quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15700: Efemérides (209): Faz hoje 50 anos que a malta da CCAÇ 616 regressou a casa... E no fim de semana vai comemorar, em Fátima (Francisco Galveia, ex-1º cabo cripto / Joaquim Jorge, ex-alf mil, Empada, 1964/66)



Brasão da CCAÇ 616 (Empada, 1964/65). 
O lema, em latim, "Super Omnia", quer dizer "acima de tudo" (LG)



Fronteira, distrito de Portalegre > Ano escolar de 1950/51 >  Já eram poucos na altura os meninos (9) e as meninas (8) que andavam na escola primária... O concelho tem vindo a perder população desde 1960: eram na altura, pouco mais de 7 mil; hoje (2011) são à volta dos 3400. 

Descubram, no foto,  o nosso camarada, que 13 anos depois desembarcava em Bissau,  do T/T Quanza, mais a malta do seu BCAÇ 619 e da sua CCAÇ 616... 

Três camaradas, naturais do concelho de Fronteira, perderam a vida durante a guerra colonial: 2 em Moçambique e 1 na Guiné... Este último, natural de Cabeça de Vide, chamava-se Martinho Gramunha Marques e é um herói de Madina do Boé.

Foto da página do Facebook do avô Francisco Monteiro Galveia (, nascido em 6/9/1942)... 


Fotos: © Francisco Galveia (2016). Todos os direitos reservados.



1. Mensagem, com data de ontem, do Francisco Monteiro Galveia [ex-1º cabo cripto, CCAÇ 616 (Empada, 1964/66)] (*)


A CCAÇ 616 fez parte do BCAÇ 619.

Foi formada no Regimento de Infantaria da Amadora. Concluída a formação do Batalhão, fomos aguardar embarque para Leiria durante alguns dias, fomos de Lisboa para Leiria e  regresso num velho comboio, sem um minimo de condições. 

Em 08/01/1964, embarcámos em Lisboa a caminho da Guiné no barco, velho,  o Quanza,  sem um minimo de condições para transporte de passageiros, dormitórios e refeitório no porão com cheiro a tinta que era insuportável, a maioria do pessoal nem lá entrava, passava o tempo na parte superior do barco. Muita gente ficou doente toda a viagem. 

Chegado a Bissau 15/01/1964, o barco não atracou ao cais, desembarcámos para um grande batelão, com todo o material às costas, foi uma operação difícil. 

Aqui chegados, fomos instalados no Quartel General de Bissau durante o mês de fevereiro. Em março estivemos instalados no BCAÇ 600. Recebemos o espólio duma companhia de açorianos que não tinha um rádio nem uma viatura a trabalhar, só ao fim de 8 dias os nossos mecânicos conseguiram colocar um jipe a funcionar. 

Continuando em 31/3/1964 , seguimos via Bolama, em   LDM, para  para Empada  substituindo ali a CCAÇ 427. Ficamos instalados na maioria em velhos barracões. 

Assim que possível continuarei esta caminhada.


2. Comentário do editor:

Soubemos, pelo Joaquim Jorge, ex-alf mil, que vive em Ferrel, Peniche, que a "sua" CCAÇ 616 vai comemorar o meio século do regresso a casa, nos dias 6 e 7,  em Fátima,  no hotel Pax,  local de resto já habitual para os seus convívios anuais. Para o Joaquim, o Francisco e demais camaradas da CCAÇ 616, vai um forte abraço do tamanho do rio Grande de Buba.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15699: (In)citações (82): Depoimento de um antigo combatente na diáspora (José Câmara, ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56) (1): As experiências humanas que a guerra me proporcionou

1. Em mensagem do dia 14 de Janeiro de 2016, o nosso camarada José da Câmara (ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Brá, Bachile e Teixeira Pinto, 1971/73), enviou-nos um texto, e algumas fotos, com aquilo a que chama Depoimento de um antigo combatente na diáspora. 
Aqui fica a primeira de duas partes.


Depoimento de um antigo combatente na diáspora  

1 - As experiências humanas que a guerra me proporcionou

José da Câmara*

Muito mais que a experiência militar, o que me marcou para a vida foram as experiências humanas que a guerra do Ultramar me proporcionou viver e a influência que tiveram na condução da minha vida desde então.

A guerra também é uma lição de vida que se aprende nas páginas de um livro sem linhas, sem palavras. Um livro em que as páginas mais importantes são escritas com a tinta dos sentimentos.

No mundo das lutas humanas que eu vivi não há palavras que consigam transmitir a capacidade de sacrifício, abnegação, camaradagem, religiosidade, dor e alegria do soldado português e, em particular, do soldado açoriano. A ânsia da incerteza do dia-a-dia, o receio, a miséria e a dor de ver perder um camarada vive-se, mas não se consegue descrever.

Porque também passei pela particular experiência de comandar tropas nativas, tive a possibilidade de aprender que o amor a Portugal, o meu querido País, era tão igual nas suas diferentes culturas, religiões, dialetos e fisionomia do todo humano que o compunha.

Quando cheguei à Província da Guiné, encontrei uma capital, Bissau, em franco e harmonioso desenvolvimento. Avenidas largas, limpas, iluminadas, comércio e restauração florescentes, assistência na saúde, escolaridade primária obrigatória, Liceu e muito mais. Ali, na cidade, respirava-se paz, harmonia social, desafogo económico e cultural. Era evidente que aquele bem-estar provinha do grande afluxo de tropas, muitas destas acompanhadas pelos seus familiares, excelentemente aproveitado pelas autoridades civis e militares no desenvolvimento da cidade.

Mas havia uma outra Guiné, aquela que estava para além de Bissau, a do mato, como se dizia na gíria militar. Aquele era aqui e ali entrecortado por alguns aglomerados populacionais de maior ou menor importância e desenvolvimento, sendo que as chamadas tabancas estavam mesmo a séculos de distância dos padrões de desenvolvimento da capital. A guerra, um autêntico flagelo humano, não explicava tudo. Era evidente que esta outra Guiné tinha sido negligenciada pelos poderes instituídos ao longo de centenas de anos. Talvez por isso mesmo, alguns autóctones ainda enraizados em costumes e tradições seculares se mostravam renitentes em aceitar mudanças que pusessem em causa a ordem social vigente a que estavam acostumados.

Naquele mato, a pobreza das gentes era chocante, mesmo para os corações mais duros. A subsistência familiar baseada numa agricultura insípida e antiquada era insuficiente e, em alguns casos, a religião e as tradições de algumas etnias não permitiam tirar o devido partido do pouco que havia. Águas inquinadas, mosquitos e malnutrição protagonizavam constantes problemas de saúde. Como se isso não bastasse, a rede de transportes, a assistência médica e o ensino obrigatório civis eram quase inexistentes. Muitas unidades militares faziam o que podiam para colmatar algumas daquelas falhas, mas em muitos casos podiam pouco. Aquele também era o mato das minas, das emboscadas, das flagelações, dos horrores da guerra.

A pobreza

Foi na Mata dos Madeiros, uma faixa de floresta densa entre a Mata do Balengerez e da Caboiana, a seguir ao Bachile, que por imperativos de defesa era agora completamente despovoada, que a CCaç 3327 montou o seu primeiro acampamento. Como companhia de intervenção às ordens do CAOP1, com sede na Vila de Teixeira Pinto, tinha como principal missão a proteção dos trabalhadores e das máquinas que prestavam serviço na construção da nova estrada que iria ligar aquela Vila ao Cacheu.
Naquela mata, recheada de fauna e flora maravilhosas, tive a oportunidade de viver o pulsar diário dos mais nobres sentimentos humanos de mãos dadas com os tremendos esforços físico e psicológico só ali possíveis e protagonizados por uma juventude maravilhosa.

O sacrifício da Mata dos Madeiros

O nosso dia de Páscoa (1971) naquele local foi marcado por um folar diferente, o casamento por procuração do Fur. Mil. Fernando Silva. Saiu de manhã com o seu grupo em patrulhamento. A meia tarde regressou ao acampamento para uma pequena cerimónia com os seus camaradas, para de novo voltar ao patrulhamento e respetiva emboscada noturna. Os segredos da noite perfumariam o barro vermelho da mata que lhe serviria de leito nupcial. Sem um queixume, sem um gesto de revolta apenas cumpria o seu dever.

Para no dia seguinte, segunda-feira, sermos todos atingidos com o trágico acidente sofrido pelo Manuel Veríssimo Oliveira, natural da Lomba de São Pedro, Ilha de São Miguel, o qual lhe custaria a vida dias mais tarde. No cumprimento de ordem militar, prestei a assistência necessária à família do Manuel. Na correspondência que mantive com a família, vivi por dentro o sofrimento de uma mãe que perdera o filho, sem o direito de o beijar uma última vez. O tempo se encarregou de suavizar a dor daquela experiência, mas ainda não me deu a oportunidade de esquecer.

De forma marcante e inesquecível, tive a oportunidade de participar diretamente na grandeza sublime do sentimento religioso dos nossos militares. Porque, na prática, a assistência religiosa era quase nula, um pouco por toda a companhia colmatava-se aquela falta com algumas manifestações de fé cristã. Entre elas, no tríduo preparatório em honra de Nossa Senhora de Fátima, o terço era rezado diariamente por muitos. Nas emboscadas noturnas, a minha secção rezava-o em conjunto através de sinais. Ali não havia medo, mas sim um sentimento de libertação do que nos rodeava, de conforto interior.

Na noite do dia 12 de Maio de 1971, os dois grupos de combate que estavam na proteção afastada ao acampamento regressaram a este para se juntarem aos outros dois. Com a sua chegada deu-se o andamento da Procissão pelo perímetro interior do acampamento. Com a arma numa mão e a vela acesa na outra, aqueles valentes militares deram largas à sua fé entoando o Hino a Nossa Senhora de Fátima que perfumava com a sua bênção as matas da Guiné. Durante aquela manifestação de fé a defesa do acampamento esteve entregue aos Anjos do Céu.

A religiosidade

Como poderei transmitir (ou esquecer) os sentimentos que me assolaram quando, numa noite diluviana, em corrida contra ao tempo, o meu grupo de combate, a que se juntaram algumas dezenas de voluntários, teve que evacuar de Teixeira Pinto para Bissau o soldado Miranda, da CCaç 2637, natural de São Miguel, em fim de comissão, também ele vítima de um acidente? No regresso a Teixeira Pinto sabíamos que ele jazia cadáver no Hospital Militar 241. Ou ainda a visão de um furriel a chorar, na chegada de uma operação de alto risco à Mata do Balenguerez, ao encontrar morto o seu amigo de estimação, um tecelão, uma avezinha domesticada por ele?

Na guerra mata-se, morre-se. Mas também há aquela situação em que se morre ficando vivo. Foi o que senti no Destacamento de Bassarel quando recebi a notícia de que iria ser transferido para uma unidade de recrutamento guineense. Sabia e compreendia que situações dessas aconteciam, mas logo eu, o único graduado açoriano numa companhia açoriana, não fazia sentido algum. Ou fazia? Com o coração despedaçado tive que me despedir daqueles fantásticos rapazes que compunham a minha secção, irmãos nas boas e nas más horas, para mim uma família muito especial.


A saudade na partida para as tropas africanas

Como transmitir em palavras os sentimentos que me assolaram quando no Destacamento de São João fui apresentado ao meu novo Pelotão de [Caçadores] Nativos 56 e me apercebi que aquele era constituído por manjacos, felupes, balantas, mandingas, fulas, beafadas, papéis, muitos deles inimigos tribais, que pouco comunicavam entre si, alfabetizados alguns e outros que não falavam português? Ou como foi a minha integração naquele pelotão no qual o soldado mais velho tinha 52 anos de idade que, como alguns outros, andava na guerra desde o seu início? Entre católicos, muçulmanos e animistas como conciliar os seus costumes, tradições e práticas religiosas com a disciplina e os afazeres militares? Como comunicar ordens em situações de risco, ou a simples afirmação de que ali eu era apenas mais um, com responsabilidades acrescidas sim, mas que eram eles os verdadeiros protagonistas protetores dos seus familiares, das gentes e do chão da Guiné?

No fim, quando treze meses depois regressei à minha companhia e aos Açores, deixei um amigo em cada um daqueles militares guineenses, uma amizade bem traduzida em alguns aerogramas que fui recebendo ao longo dos meses, prática que naturalmente desapareceu quando emigrei. Em São João ficara um pelotão de gente boa e dócil, agora com uma mentalidade diferente, mais receptiva, mais igual, mais amiga.

O Pel Caç Nat 56

Em fim de comissão, no dia da despedida em Brá, marchei na frente da companhia. Por ordem do comandante da companhia nas minhas mãos carregava com muito orgulho o Guião da CCaç 3327. Um gesto simples fora suficiente para esquecer a amargura do dia em que deixara a companhia. Lá mais atrás marchava a minha secção. Vinham todos, minha única honra e glória. Na companhia, infelizmente, faltava o Manuel.

A despedida da Guiné. Extracto do Jornal Voz da Guiné, 30 Dezembro de 1972, Página 13.

Um pouco mais de três anos após ter cruzado as portas do CISMI, em Tavira, tinha chegado a hora de dependurar o uniforme do exército de Portugal. Vestira-o com orgulho e dignidade. Pelo meio ficaram ainda a minha passagem pelo BII19, BII17, Santa Margarida e vários aquartelamentos na Província da Guiné. Cumprira com o meu dever de mancebo na defesa da Pátria, numa guerra justa ou injusta mas para a qual não fora chamado a decidir. O jovem que partira era agora um homem. Na bagagem, bem escondidas, trazia algumas cicatrizes internas, que o tempo se encarregaria de diluir, e muitas ilusões.

(Continua)
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Nota do autor:

(*) José Alexandre da Silveira Câmara.
Natural da Fazenda, Concelho das Lajes das Flores.
Prestou serviço militar no Ultramar como Furriel Miliciano na Companhia de Caçadores 3327, mobilizada pelo BII17 para a Guiné: partida a 21 de Janeiro de 1971 regresso a 7 de Janeiro de 1973.
Emigrou para os Estados Unidos da América no ano de 1973, tendo-se fixado em Stoughton, Massachusetts onde reside.
Encontra-se presentemente reformado.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de dezembro de 2015 Guiné 63/74 - P15552: (In)citações (81): Amigo/a, camarada, faz a tua prova de vida: Manda-nos um simples "OK! Tudo bom! Vou indo" ! ... E os editores aproveitam para te desejar o melhor ano possível em 2016, apesar das dificuldades, enfermidades, mazelas, contrariedades, problemas, sacanices, minas e armadilhas que enfrentamos, cada vez mais, à medida que o tempo... pula e avança

Guiné 63/74 - P15698: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (36): De 21 a 26 de Junho de 1974 (Revisitando Junho de 1974)

1. Em mensagem do dia 30 de Janeiro de 2016,  o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos mais uma Memória, a 36.ª.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

36 - De 21 a 26 de Junho de 1974 (Revisitando Junho de 1974)


Das minhas memórias: Ainda os finais de Junho de 1974


Como dei conta no último poste, o mês de Junho ficou marcado pela conclusão das estradas e pelo incremento das aproximações e contactos dos grupos do PAIGC com os aquartelamentos e as populações. A nossa actividade militar, à medida que aumentava a confiança no cessar-fogo tácito, ficou reduzida ao mínimo, embora nunca deixasse de se fazer patrulhamentos de segurança próxima.

Com tempo de sobra e sem uma data à vista para sairmos dali, a ansiedade e o nervosismo foi afectando quase todos. Foi necessário “inventar” actividades desportivas, mesmo com o patrocínio do Comando do Batalhão, para ocupar o tempo e descarregar tensões. Parece incrível que em tempo de paz se tivesse de recorrer à criatividade para impedir o enchimento da “bolha” das tensões e evitar a afectação da disciplina e o eclodir de conflitos. Só quem não passou por elas... Mas não chegaram a ocorrer desmandos e os mais extrovertidos optaram pela animação, embora nem sempre comedida.

Dos registos que me restam dessa época, transcrevo trechos que confirmam o que ficou dito e muito mais.


Nhala, 21 de Junho de 1974 (sexta-feira)

Faz hoje precisamente um ano que, pela terceira vez, senti por cima de mim o fogo do PAIGC e, desta vez, com bastante intensidade. A esta hora, 23h30, e há um ano, portanto, estava com toda a minha Companhia a dormir no mato nas imediações de Nhacobá sob uma tremenda trovoada e chuva torrencial. As ordens eram passarmos a noite na base de Nhacobá: mas são doidos, ou quê? 

Era assim há um ano e assim continuaria ainda por muito tempo. Hoje, tudo é diferente. A única coisa que nos consome os nervos restantes é a expectativa duma situação que nunca mais chega: o regresso a casa. Também a inactividade nos inferniza. Praticamente não há que fazer, mas também não há nada que nos distraia nestas paragens isoladas e remotas no meio do mato. Por vezes temos de ser nós a engendrar actividades ou distracções mas, muitas vezes, não passam de maluqueiras. 

Por exemplo, na madrugada de hoje, cerca da uma hora, quando eu me preparava para dormir, bem como os meus camaradas, (o Lopes foi já de férias), chegaram-nos aqui vindos de Aldeia Formosa, (a esta hora!), os nossos camaradas Alferes Amado João e Alferes Mota, mais um furriel madeirense e outro que pertence à Engenharia. Vinham já com os copos e faziam-se transportar numa Mercedes da Engenharia. Continuaram aqui em Nhala a festa deles e começaram a nossa, apesar da hora tardia, que se prolongaria até às 3h30. Bebeu-se, comeu-se e dançou-se. E o tempo passou. Mas encharcaram-se os corpos em uísque e roubaram-se horas ao descanso. (...).

Os mais sensatos e disciplinados passam o tempo de maneira mais saudável: levantam-se cedo e vão para Buba nadar no rio. Depois vêm almoçar e saem logo a seguir para a caça. À noite deitam-se cedo sem necessidade dos comprimidos que eu tomo ou dos copos que encharcam os outros, para recomeçarem tudo na manhã seguinte.

[De seguida dava conta das actividades desportivas. Tinha acabado um campeonato de futebol que envolveu todas as Companhias do Sector, e ia-se iniciar um outro da iniciativa do Comando do Batalhão, bem como um torneio de voleibol para decorrer em paralelo. Curioso é que eu tanto valorizava estas iniciativas por serem benéficas para o actual estado de espírito do pessoal, como as considerava alienantes por envolverem “multidões” que, na hora presente, deviam concentrar as atenções em questões mais importantes. Seria por eu estar a ficar sem “clientela”... Veja-se a seguir].

(...). Ainda no tempo do capitão BC se pensou em fazer qualquer coisa junto dos soldados no sentido do esclarecimento político e, no que me diz respeito, senti-me incentivado quando fui eleito Delegado do MFA em Nhala. Mas desencorajei mais uma vez ao ver a indiferença dos outros. (...). Aguardo determinações do MFA da Guiné que sirvam de orientação e que me dêem carta-branca para agir e, então, é possível que mesmo na situação presente venha a fazer reuniões de esclarecimento com o pessoal, visando o momento político que vivem agora os portugueses e os procedimentos a corrigir por pertencerem ao passado. [?]. Seria bastante útil também a realização de convívios com o diálogo aberto a todos, para se irem acendendo luzes nos espíritos dos mais despolitizados. Espero vir a cumprir tudo o que citei atrás e já estou a dar conhecimento a todo o pessoal, do documento recentemente recebido do MFA da Guiné e que a seguir transcrevo:

[Nem chegou a ser transcrito para o caderninho, nem o possuo para poder divulgar agora, pois fazia parte de todos os demais documentos (incluindo vários Perintrep) que deixei em Nhala sem remédio].


Nhala, 22 de Junho de 1974 (sábado)

Em Angola já há acordos de cessar-fogo com alguns Movimentos de Libertação e, para o caso de Moçambique, esteve em Lusaca o Dr. Mário Soares em contacto alguns dirigentes dos Movimentos moçambicanos. Tudo indica que se vai chegar a acordo em todas estas negociações, embora pouco transpareça do que se passa nas reuniões. No respeitante à Guiné, há já muito tempo que o cessar-fogo é um facto, mesmo ainda antes de ser conhecido qualquer acordo. No entanto, no Perintrep do último período, ainda se fazia referência a três acções da guerrilha, mas dando conta, por outro lado, de que neste período não houve accionamento de minas nem nenhuma detecção.

Que eu saiba, o PAIGC não reivindica a autoria destas acções, que são uma traição aos princípios que deram forma aos acordos de cessar-fogo. Aliás, um alferes do PAIGC que há dias esteve aqui Nhala a falar à nossa tropa e à população, atribui estas últimas acções de guerrilha aos homens da FLING.

[Creio que até àquela data ninguém ouvira falar desta FLING. (Frente de Libertação e Independência Nacional da Guiné. Foi um movimento independentista da Guiné Portuguesa que resultou da fusão destes: União dos Povos da Guiné; Reunião Democrática Africana da Guiné; União da População Libertada da Guiné. Fonte Wikipédia. 

Mas casos de oportunismo sempre aparecem em situações análogas. Cabia ao PAIGC demarcar-se e impedir confusões e ambiguidades. É o que parecem fazer os seus apoiantes na faixa da fotografia em baixo, em que clamam “Abaixo os oportunistas”]. 



Fotos 1 e 2: Buba, Junho de 1974 – Faixa de apoiantes do PAIGC repudiando o MDG – Movimento Democrático Guineense. Os “oportunistas” eram um dado recente, pelo menos à luz do dia, no período histórico que se vivia.


Prosseguindo a nota de 22 de Junho de 1974. 

Ultimamente alguns grupos de combate do PAIGC têm tentado contactos amistosos com os nossos, chegando a esperar em pleno mato junto à estrada, para poderem dialogar connosco. Isso já se verificou no carreiro de Chinconhe [?] do lado de Buba e no de Uane do lado de Mampatá. 

Neste último, esteve há dias um bigrupo que se espalhou paralelamente à nossa estrada, aguardando que aí passasse alguém. Já o tinham feito e voltariam a fazê-lo. Ao passar uma coluna que se dirigia a Buba, o Comandante do Batalhão Ten Cor Ramalheira que seguia à frente, mandou parar as viaturas para poder falar com os comandantes desse bigrupo. Parece que tudo correu cordialmente e pouco depois a coluna retomava a marcha.


Nhala, 23 de Junho de 1974 (domingo)

Hoje tivemos a visita do Alf Mil Médico Herculano, (um progressista que já dorme com a fotografia de Amílcar Cabral à cabeceira), o Eng.º Campos e o alferes das antiaéreas. Trouxeram galinha e batatas de Aldeia Formosa.

Também eu fazia gala em me deixar fotografar, embora sisudo, com uma camisola recém-adquirida com a imagem de Amílcar Cabral, embora não a usasse. 



Foto 3: Buba, Junho de 1974 – António Murta ostentando um dos sinais dos tempos.


Foto 4: Buba, Junho de 1974 – Outro dos sinais dos tempos: a irreverência. Nunca usei tal boina, mas pu-la para a fotografia. O meu quico está nas mãos atrás das costas...



Nhala, 25 de Junho de 1974 (terça-feira)

Já os meus camaradas dormiam quando fui surpreendido com a visita do Alf Mil Médico Herculano e do Alf Mil Mota,  de Aldeia Formosa. Depois de umas bebidas quiseram ir a Buba beber com os de lá. Como não os consegui demover, fui com eles. Era uma da madrugada. A meio do caminho avariou-se o jeep. Depois de várias tentativas lá conseguiram pôr o jeep a trabalhar e seguimos. O Capitão de Buba, o Brás Dias, ficou indignado mas depois abriu o bar e fez-nos companhia.

[Quando transcrevi esta nota fiquei surpreendido por omitir o que se passou a seguir e que foi o “melhor da festa”. Contudo recordo muito bem esta ida a Buba já de madrugada, a avaria do jeep, o Cap. Brás Dias todo chateado, enfim, talvez me recorde por ter já narrado isto antes. Também omiti, sem que o compreenda, que a acompanhar os alferes de A. Formosa vinha um tenente do QP, que ainda conheci como Sargento Ajudante, mais velho do que nós e que era um bonacheirão incorrigível. Foi o homem da noite, pelos piores motivos. Protagonizou uma cena que deixou o capitão de Buba furioso e nós perplexos.

Bebíamos no bar, entre conversas, quando o tenente se “desenfia” direito ao quarto dos alferes. Pensávamos que tivesse ido à casa de banho e não ligámos. Só quando ouvimos burburinho e protestos indignados nas acomodações próximas do bar percebemos o que ele andava a fazer. Dirigimo-nos logo para lá a fim de o trazermos e impedirmos algum incidente. Tinha acendido a luz do quarto dos alferes que estavam a dormir e estava junto da cama de um deles a insistir para que se levantasse para nos acompanhar no bar. O alferes resistia, o capitão exaltou-se, já nos queria dali para fora e o tenente, como se não fosse nada com ele, continuava a rir e a gozar, afinal, com todos nós. 

Face aos protestos mal-humorados do capitão, o nosso tenente, de súbito, ficou com o semblante inexpressivo, o olhar vago, e cai redondo no chão onde ficou inanimado. Ó caraças, só faltava mais esta, vira daqui, vira dali, mais uns estalos na cara, mas não havia qualquer reacção. Chamava-se, abanava-se mas continuava a não reagir. Quando o capitão, visivelmente preocupado, já mandava alguém ir chamar o enfermeiro, de repente, o nosso tenente virou-se para o lado e levantou-se de um salto, a rir à gargalhada de braços no ar como quem diz não tenho nada. Primeiro foi a estupefação geral, depois a indignação. 

Estava a noite estragada. Quer dizer, mais estragada. Apressámo-nos a sair dali empurrando o tenente para o jeep e a pedir desculpas de circunstância aos camaradas de Buba. Estrada fora em silêncio, cada um a cogitar apenas para si. Fez-nos bem a frescura da noite. Deixaram-me em Nhala, muito sóbrios, e seguiram para A. Formosa. Cenas e aventuras impensáveis há apenas dois meses. Estes excessos não eram, de modo nenhum, comuns à maioria, mas traduzem um certo “clima” pós cessar-fogo].


Nhala, 26 de Junho de 1974 (quarta-feira)

Fui a Mampatá assistir a um jogo de voleibol dum torneio que se está a realizar. Da borda do campo acompanhei os olhares da assistência que se viravam para a estrada atrás de nós, e não muito longe dali. Era um bigrupo do PAIGC que se aproximava numa longa fila vindo do lado de Cumbijã. Passaram sem se manifestar na direcção da tabanca de onde acorreram, sobretudo mulheres e a miudagem, a aclamá-los com palmas e alguma euforia, mais movidos pela curiosidade. Eles, muito dignos e quase indiferentes, continuaram a sua marcha e só pararam depois de atravessar a povoação.

Era a primeira vez que eu assistia a uma recepção tão calorosa da população. Em Nhala nunca observei nada disso. Em comum com o que já observara antes, apenas o porte e a disciplina dos guerrilheiros: sempre em silêncio, bem fardados e muito comedidos. Vinham bem armados, como sempre.

[Hoje, Janeiro de 2016, não imagino como veria isto um nosso camarada antigo combatente dos anos sessenta, que ali fosse largado sem aviso. Julgaria que estava a sonhar?].

Viria a surgir um problema. O Comandante do aquartelamento, (não recordo se lá estava na ocasião o Cap. Luís Marcelino), recusou-se a dar-lhes alojamento para pernoitarem, alegando que não tinha ordens para os tratar como amigos. [Uma atitude cautelosa e sensata, diria eu hoje]. Eles continuaram sentados no chão até ao anoitecer, mas depois o problema resolveu-se com a intervenção do Comandante do Batalhão.

Entretanto, ainda durante o jogo de voleibol – que não foi interrompido devido à chegada dos guerrilheiros -, todos vimos com tristeza passar na estrada o resto da CCAV 8351 para Buba, com destino a Bissau e à Metrópole.


Foto 5: Mampatá no tempo da guerra, quando até ir à fonte era perigoso, mesmo ali ao fundo onde a estrada prossegue para Colibuia-Cumbijã-Nhacobá. (Panorâmica sem primores técnicos e com alguma batota, feita com a junção de duas fotografias que nem sequer eram coincidentes).

(continua)
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 Nota do editor

Poste anterior da série de 26 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15671: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (35): De 11 a 30 de Junho de 1974

Guiné 63/74 - P15697: Álbum fotográfico de Armando Costa, ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAÇ 3846 (Susana, 1971/73): Parte VI: O aeródromo de Susana e uma DO 28 dos Transportes Aéreos da Guiné Portuguesa, possivelmente pilotada pelo nosso comandante Pombo


Foto nº 1


Foto nº 2


Foto nº 3


Foto nº 4 


Guiné > Região do Cacheu > Susana > CCAV 3366 (Susana, 1971/73) > O aeródromo de Susana. [A areonave não é um Cessna, como julgávamos, mas uma DO 28, segundo o nosso camarada E. Esteves Oliveira; de qualquer modo, talvez o piloto que a levou até Susana possa ter sido o Comandante Pombo, nosso grã-tabanqueiro, ao serviço dosTransportes Aéreos da Guiné Portuguesa; fomos levados pela inscrição, CR - GBK; as nossas desculpas aos leitores].

Fotos: © Armando Costa (2016). Todos os direitos reservados.


1. Sexta parte da publicação de uma seleção de  fotos do álbum do
Armando Costa,  ex-fur mil mec auto, CCAV 3366 / BCAV 3846, Susana, 1971/73) (*) [, foto atual à direita]:

Recorde-se, sumariamente, o historial da Companhia, a CCAV 3366:

(i) Chegada a Bissau em 9 de março de 1971;

(ii)  IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional) no Cumeré:

(iii) colocação, em maio de 1971, no subsetor de Susana, na região do Cacheu, no noroeste da Guiné, no coração do chão felupe;

(iv)  regressou à metrópole em 8/3/1973.

Há, pelo menos, mais dois camaradas da CCAV 3366 / BCAV 3846 (Susana, 1971/73), formalmente registados na nossa Tabanca Grande:

(a) o Luís Fonseca, ex-fur mil trms, que vive em Vila Nova de Gaia; e
(b) o Delfim Rodrigues, ex-1.º cabo aux enf, que mora em Coimbra, e é um dos nossos habituais participantes do Encontro Nacional da Tabanca Grande.


2. Do nosso leitor e camarada Esteves de Oliveira, mensagem acabada de chegar às 19h56:_

 Caro Camarigueiro Luís Graça,
Não me levem a mal estar a fazer reparos, mas o avião fotografado pelo Armando Costa não é um Cessna ianqui, é antes um germânico Dornier 28 (DO 28) Skyservant.
Um alfa-bravo para todos,

E. Esteves de Oliveira
Ex-Oficial miliciano de infantaria, 

Guiné 63/74 - P15696: Parabéns a você (1028): Germano Santos, ex-1.º Cabo Op Cripto da CCAÇ 3305 (Guiné, 1970/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15684: Parabéns a você (1027): Luís Graça, ex-Fur Mil Armas Pesadas Inf da CCAÇ 2590/CCAÇ 12 (Guiné, 1969/71), Editor Principal e Administrador deste Blogue

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Guiné 63/74 - P15695: Estórias avulsas (84): A minha primeira missão (Abel Santos, ex-Soldado Atirador da CART 1742)

 

1. Em mensagem do dia 21 de Janeiro de 2016, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69) conta-nos a sua primeira acção na Guiné, a partir de Bissau.




A minha primeira missão 

A minha primeira missão no Comando Territorial Independente da Guiné Portuguesa aconteceu após a chegada da minha CART 1742 a Bissau, onde desembarcámos a 31 de Julho de 1967.

Após o desembarque, fomos colocados em Santa Luzia, no chamado 600, substituindo a CART 1646, onde ficamos integrados no dispositivo do BART 1904, com vista à segurança e proteção das instalações e das populações da área.

Mas falava eu na primeira missão, que foi atribuída ao meu grupo de combate, mais propriamente à minha secção, quando fomos escalados para fazer segurança a um barco civil de transporte de géneros, para distribuição aos nossos camaradas espalhados pelas várias guarnições da Guiné.

Zarpamos manhã cedo do Porto de Bissau para aproveitar a maré cheia, e navegámos ao encontro dos nossos camaradas que estavam precisando de reabastecimentos, já que por terra era bastante complicado.

Embarcações utilizadas nos reabastecimentos às guarnições.
© Com a devida vénia ao ex-Fur Mil Rodrigues Lopes do BCAÇ 2852

A primeira guarnição visitada foi Catió, onde aportámos seriam umas quatro horas da tarde, isto ao fim de quase dois dias a navegar, e de ficarmos imobilizados no leito do rio, devido à maré ter baixado, não permitindo a navegação.

Chegados a Catió, fomos recebidos pelo comandante da malta lá instalada que nos obsequiou com um bom jantar (esparguete com atum) o que para nós, que estávamos a ração de combate, caiu que nem mel na sopa.
Encontrei lá um camarada dos meus tempos de escola, e aproveitamos para pôr a conversa em dia, com as notícias da terra. Fui também esclarecido sobre o que era a guerra de guerrilha no território guineense.
Depois de bem alimentados e conversados, o comandante da guarnição escalou uma secção do seu grupo de combate que nos transportou ao cais onde se encontrava o barco atracado com os restantes camaradas, que foram surpreendidos com uma alimentação quentinha, esparguete com atum, oferecida pelo comandante militar de Catió, o que muito nos sensibilizou, e que mais uma vez demonstrou o altruísmo da malta castrense. A noite passada no barco foi agitada, já que os obuses sediados em Cufar não paravam de bombardear a zona, colocando os “periquitos” em alerta permanente.

Pela 6 horas da manhã, aproveitando a maré cheia, levantámos âncora e lá fomos a caminho de Gadamael, onde chegámos por volta das 4 horas da tarde. Desta vez não houve jantar, pois a malta da guarnição local estava a ser alimentada a ração de combate porque a despensa apresentava-se vazia e a ultima refeição quente tinha ocorrido ao almoço, arroz com um pouco de carne, do que ainda restava, daí a necessidade daquela malta ser reabastecida. Notei o incómodo daquele comandante, daquele homem que queria dar de comer aos seus soldados, e não tinha com quê, pedindo desculpa com a lágrima no canto do olho porque nada podia fazer. Fiquei sensibilizado com o comportamento daquele militar, que demonstrou possuir um grande altruísmo e carinho pelos seus semelhantes, grande lição de carácter me foi proporcionado, o que me serviu de guia pela vida fora. Obrigado camarada.

No regresso a Bissau, onde cheguei passados 10 dias, já não encontrei a minha Companhia no 600, pois tinha sido deslocada em 14Set67 para Nova Lamego, onde rendeu a CCAV 1963.

Foi assim o começo da minha prestação militar na Guiné Portuguesa.

Sem mais, recebam um forte alfa bravo, e até à próxima.
Abel Santos
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Nota do editor

Último poste da série de 18 de setembro de 2015 Guiné 63/74 - P15126: Estórias avulsas (83): Um velório no início da Comissão (José Vargues, ex-1.º Cabo escriturário)

Guiné 63/74 - P15694: E as nossas palmas vão para... (11): Catarina Gomes, a nossa amiga jornalista do "Público" que venceu o Prémio Rei de Espanha, na categoria imprensa escrita, com o trabalho "Quem é o filho que António deixou na Guerra?"... (Trata-se da segunda parte de um trabalho, iniciado em 2013, sobre os "Filhos do Vento")

1. Mensagem da nossa amiga Catarina Gomes
jornalista do "Público", com data de hoje:

 Professor,


A minha história do furriel e do filho em Angola ganhou recentemente o Prémio de Jornalismo Internacional Rei de Espanha: https://www.publico.pt/sociedade/noticia/publico-vence-premio-rei-de-espanha-1719968

Por causa disso, há uma jornalista brasileira que quer fazer uma peça sobre este tema dos filhos do vento, a ver se damos visibilidade ao tema. Falei-lhe em si e do blogue e em como há quem, entre os ex-militares, defenda que estes filhos devem ter nacionalidade e queira fazer por isso. Posso dar-lhe o seu número? Chama-se Marana Borges e trabalha para o maior site de conteúdos do Brasil, o UOL, que é como se fosse o nosso Sapo.

Abraço

Catarina

2. Recortes de imprensa > Jornalista do PÚBLICO vence Prémio Rei de Espanha

PÚBLICO 12/01/2016 - 15:50 [reproduzido com a devida vénia]


Catarina Gomes é a vencedora com o trabalho Quem é o filho que António deixou na guerra. Há 23 anos que um português não era premiado na categoria de imprensa escrita.



O encontro do pai (António Graça Bento, 63 anos) e do filho (Jorge Paulo
Bento, conhecido por o "Pula",na Unidade de Intervenção Rápida,
de Luena, a que pertence; tem agora 40 anos e 4 filhos; a mãe,
Esperança, já morreu em 2005). Foto de Manuel Roberto, fotojornalista
do Público, reproduzida com a devida vénia.
A jornalista do PÚBLICO Catarina Gomes é a vencedora do Prémio de Jornalismo Rei de Espanha na categoria Imprensa com o trabalho Quem é o filho que António deixou na Guerra?, a segunda parte de um trabalho iniciado já em 2013 sobre os filhos nascidos de relações entre ex-combatentes da guerra colonial e mulheres africanas, os Filhos do Vento. Ambos os trabalhos foram publicados na Revista 2.

A reportagem conta a história do ex-furriel António Bento, que viveu durante a guerra com uma angolana chamada Esperança Andrade e que sempre soube que tinha deixado um filho para trás. A reportagem acompanhou este reencontro. Mas a maior parte dos filhos de ex-combatentes na Guiné-Bissau não teve a mesma sorte. Até hoje, continuam sem saber quem é o seu "pai tuga", revelou a primeira parte deste trabalho que ganhou em 2014 o prémio Gazeta Multimédia, na primeira vez que foi atribuído a um órgão de comunicação social.

O trabalho de Catarina Gomes, que é jornalista do PÚBLICO desde 1998, mereceu a unanimidade do júri dos Prémios de Jornalismo Rei de Espanha 2015, organizados pela agência de notícias espanhola EFE e pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional, que esteve reunido entre segunda-feira e hoje em Madrid. Em acta, o júri menciona "uma reportagem que narra com uma linguagem emocionante a história de António Bento e da sua busca pelo filho que teve juntamente com uma angolana durante a guerra. É uma história que ilustra a proximidade entre dois povos e o sarar de feridas passadas.” A história de António Bento foi fotografada pelo fotojornalista do PÚBLICO Manuel Roberto e filmada pelo videojornalista Ricardo Rezende. A última vez que um jornalista português tinha sido distinguido com este galardão na categoria imprensa escrita foi em 1993, um trabalho de Maria Augusta Silva para o Diário de Notícias.

Os Prémios de Jornalismo Rei de Espanha receberam 185 trabalhos de 18 países, entre os quais seis trabalhos de jornalistas portugueses (dois na categoria imprensa escrita, dois em televisão, um na categoria rádio e outro na de jornalismo ambiental). Os países que mais trabalhos apresentaram foram a Colômbia (44), seguido do Brasil (39) e de Espanha (32).

O mesmo júri — que este ano integrou jornalistas espanhóis, um peruano e um português — também deliberou sobre o Prémio Don Quixote de Jornalismo 2015 (12.ª edição), tendo decidido atribuí-lo à crónica Cusco en el tiempo, do peruano Mario Vargas Llosa, publicada no diário espanhol El País.

Cada premiado receberá uma escultura em bronze do artista Joaquín Vaquero Turcios e uma verba de 6000 euros. O Prémio Don Quixote ascende a 9000 euros e uma escultura comemorativa. Os prémios serão entregues pelo rei de Espanha em data ainda a definir.

Catarina Gomes recebeu o prémio Gazeta Multimédia (2014), com a reportagem Filhos do Vento, juntamente com Manuel Roberto e Ricardo Rezende, que veio dar a conhecer as histórias de filhos de ex-combatentes de militares portugueses com mulheres africanas, deixados para trás nos tempos da guerra colonial. O interesse por este tema começou durante a pesquisa do livro que escreveu em 2014, Pai, tiveste medo?, editado pela Matéria-Prima, que reúne 12 histórias sobre a experiência da guerra colonial vista por filhos de ex-combatentes.

Com a reportagem Infâncias de Vitrine, que conta histórias de vidas de filhos separados à nascença de pais doentes com lepra, adultos que passaram as suas infâncias a vê-los através de um vidro, recebeu em 2015 o Prémio AMI-Jornalismo contra a Indiferença – a par com a reportagem Perdeu-se o pai de José Carlos – trabalho que foi também um dos finalistas mundiais, na categoria do texto, do Prémio de Jornalismo Iberoamericano Gabriel García Márquez. Foi argumentista do documentário Natália, a Diva Tragicómica, produzido pela RTP2 e pela Real Ficção.

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Nota do editor:

Último poste da série > 30 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14420: E as nossas palmas vão para... (10): João Crisóstomo e António Rodrigues, amigos da causa de Aristides de Sousa Mendes (Parte II)

Guiné 63/74 - P15693: Notas de leitura (804): “Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004 (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Janeiro de 2016:

Queridos amigos,
Foi prisioneiro após a invasão do Estado português da Índia, seguir-se-ão três comissões, das duas na Guiné, por onde andou no Olossato, Aldeia Formosa e Bolama, regressará meses depois, a pedido de Spínola, para acompanhar os reordenamentos, envolveu-se no 25 de Abril, foi governante na Madeira, onde recebeu o Presidente da República e Presidente do Conselho depostos; será assessor militar de Sá Carneiro, Comandante da Região Militar Norte e Chefe da Casa Militar de Mário Soares.
É intenso livro de memórias, o General Carlos de Azeredo é conhecido pela resposta pronta, pela língua afiada e pelo destemor. Vale a pena lê-lo do princípio ao fim.

Um abraço do
Mário


Trabalhos e Dias de um Soldado do Império (1)

Beja Santos

“Trabalhos e Dias de Um Soldado do Império”, por Carlos de Azeredo, Livraria Civilização, 2004, é um livro de memórias de alguém que cumpriu 5 comissões na Índia, Angola e Guiné, dirigiu o planeamento e comandou a execução do movimento militar do 25 de Abril para o Norte de Portugal, foi o último Governador Civil do Funchal, Presidente da Junta Governativa da Madeira, Assessor Militar de Sá Carneiro e Chefe da Casa Militar de Mário Soares. Neste volume de quase 500 páginas, extraímos as considerações produzidas às suas duas comissões na Guiné.

Chegou à Guiné em finais de Agosto de 1967, vai comandar a CCAV 1616, no Olossato. Esta Companhia bem como a CCAV 1615 pertenciam ao BCAV 1897, sediado em Mansabá. Encontrou o pessoal moralizado. “A minha primeira preocupação foi a de incutir no espírito dos meus homens que não éramos terroristas mas militares e que o inimigo, uma vez vencido, seria respeitado como uma pessoa humana. Sevícias ou maus tratos seriam severamente punidos". O que nos relata sobre o assalto a Iracunda, no Oio, prende a atenção. Não era a primeira vez que se procurava assaltar esta base a cerca de mil metros a poente do Morés. Repetiam-se sempre os mesmos erros, aparecia sempre o DO cerca das 9h30, seguiam-se sempre os mesmos itinerários. Decidiu quebrar a rotina, deteve-se atentamente na carta militar e decidiu que ali chegariam por terra firme que percorria o Istmo a Sul. Mandou formar a tropa ao fim da tarde e saíram pelas 22 horas. Afastados da povoação, expôs a operação, definiu missões aos grupos de combate, determinou absoluto silêncio rádio. Perto das 5 horas atingiram o extremo sul do Istmo e no carreiro que vinha do Morés deixou um grupo de combate emboscado, bem como outro a umas centenas de metros à frente, de reserva nas imediações da base. Aproximaram-se do objetivo, uma sentinela inimiga detetou-os, lançaram-se ao assalto, ninguém reagiu, abandonaram precipitadamente a base. Nas moranças encontraram armas, munições e documentos. Após algumas buscas encontraram um depósito de material. Apanharam cerca de seis toneladas de armamento pesado e ligeiro. Da direção do Morés, começaram a ser alvejados com fogo morteiro, retiraram e é na retirada que lhes infligem uma emboscada, ripostaram e minutos depois o inimigo levantou emboscada. Carlos de Azeredo é bem conhecido por ser intempestivo e cortante nas suas respostas. Quando o Dornier apareceu pelas 9h30, respondeu que marchavam de regresso ao Olossato. O comandante quis saber o que se passava com o cumprimento da missão e ele respondeu: “A base de Iracunda foi tomada e destruída e deve estar ainda a arder”. Pediu ao comandante que chamasse helicópteros para levar os feridos e parte do material.

Como bom oficial de Cavalaria, detesta os burocratas e oficiais do Estado-Maior e conta-nos uma história macabra. Em resposta a um ataque noturno ao Olossato, uma granada de morteiro caíra numa posição dos atacantes. Feito o reconhecimento encontraram vários restos de corpos humanos (dedos de mãos, miolos, um maxilar inferior, etc) foi tudo guardado num grande frasco com álcool. Semanas depois, anunciou-se a visita, com almoço, do Brigadeiro Comandante-Militar ao Olossato, oficial que nas reuniões dava sempre conselho sobre o modo de fazer a guerra. Para esse dia, Carlos de Azeredo escolheu uma ementa com carne de vaca. “Chegado o dia da visita, mandei colocar num tabuleiro um frasco com os restos dos pobres guerrilheiros, nadando num álcool já acastanhado, e cobrir tudo com um pano. Ao almoço, falou-se das atividades operacionais e eu levantei a questão da feracidade dos dados incluídos nos relatórios sobre as baixas causadas ao inimigo e que, para evitar dúvidas sobre a sua veracidade, eu procurava sempre que possível testemunhos fotográficos ou provas das baixas do adversário. Perguntou-me o Comandante Militar que provas eram essas. Fiz o sinal combinado ao soldado impedido na messe que se aproximou com o tabuleiro e, retirado o pano, descobriu os frascos com as provas. O Brigadeiro perdeu a cor e o apetite e nós vimo-nos assim libertos de mais perorações eruditas sobre o modo de fazer a guerra”. Recorda com saudade gente do Olossato, caso do Balanta Nhinté, o Fula Fogá e o Mandinga Braima.

Chega Spínola à Guiné e nomeia-o para comandar um setor operacional com base em Aldeia Formosa. Logo descobriu que o moral dos homens era muito baixo, pôs em marcha um plano urgente em obras de defesa, fala detalhadamente dos Cherno Rachid Djaló, com quem estabeleceu uma excelente relação. Elaborou um plano de concentração das povoações dos povos do Forriá. Os ataques mais poderosos vinham da povoação de Kansembel, na Guiné Conacri, as unidades do PAIGC traziam o armamento e a cerca de 600 metros tinham Aldeia Formosa ao seu alcance. Como estes ataques se iam multiplicando, Carlos de Azeredo pediu ao oficial artilheiro que introduzisse nos obuses os elementos de tiro para bombardear Kansembel. Aldeia Formosa fora bombardeada pelas 20 horas, pelas 22 mandou fazer fogo com os três obuses de campanha, despachou para cima de Kansembel nove granadas de 14. Preveniram o Comandante-Chefe da ocorrência, Spínola apresentou-se pelas 8 horas, vinha de má catadura. Percorreu a povoação onde ainda fumegavam restos de algumas casas, visitaram um cemitério onde se enterravam os mortos deitados de lado e virados para Meca. À despedida, disse ao Comandante Azeredo: “Lixe-os!”. Três dias depois, novo ataque violento, mandou responder com os obuses, foram disparadas 60 granadas sobre Kansembel. Veio a ser informado que a população de Kansembel já ameaçava o PAIGC de os expulsar da área. Cerca de um mês depois, nova flagelação sobre Aldeia Formosa. Duas noites depois, os obuses funcionaram entre as 4 e as 8 horas, sobre Kansembel. Nunca mais houve flagelações, as autoridades de Kansembel tinham proibido aos guerrilheiros um novo ataque à Aldeia Formosa.

Refere-nos as colunas logísticas para Ponte Balana e Gandembel, um verdadeiro Inferno. Em Fevereiro de 1969 assumiu o comando do CIME em Bolama.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de fevereiro de 2016 Guiné 63/74 - P15692: Notas de leitura (803): "Cartas de Amor de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem" (António Graça de Abreu / Márcia Souto, da editora Rosa de Porcelana)

Guiné 63/74 - P15692: Notas de leitura (803): "Cartas de Amor de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem" (António Graça de Abreu / Márcia Souto, da editora Rosa de Porcelana)




Capa e contracapa do livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem". Organização de Iva Cabral, Márcia Souto e Filinto Elísio. Praia, Cabo Verde: Rosa de Porcelana, 2015. (Cortesia da página do Facebook de Filinto Silva, cofundador da editora Rosa de Porcelana).



1. Mensagem de Antonio Graça de Abreu, escritor, poeta, sinólogo, nosso camarada, ex-alf mil, CAOP 1 [Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar, 1972/74], membro sénior da nossa Tabanca Grande, e ativo colaborador do nosso blogue com cerca de 170 referências:



Data: 21 de janeiro de 2016 às 11:43

Assunto: Cartas de Amor de Amílcar Cabral

Meu caro Luís

O Jornal "ponto final", Macau,  quinta feira,  21 jan 2016, de hoje portanto, traz este artigo de Márcia Souto (será mineira, brasileira?), que creio vale a pena publicar no blogue.

A editora Rosa de Porcelana creio que é de Cabo Verde. [Fundada em 2013 por Márcia Souto e Filinto Elísio]

Abraço,

António Graça de Abreu


2. O Amador e a Coisa Amada: considerações acerca da edição do livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem"

por Márcia Souto

"Ponto Final", Macau, 21 de janeiro de 2016 (reproduzido com a devida vénia)


Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude de muito o imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Luís Vaz de Camões


Há alguns meses, senti algo estremecer e este estremecimento, compartilhado com meu companheiro de vida e de lida, tornou-se enternecimento.

Confiadas pela historiadora Iva Cabral, tivemos, eu e Filinto Elísio, a grande honra de poder trabalhar, enquanto Editores, as cartas inéditas de Amílcar Cabral à sua primeira esposa, Maria Helena Vilhena Rodrigues. As missivas datam de 1946 a 1960.

Pelo facto, compreende-se o estremecimento e a emoção, bem como a responsabilidade que nos coube em editar tão valiosos textos. Desde o dia da generosa prenda, legada pela primogénita do casal Amílcar Cabral e Maria Helena, dormimos e acordámos envolvidos numa atmosfera de encanto. Já disse Guimarães Rosa que as pessoas não morrem, ficam é encantadas; assim, ressuscitados, senão mesmo transformados pelas cartas escritas por um Amílcar Cabral,  colega, amigo, namorado e marido de Maria Helena, estas passaram a habitar muito do nosso trabalho, da nossa casa, do nosso corpo, do nosso pensamento.

Do encantamento ao labor. Tratava-se de um livro de 53 missivas de/com amor, em que fomos vendo o desfiar de um belo romance nascendo, tomando corpo e caminhando firme, não só no tempo, mas no espaço, posto que por terras portuguesas, cabo-verdianas, bissau-guineenses e angolanas.

São cartas em que se vão descortinando aos poucos o Homem por trás do Mito, assim como a
Mulher, companheira e camarada, que, por meio do afeto e da confiança, permite-se estar na História. O amor a mover o mundo... O amor entre duas pessoas a metonimizar o amor pela Humanidade.

Superados os estremecimentos, arraigado o enternecimento, surgiu-nos um pudor estranho ("Mineira é Fogo!"): como tornar públicas letras tão íntimas? Ato contínuo, percebemos que a importância de se compreender Amílcar Cabral, uma das grandes figuras da nossa contemporaneidade e um dos arautos da luta anticolonial e anti-imperialista no século XX, superaria quaisquer sensações de invasão da privacidade. É que muito da intimidade de Amílcar, pelo teor germinal, explica o tanto do "homem do mundo" em que se tornara Cabral. Embora "amilcariano", como o próprio intitula seu estilo epistolar, não se pode fechar os olhos ao "cabralismo", já patente, então, no jovem estudante de engenharia agronómica ou consolidado, mais tarde, no competente engenheiro, que se compromete, por inteiro e com coerência, à luta pelo direito à autodeterminação e à independência dos povos africanos.

Ao invés dos frios e longínquos anexos, tomámos, na edição do nosso labor, a decisão de destacar
os textos fac-similados (razão de ser do livro), acompanhando cada transcrição com o seu respetivo
original, de modo a propiciar aos leitores não só o acompanhamento, no calor da leitura, do texto manuscrito (o papel, a letra e os estados de alma, elementos que possam vir a revelar mais acerca do autor no momento da feitura da carta), mas também para facilitar alguma atenção especial que
os mesmos possam ter em relação a alguma passagem e facilitar o contato mais próximo com o texto autógrafo.

Nesta edição da Rosa de Porcelana, amadora transformada, consoante a semântica camoniana, creio que operámos a tão barroca e moderna transubstanciação: vivemos, com alegria e consciência, como editores, parceiros, companheiros e amantes, um pouco da vida de Amílcar e Lena, com a certeza de que o mesmo pode acontecer aos muitos leitores que desejamos para esta obra.

Márcia Souto



Amílcar e Maria Helena recentemente chegados a Bissau, em 1952



Da direita para a esquerda: Amílcar Cabral, Maria Helena e Clara Schwarz, na estrada de regresso de Dakar para Bissau em 1954.


As presentes fotos do arquivo pessoal de Clara Schwarz, a decana da Tabanca Grande, que vai fazer completar este mês de fevereiro, no dia 14, 101 anos!... O seu marido, o escritor e jurista Artur Augusto Silva, é que conviveu mais com Amílcar Cabral. Clara, que foi professora no Liceu de Bissau, traduziu textos de Cabral para francês. O nosso querido e saudoso amigo Pepito, o filho mais novo, nasceu em Bissau, em 1949 e morreu em Lisboa, em 2014. [LG]

Fotos (e legendas): © Clara Schwarz / Pepito  (2013). Todos os direitos reservados. [Edição: LG]

3. Comentário do editor LG:

Obrigado, António, pela tua atenção, sentido de oportunidade e gentileza (*). A Rosa de Porcelana é, de facto, uma editora luso-caboverdiana, com sede na Praia. O livro "Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: a outra face do Homem" tem já  sessões de lançamento para: (i) 12 de fevereiro, na cidade da Praia; (ii) 26 de fevereiro, na cidade de Luanda; e  (iii) 18 de março,  em Lisboa. A informação é do Filinto Elísio [ou Filinto Silva], na sua página no Facebook.

Esta edição tem apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação Amílcar Cabral, com sede na Praia.

Maria Helena [de Ataíde] Vilhena Rodrigues, engenheira agrónoma,  transmontana de Chaves, casou em 1951 com Amílcar Cabral, de quem teve duas filhas, Iva e Ana (**). Iva Maria nasceu em 1953, é hoje historiadora e vive na Praia, Cabo Verde. (Eu conhecia-a pessoalmente em Bissau, em 2008, por ocasião do Simpósio Internacional de  Guiledje).  Ana Luísa nasceu em 1962 e, segundo li, licenciou-se em  medicina e vive discretamente em Braga. 

Maria Helena e Amílcar separaram-se  definitivamente em meados da década de 60.  Cabral irá casar, em segundas núpcias, com Ana Maria Foss Sá, mais conhecida como Ana Maria Cabral, em maio de 1966. É assassinado em 20 de janeiro de 1973, na presença da segunda mulher. 

Sobre o resto da história de vida de Maria Helena,não sabemos grande coisa, nem se está viva. Casou, em segundas núpcias, com Henrique Cerqueira,  já falecido, um exilado político, português, em Rabat, Marrocos, que deu o alarme do desaparecimento do general Humberto Delgado, assassinado pelo agente da PIDE Casimiro Monteiro, perto de Badajoz,  em 13 de Fevereiro de 1965.  (Recorde-se que os cadáveres do general e da secretária apenas serão descobertos no dia 24 de Abril 1965.) Henrique Cerqueiro é autor de um livro panfletário, "Acuso", em dois  volumes (Aveiro, Editorial Intervenção, 1976), que terá diversas edições em Portugal.
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 31 de janeiro de 2016 > Guiné 63/74 - P15691: Notas de leitura (802): "Genocídio Contra Portugal", edição SNI, Lisboa, 1961 (Manuel Luís R. Sousa)

(**) Vd. poste de 13 de fevereiro de  2012 >  Guiné 63/74 - P9477: Notas de leitura (333): Maria Helena Vilhena Rodrigues, mulher de Amílcar Cabral (Mário Beja Santos)

(...) Na revista História de novembro de 1983 vem um artigo assinado por António Duarte “Amílcar Cabral visto pela viúva”, título de mau gosto, Maria Helena Vilhena Rodrigues foi a primeira mulher do líder do PAIGC, a viúva chama-se Ana Maria Cabral. 

O que conta é o retrato humano que ela nos oferece do namorado, marido e lutador pela independência. O que ela aqui menciona vem já reproduzido noutros textos, na sua tese de doutoramento Julião Soares de Sousa refere abundantemente o seu depoimento. 

Conheceram-se no primeiro ano do curso de Agronomia. Amílcar cedo se tornou popular, tanto como aluno distinto como pela sua simpatia. A aproximação fez-se no terceiro ano do curso, quando transitaram apenas escassos 25 dos 220 alunos iniciais. Ela recorda que Amílcar a ajudava muito nos estudos, ela sentiu-se muito atraída: “Achava que ele era uma pessoa extraordinária, com uma grande cabeça. Quando ele me pediu namoro, não recusei”. E adianta: “Admirava a sua maneira de estar na vida, de interpretar a vida. Apesar de ignorante de tudo o que se passava lá fora, eu interrogava-me muito sobre certos aspetos ligas à pobreza. Não entendia as razões das diferenças sociais… Serenamente e de uma forma clara, tudo isso o Amílcar me explicava”. Quando passeavam de mão dada, ouviam-se comentários, afloravam-se preconceitos. Maria Helena recorda que ele tinha sempre uma explicação, nunca perdia o controlo: “Eu vim de longe. É natural, sou diferente deles. Você é uma moça muito bonita que namora comigo. Compreende-se…”.

(...) Casaram-se em 1951, Maria Helena estava ligeiramente atrasada, ele apresentou trabalho sobre os solos e andou pela aldeia de Cuba no Alentejo, ela dedicou-se à botânica e pastos.

(...)  Partem para a Guiné-Bissau [, em 1952], é aqui que vai nascer a primeira filha do casal, Iva. Vão permanecer três anos na Guiné-Bissau, Amílcar vai ficar a conhecer a Guiné de lés a lés, tudo graças ao recenseamento agrícola. Ambos adoecem e regressam a Lisboa. Ele trabalha temporariamente na brigada fitossanitária, em Santos, Maria Helena entrega finalmente a tese. Os professores de Agronomia arranjam trabalho para Amílcar e ele vai para Angola. Ela acompanha-o em 1957, fica como professora em Luanda e no Lobito. Nesse ano têm já casa na Avenida Infante Santo, em Lisboa. Data dessa época a vigilância da PIDE (...).

Estamos em dezembro de 1959, Cabral viaja até Paris. É daqui que ele lhe envia uma carta a Maria Helena em que lhe comunica que não volta, tem o seu caminho a seguir. Maria Helena parte para Paris, Cabral pede-lhe para regressar a Lisboa mas, logo a seguir, defende que Maria Helena e a filha devem abandonar Portugal. Sem alarde, ela abandona o país do ano seguinte, nessa altura já havia uma ordem de captura contra ela. Vai para Paris com a filha, ficam ali 8 meses. Cabral partira para Londres, já estava em plena atividade. Depois passa por Paris a caminho de Conacri. A vida do casal torna-se muito atribulada, Cabral, para sobreviver em Conacri trabalha como técnico agrícola, não tem dinheiro para pagar a habitação onde vive. Depois Cabral arranja uma casa que virá a ser a sede do PAIGC. Foi à porta dessa casa que ele será assassinado, na presença da Ana Maria Cabral, na noite de 20 de Janeiro de 1973. Maria Helena vai trabalhar como professora de liceu em Conacri, Cabral deixa o trabalho para se dedicar exclusivamente à luta de libertação. 

Maria Helena recorda: “Vivíamos praticamente só com o que eu ganhava no liceu. Era uma vida difícil. Tanto mais que estava para nascer a nossa segunda filha, Ana. Eu gostava muito de estar em Conacri porque todos ali eram meus amigos. Entretanto, tinham chegado, também, o Luís Cabral, o Aristides Pereira e a mulher, a Dulce Almada e o Abílio Duarte. E, mais uma vez, tive me separar do Amílcar. Ele achava que eu devia ter o bebé onde houvesse condições. Em Conacri não havia hospitais. Fui para Rabat”.

Seguem-se as opções de fundo, ambos vivem muito longe um do outro, Cabral achava que Maria Helena não devia fazer parte do PAIGC, depois do nascimento da filha, ele achou que ela não devia regressar a Conacri. A distância pesou no que virá a ser a separação do casal em 1966. Ela é omissa nesta entrevista, vários historiadores adiantam que tinham sérias divergências ideológicas. Cabral irá casar com Ana Maria, Maria Helena, em Rabat, casa com Henrique Cerqueira, ajudante de campo do general Humberto Delgado no exílio. Cerqueira irá ser muito badalado em Portugal, depois do 25 de Abril por ter escrito o polémico livro “Acuso!”, sobre o caso Delgado.

E ela termina dizendo: “O PAIGC ainda fez um esforço para salvar o nosso casamento. Convidaram-nos para passar umas férias na União Soviética, mas o Amílcar não quis ir… Foi assim”. (...)

domingo, 31 de janeiro de 2016

Guiné 63/74 - P15691: Notas de leitura (802): "Genocídio Contra Portugal", edição SNI, Lisboa, 1961 (Manuel Luís R. Sousa)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Luís R. Sousa, Sargento-Ajudante Reformado da GNR (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74), com data de 14 de Janeiro de 2016:

Amigo Carlos Vinhal:

Recentemente evoluía eu na escrita do meu livro, descrevendo em pormenor imagens que me marcaram profundamente na minha adolescência, ao ter acesso a imagens arrepiantes associadas ao massacre de Quitexe no Norte de Angola, decorria o ano de 1961.

Ao escrever, depois de já ter feito a descrição física da pequena publicação que continha essas imagens, mesmo não tendo dúvidas do aspecto daquele documento, embora na altura em que o vi ainda fosse muito novo, experimentei em fazer uma pequena pesquisa na Net, com o objectivo de encontrar algo associado àquelas minhas memórias. Para minha surpresa, tantos anos depois, encontrei mesmo a fotografia do pequeno livro, exactamente como eu o tinha descrito.

Assim, por entender que o assunto tem algum interesse em ser divulgado no nosso blogue, envio-te em anexo um pequeno excerto do livro que melhor descreve o que acabei de referir, e mando-te a fotografia visada para ilustração.

Um abraço deste teu companheiro e amigo
Manuel Sousa


"...Recuando alguns anos, tinha eu cerca de onze anos de idade, com a mesma tarefa de guardar o milho dos ataques do texugo, ia com o meu irmão Fernando dormir à nossa "Cabreira". Os mesmos receios da noite como atrás mencionei, embora este período coincidisse com as festividades da Nossa Senhora da Saúde na aldeia de Mogo de Malta, Carrazeda de Ansiães, em finais de Julho, cujo santuário se apresentava iluminado à nossa frente, lá no alto da encosta nascente do vale da Cabreira, que, de algum modo, tornava a noite menos tenebrosa. Porém, como criança que era, numa dessas noites, senti-me particularmente amedrontado com imagens horripilantes que se afiguravam de uma forma constante na minha mente.

Decorria o ano de 1961, estávamos em Julho ou Agosto, portanto, e aquele meu irmão tinha arranjado, não sei onde, uma pequena brochura com capas negras sarapintadas, graficamente, com manchas vermelhas, representando gotas de sangue. "Genocídio contra Portugal". Estava assim escrito na capa a letras vermelhas, configurando terem sido gravadas com sangue. Eram indescritíveis as imagens de terror que o interior daquele pequeno livro continha! Melhor teria sido se as não tivesse visto. Noite arrepiante aquela que eu passei! Para onde quer que olhasse no escuro que nos envolvia ou mesmo com os olhos fechados debaixo da manta que nos cobria, aquele espectáculo aterrador perseguia-me. Só alguns anos mais tarde tive a capacidade de ligar e associar estas imagens às primeiras investidas dos movimentos de libertação das colónias portuguesas de então. Tratava-se do massacre do Quitexe no norte de Angola que tinha ocorrido no mês de Março desse ano, por parte da UPA (União Popular de Angola).

Levado pela curiosidade, hoje fiz uma pesquisa na Internet e encontrei esse mesmo livro, exactamente com a forma que acabei de descrever, que alguém quer vender por 50 euros como documento histórico, cuja fotografia, pela crueldade que ela representa, não vou publicar neste livro".

Eis a apresentação da fotografia, para venda:


"GENOCÍDIO CONTRA PORTUGAL"
Edição SNI, Lisboa 1961
Livro com 16 páginas e muito ilustrado.
Em muito bom estado de conservação.
De muito, muito difícil localização.
MUITO RARO.

Documento editado pelo SNI (Serviço Nacional de Informação), de denúncia dos massacres efectuados pelos guerrilheiros da UPA, liderada então por Holden Roberto, no norte da ex-colónia portuguesa de Angola, a partir de 15 de Março de 1961, onde foram mortos centenas ou milhares de civis, homens, mulheres, velhos e crianças, brancos, negros e mulatos, com requintes de malvadez, conforme atestam as fotografias.
Trata-se pois de um documento histórico daqueles acontecimentos.
Preço: 50,00€

Com a devida vénia a Livros Ultramar - Guerra Colonial


 Manuel Sousa
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de janeiro de 2016 Guiné 63/74 - P15685: Notas de leitura (801): "Catarse", da autoria do Pe. Abel Gonçalves (Major-Capelão do BCAÇ 1911 e do BCAV 1905), edição de autor, 2007 (2) (Mário Beja Santos)