonte: "Nós, as enfermeiras paraquedistas" (2014), pág. 389/390.


Humor de caserna > O soldado que foge, apavorado, do bloco operatório ao ver "tantas tesouras e faquinhas"...

por Maria Celeste


(...) No Hospital Militar de Bissau [HM 241], aconteceu um dia uma cena muito cómica! 

Por algum motivo, fui ajudar no serviço de cirugia. Eu estava à vontade na técnica deste serviço, pois antes de ir para a Força Aérea tinha trabalhado no Hospital da Parede [Hospital Ortopédico Santa'Ana, HOSA] como instrumentista.

Estava então a preparar a mesa para a cirurgia que ia ser feita. Entretanto, tinham trazido para a sala, talvez cedo de mais, o soldado doente a quem ia ser feita uma apendicectomia,

Às tantas, no meio da nossa conversa, meio aturdido com as drogas que já lhe tinham sido administradas, ele perguntou-me:

 Diga lá, minha Alferes, essas tesouras e faquinhas,são para quê ?

Respondi:

— São para a sua operação!

— Valha-me  Deus, isso tudo?!...

 É tudo preciso  acrescentei eu.

Como não houve mais comentários e se seguiu um grande silêncio, alguns momentos depois voltei-me para trás (estava de costas para o soldado) e... qual doente ?!| 

Não o vi, ele tinha desaparecido!

Corri para a porta e, no final do enorme corredor, consegui ainda avistá-lo, fugindo apavorado, embrulhado num lençol!!! (...)


Fonte: Excertos de Maria Celeste - "Cenas do quotidiano, na guerra". In: "Nós, enfermeiras paraquedistas", 2ª ed., org. Rosa Serra, prefácio do Prof. Adriano Moreira (Porto: Fronteira do Caos, 2014), pág. 342 (com a devida vénia)

(Seleção, revisão / fixação de texto, título: LG)

______________

Nota do editor:

Último poste da série > 20 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26062: Humor de caserna (78): o velho, a "bajuda fugidona" e a justiça salomónica do alferes Mota (Carlos Fortunato, ex-fur mil, CCAÇ 13, Bissorã, 1969/71)

Guiné 61/74 - P26065: Notas de leitura (1736): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2023:

Queridos amigos,
As considerações finais desta obra de referência que é a investigação de Maria Luísa Esteves sobre a questão do Casamansa são verdades com punhos. A França foi extremamente hábil em apoderar-se do Casamansa, as autoridades portuguesas depositavam pouco interesse na região, revelaram-se ingénuas, não cuidavam de enviar para a região administradores hábeis e foi assim, contrariando os interesses das populações, que se foram apoderando do comércio da região. Ao tempo, deram-se outras adversidades, relevo a falta de recursos financeiros, a desvalorização da mancarra e fundamentalmente o cataclismo que foi a guerra do Forreá, guerra sanguinolenta entre fulas-forros e fulas-pretos, desmantelou-se quase completamente a presença de explorações agrícolas no rio grande de Buba, o que também levou o comércio no rio Nuno a ficar valorizado. Outra grande habilidade dos franceses, como destaca Maria Luísa Esteves, foi terem visto aprovada uma convenção que impediu a nossa presença no Futa Djalon, este tornou-se um protetorado francês. Com esta delimitação de fronteiras feitas a réguas e esquadro suscitaram-se conflitos gravíssimos, a potência mais forte ficou sempre na mão de cima. E o resultado sai nas palavras da autora: "A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis." E lembrarmo-nos nós dos alertas sucessivos que Honório Pereira Barreto dirigia ao governador de Cabo Verde e até Lisboa...

Um abraço do
Mário



Regresso a um clássico da historiografia guineense:
A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (3)


Mário Beja Santos

No repositório das obras admiráveis, de leitura obrigatória para melhor compreender a historiografia luso-guineense, avulta o impressionante trabalho de Maria Luísa Esteves, A Questão do Casamansa e a Delimitação das Fronteiras da Guiné, edição conjunta do Instituto de Investigação Científica e Tropical e do INEP, 1998. Trata-se de uma revisitação, o anseio de um novo olhar sobre tão importante narrativa, isto depois de ter lido e aqui comentado o texto do tenente da Armada Real, Cunha Oliveira, que coordenou em 1888, do lado português, a comissão mista que procurou resolver questões encrencadas na delimitação das fronteiras, tudo produto de quem assinou a convenção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não fazer a menor ideia das delicadezas da topografia da região.

A convecção luso-francesa de 12 de maio de 1886 não contemplou os espaços verdadeiramente ocupados pelas diferentes etnias, houve para ali trabalho de régua que irá suscitar uma permanente atmosfera de conflitos que irão exigir missões das comissões luso-francesas e ajustamentos que pareciam ter ficado resolvidos ainda no tempo da monarquia que, pasme-se, se prolongaram até à década de 1930. Evitando uma penosa listagem desses conflitos, dir-se-á que eles ocorreram logo nas fronteiras luso-francesas, tendo diferentes protagonistas e lugares: o régulo de Firdu, no Casamansa, Mussá Moló, súbdito francês, invadiu territórios pertencentes ao distrito de Geba, fez destruições, atacou depois em Farim, será questão que se prolongará por anos; haverá conflitos entre fulas e mandingas e uma oficial francês em terras de Pachisse; um antigo chefe nalu, prisioneiro dos portugueses, depois de libertado fixou-se em território francês, teremos a seguir um contencioso diplomático, o comandante francês de Kandiafará atravessou a fronteira e intimidou populações, veio-se a apurar que foram chefes gentílicos da Guiné portuguesa que chamaram o oficial francês.

Temos uma missão em 1900 que se prendeu com o reconhecimento por parte dos dois países sobre a imprecisa delimitação da colónia, cujas fronteiras continuavam abertas e sujeitas a contingências que punham em perigo o domínio territorial e a respetiva influência política. É neste período que começaram a ser colocados marcos, logo na fronteira sul. Fora nomeado como encarregado da delimitação de certos trechos da fronteira o 2.º tenente da Armada, Oliveira Muzanty. O ponto de partidas das operações foi a ponta Cagete, que se revelou impraticável. Lisboa apoiava a ideia dos legados fazerem concessões recíprocas de território, obviamente que tinham de ser sancionados, ou não, os respetivos comissários. Nova missão reuniu-se em janeiro de 1901, demarcou-se a parte Sul e Sueste da fronteira entre a ponta Cagete e Dandum, os trabalhos foram interrompidos por um surto de febre amarela. Vai ter lugar nova comissão, entre 1902 e 1903. As dificuldades subsistem, basta ler o parecer da Direção-Geral do Ultramar:
“Pôr de parte a convenção de limites de 1886 dando largas concessões e poderes aos comissários não parece prudente mormente quando se sabe que na região leste da província o governo francês pode levantar dificuldades ao traçado da linha indicativa do meridiano limítrofe, visto a população do régulo principal da região ficar na esfera portuguesa; o que a França não podia supor e não verá com bons olhos. Destas circunstâncias não parece conveniente aumentar os poderes dos nossos delegados mesmo quando estão em harmonia com os dados dos comissários franceses.”

Seja como for, lança-se a proposta de trocas de território de igual superfície, no caso de interesses políticos a salvaguardar, ou para obter uma linha natural de fronteira, sempre que haja aprovação pelos respetivos governos. Temos depois uma nova missão em 1904 e 1905, a operação da colocação de marcos e pilares teve sérias dificuldades, haverá hostilidade de algumas populações, o que vai exigir a presença de efetivos militares. Só em janeiro de 1906 é que se deu por aprovada a fronteira norte.

Analisando as vicissitudes destas missões, observa a autora:
“Se atentarmos ao resultado final conseguido, não podemos deixar de considerar que se não foi favorável também não envergonhou os esforços do gabinete de Lisboa, em período politicamente instável, assoberbado por questões internas e jogando forças com uma nação poderosa e cheia de ambições colonialistas. Muito já estava perdido quando o problema se levantou, e milagre se faria se os diplomatas africanistas tivessem conseguido reaver o que há muito fora usurpado.”

Em tempo de considerações finais sobre este dossiê da questão do Casamansa, atenda-se à natureza das observações da autora:
“Os indígenas do Casamansa sempre foram afeiçoados aos portugueses e viam com relutância a presença de outros europeus, não sendo raro pedirem a sua interferência nos seus conflitos com os franceses. O plano gizado pela França englobava também o rio Nuno e era bem vasto. Para o conseguir realizar serviu-se de exploradores que souberam preparar o caminho para os seus compatriotas. Estudavam as regiões, procurando conhecer qual o seu interesse, e, enquanto intrigavam e indispunham os indígenas contra os portugueses, faziam propaganda a favor da sua pátria. Era uma política de aliciamento a que não eram estranhos os negociantes que habilmente sabiam desviar para as zonas que lhes interessavam o comércio sertanejo.
O governo português não soube ou não pôde responder a este repto. E a decadência da Guiné cada vez se acentua mais com a instalação dos franceses em Carabane e em Selho.
Não eram só os negociantes franceses os culpados da estagnação da vida económica nacional e da diminuição das receitas. Outros fatores contribuíram também: desvalorização da mancarra nos mercados europeus, fretes onerosos sobre as mercadorias e falta de recursos financeiros, pois os capitalistas não acreditavam nas possibilidades da colónia.
A abolição da escravatura agravou ainda mais a situação. Portugal ao ajudar os fulas-pretos ao sair da escravidão, concitou contra si o ódio dos que os dominavam, os fulas-forros. As lutas tribais que se seguiram prejudicaram enormemente a agricultura e desviaram o comércio do sertão das rotas comerciais, fazendo-o afluir às feitorias francesas. A França soube assegurar para si uma fronteira fácil de guardar sob o ponto de vista fiscal e, com o intuito de conseguir um maior desenvolvimento do baixo Casamansa, procurou salvaguardar a rede de vias navegáveis.
Com a posse dos rios Casamansa e Nuno e dominando a região Futa Djalon, os franceses absorveram toda a vida comercial.
As duas Guinés, a francesa e a portuguesa, foram criadas sem terem em conta, muitas vezes, não só os limites naturais como as realidades étnicas, sociais e económicas existentes. Só mais tarde, quando já não era possível emendar os erros cometidos, se verificou que os povos com história e cultura comuns foram separados e entregues a países diferentes sem respeito pelo seu passado. Não era para admirar que assim tivesse acontecido quando as negociações de fizeram longe dos locais a delimitar por pessoas mal informadas sobre a história dos povos e sem conhecimentos suficientes de geografia e utilizando cartas topográficas pouco rigorosas.”


O marco 173 está situado em Chão Baiote, junto à tabanca Kassu, na praia de um dos muitos cursos de água da Baixa Casamansa. A linha de fronteira atravessa Kassu, deixando um bairro na Guiné-Bissau e outro no Senegal. O marco está instalado num espaço aberto, apenas frequentado por vacas que, para fugirem às moscas, buscam as zonas perto de água. Imagens de Lúcia Bayan, já publicadas no blogue, com a devida vénia.
Casamansa, a imagem do atrito
Imagem da ilha de Goreia, junto a Dacar
Imagem de pesca no rio Casamansa
_____________

Nota do editor

Último post da série de 14 de outubro de 2024 > Guiné 61/74 - P26044: Notas de leitura (1735): Regresso a um clássico da historiografia guineense: A questão do Casamansa e a delimitação das fronteiras da Guiné (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P26064: Elementos para a história do Pel Caç Nat 54, "Águias Negras" (1966/74) - Parte III: Em Porto Gole, com a CART 1661 (de fev67 a mar68)...Quem se lembra do nome do ten mil médico, de origem goesa ? E do cap art Figueiredo ? E do nosso soldado "Papá das pernas altas", que ia ptra o mato em cuecas ? (José António Viegas)



Foto nº 1 > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  Eu (à esquerda) e o tenente médico da CART  1661,  mais o nosso "companheiro" [um macaco-cão]


Foto nº 2A > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  O cap art Figueiredo, sentado, e o "Papá das meias altas", de pé (1)


Foto nº 2B > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] >  O cap art Figueiredo, sentado, e o "Papá das meias altas", de pé (2)


Foto nº 2 > Guiné >  s/l [ Porto Gole]> s/d [1967/68] > Numa das várias operações na zona de Porto Gole, sentado descansando o capitão Figueiredo, cmdt da CART 1661 (em primeiro plano); de pé, um militar guineense [do Pel Caç Nat 54 ] conhecido como o "Papá das pernas altas", não gostava de camuflado,  era esta a indumentária com que saía para as operações.


Fotos (e legenda): © José António Viegas (2024). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O algarvio José António Viegas, nosso grã-tabanqueiro nº 587 (desde 11 de novembro de 2012), uma fonte privilegiada de informação sobre o seu Pel Caç Nat 54, de que é um dos "pais-fundadores"; as suas recordaçóes CTIG, de 1966 a 1968, são preciosas para se reconstituir a história desta subunidade (1966/74)... Infelizmente, deste dos outros Pel Caç Nat ... "não reza a História" .

 

1. Mensagem de José António Viegas, ex-fur mil do Pel Caç Nat 54 (Bolama, Enxalé,Missirá, Porto Gole e Ilha das Galinhas, 1966/68):

Data - segunda, 14/10/2024, 19:39

Assunto  - Recordações


Na 1ª foto eu e o médico da CART  1661 mais o nosso "companheiro" 
[um macaco-cão]
 
Tentei com vários camaradas da 1661 saber o nome do médico que acho era de origem goesa, mas não consegui que se recordem, nem sequer o enfermeiro.

Na 2ª foto, numa das várias operações na zona de Porto Gole, sentado descansando o capitão Figueiredo; de pé, um militar guineense 
[do Pel Caç Nat 54 ] conhecido como o "Papá das pernas altas", não gostava de camuflado,  era esta a indumentária com que saía para as operações.

Cumprimentos
Um abraço


2. Sabe-se que o Pel Caç Nat 54,  no início, em Bolama era constituído pelo alf mil  Carlos Alberto de Almeida e Marchã (ou Marchand); os fur mil  Álvaro Valentim Antunes (que será "morto na 1ª mina"), Arlindo Alves da Costa ("ferido na segunda mina", DFA); e José António Viegas; os 1ºs cabos Manuel Januário (DFA), Coelho (DFA) e João Simão (telegrafista); mais os soldados, do recrutamento local,que  eram das etnias Papel, Fula, Mandinga e Olof (um deles).

Em fevereiro de 1967, aquando da visita do genb Arnaldo Schukz, o Pel Caç Nat 54 estava em Porto Gole, juntamente já com parte do pessoal da CART 1611.

Esta subunidade, a CART 1661, passou por Fá Mandinga, Enxalé, Bissá e Porto Gole. Partiu em 1 de fevereiro de 1967 e regressou em 19 de Novembro de 1968. Teve três comandantes: 



Foto nº 3 > Guiné > Porto Gole > Fevereiro de 1967 > V
isita do general Arnaldo Schulz  e do brigadeiro Reimão Nogueira ao destacamento, onde se encontravam o Pel Caç Nat 54 e parte da CART 1661. Em primeiro plano, de costas, o tenente médico da CART 1661 (à direita)  e o alferes Carlos Marchã (ou Marchand),  comandante do Pel Caç Nat 54 (à esquerda).



Foto nº 3A > Guiné > Porto Gole, fevereiro de 1967 > O general Arnaldo Schulz, de máquina fotográfica ao ombro...  Em primeiro plano, visto de perfil, 
o tenente Médico da CART 1661, à direita,


Foto (e legenda): © José António Viegas (2015). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


3. Companhia de Artilharia nº 1661 > Ficha de unidade

Identificação CArt 1661
Unidade Mob: RAC - Oeiras

Cmdt: Cap Mil Art Luís Vassalo Namorado Rosa | Alf Mil Art Fernando António de Sá | Cap Art Manuel Jorge Dias de Sousa Figueiredo
Divisa: -

Partida: Embarque em 01Fev67; desembarque em 06Fev67 | Regresso: Embarque em 19Nov68
 
Síntese da Actividade Operacional

Em 6fev67, deslocou-se para Fá Mandinga, a fim de substituir a CCaç 818 e realizar, inicialmente, um curto período de adaptação operacional, sob orientaçã do BCaç 1888 e actuar depois nas regiões de Xime, Enxalé e Xitole, até 8mar67.


Após rotação, por fracções, com a CCaç 1439, assumiu em 3abr67 a responsabilidade do subsector de Enxalé, com pelotões destacados em Missirá, Porto Gole e Bissá, mantendo-se integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1888 e a partir de 1jul67 do BCaç 1912, por alteração dos limites dos sectores daqueles batalhões.

Em 21dez67, a sede da subunidade foi transferida para Porto Gole, com destacamentos em Enxalé e Bissá, mantendo-se no mesmo sector do BCaç 1912, onde a par de várias operações e acções efectuadas nas regiões de Mato Cão, Mantém, Malafo e Colicunda, orientou a sua actividade para a construção e desenvolvimento dos reordenamentos de Enxalé e Bissá, este a partir de mar68.

Em 7nov68, foi rendida no subsector de Porto Gole pela CArt 2411, tendo recolhido seguidamente a Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.

Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 81 - 2.ª Div/4ª Sec, do AHM).
Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002,
pág. 450



Infogravura: © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2009)





O autor, Abel Rei (ex-1º cabo at art, CART 1661, 1967/68, em Porto Gole, aqui na foto à esquerda  escrevendo o seu diário) nos possa dar uma ajuda, identificando o tenente médico da companhia... À direita,   a capa do seu livro,"Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 196/1968". [Prefácio do Ten Gen Júlio Faria de Oliveira. Edição de autor. 2002. 171 pp. Execução gráfica: Tipografia Lousanense, Lousã. 2002].


__________________