terça-feira, 25 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3518: História de vida (18): Evacuado duas vezes e meia...(Hugo Guerra, ex-alf mil, cmdt Pel Caç Nat 55 e 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70); hoje cor ref, DFA



Meia evacuação, ou... uma grande salganhada


Hugo Guerra
ex-Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 55 e Pel Caç Nat 60 (Gandembel, Ponte Balana, Chamarra e S. Domingos, 1968/70), hoje Coronel, DFA, na reforma


Às tantas. Até nisto fui exagerado. Fui evacuado por duas vezes e meia.

A meia evacuação

E tenho que começar pela meia evacuação para se perceber como aconteceram as outras duas. Foi assim:


Em Julho de 1969, já eu estava na Chamarra, fora, portanto de Gandembel e Ponte Balana, quando vim de férias à Metrópole. Tinha 24 anos, acabados de fazer, e já tinha dois filhos.

Mal acabei de regressar a Aldeia Formosa/Chamarra recebi uma carta da minha mulher, que teve o efeito duma mina anti-pessoal. Dizia-me ela que tinha encontrado o amor da sua vida e que ia viver com ele para Moçambique, pois fora mobilizado para uma comissão naquele Serviço que fazia os filmes, das festarolas que aconteciam em Angola e Moçambique, onde vim a trabalhar mais tarde.

Isto não me podia estar a acontecer e ainda hoje culpo estes acontecimentos de tudo o que vem a seguir.

Como não podia ficar parado a assistir de longe a este percalço, meti-me a caminho e fui falar com o General Spínola, pedi-lhe 8 dias para voltar a Lisboa e esclarecer aquele pesadelo, e que de imediato me foram concedidos.

A minha ligação de amizade com os Páras e o Coronel Diogo Neto, a quem pedi uma boleia no 1º avião que saísse de Bissau, colocou-me em Lisboa na noite seguinte.

Esclarecida a situação, para mim completamente surrealista, pois mais parecia estar a viver um pesadelo, fui às Urgências do HMP [Hospital Militar Principal, à Estrela] em desespero de causa, mas com a ideia que tinha duas coisas a fazer: (i) Cumprir o que tinha prometido ao General Spínola; e (ii) fugir de tudo isto - os meus 24 anos e a época em que vivíamos, não eram compatíveis com a visão marialva da vida que tinha levado até então.

Fui muito bem atendido no HMP e drogaram-me o suficiente para chegar a Bissau, como era meu desejo. Podia ter acabado ali a minha comissão mas o orgulho ferido e a vergonha eram muito fortes e pensava que o melhor era pôr a distância entre mim e toda esta porcaria.

Lá embarquei num avião militar que fez escala em Cabo Verde e, como ia cheio de comprimidos, adormeci profundamente num banco de madeira que por lá havia e esqueceram-se de me acordar.

Só passado mais de meia hora deram comigo e lá segui, com uma carta do HMP para baixar de imediato ao HM 241, à Psiquiatria. 18 de Julho de 1969. Como o percurso foi ao contrário chamo-lhe meia evacuação.

Vamos à seguinte

Na Psiquiatria em Bissau vi os apanhados do cacimbo e outros que se faziam a isso.
Não era bonito de ver essa golpada, quando mesmo ao lado tínhamos verdadeiros heróis, todos esfarrapados e já com peças a menos, que só eram evacuados se houvesse a certeza que não morriam pelo caminho; eu estive lá a estabilizar e como queria regressar ao meu pelotão, o Pel Caç Nat 55, os médicos devem ter percebido que eu já não batia certo e despacharam-me mesmo para Lisboa.

Passados dias vim então, evacuado para a Psiquiatria do HMP.

Na Psiquiatria onde fiquei internado em camarata, pois claro, com janela virada para o Jardim da Estrela onde as moto-serras começavam o seu chinfrim às horas em que conseguia adormecer (durante a noite os pesadelos eram mais que muitos), dizia eu, na Psiquiatria, éramos atendidos por Psiquiatras novatos, muito junto uns as outros, de modo que uma consulta era muitas vezes partilhadas com os vizinhos do lado.

Acho que a medicação também devia ser standard , o que nos fazia parecer um bando de doidinhos.

Cansado disto e porque mais uma vez me encontrava em Lisboa onde me sentia altamente traumatizado e desconfortável, pedi para tratar-me em ambulatório, gozei uns dias de férias no Algarve e, ainda sem os 12 meses cumpridos, pedi outra vez que dessem alta e mandassem de volta à Guerra.

Fui a uma Junta Médica e consideraram que eu estava no meu melhor e apto... para todo o serviço militar. Mais tarde e, na sequência deste filme, a doença foi considerada como adquirida em Serviço de Campanha.

Ter ou não 12 meses cumpridos em zona de 100% era importante por ser norma, não sei se escrita, que o pessoal nessas condições fazia o resto da Comissão em Portugal. Nem disso quis saber...

E só regressei a Bissau depois do Ano Novo, 1970, Janeiro, porque as meninas do Depósito Geral de Adidos, com peninha de mim foram escamoteando o meu regresso até passar as Festas Natalícias.

Terceira e última

Cheguei a Bissau em Janeiro, salvo erro a 18, e queriam ficar comigo na cidade. Bati o pé, fiz birra e lá marchei para S. Domingos, zona calma onde os periquitos faziam a sua adaptação ao clima e ao barulho da guerra.

Foi aí que dormi pela primeira vez numa cama normal com lençóis e tudo. Trocava todo o meu vencimento da Guiné por garrafas de whisky, que bebia até esquecer... mas as o 1º da CCS não se esquecia e lá vinha fazer contas comigo. Levava as garrafas, ainda intactas, e passados dias eu já estava a refazer o stock.

Fiquei a comandar o Pel Caç Nat 60 e ainda tenho algumas lembranças de coisas que por lá aconteceram. Adiante.

No dia 13 de Março de 1970, ia comandar um patrulhamento até à fronteira e eis senão quando detectámos uma primeira mina reforçada, mas em tal estado de conservação que não houve qualquer problema para a levantar.

Tinha no Pelotão um Primeiro Cabo, de nome Seleiro, já com um longo historial de levantar minas e, depois de a vermos, concordei que ele a levantasse, o que foi feito sem qualquer problema. Passámos o detonador para a bolsa do enfermeiro e continuámos a progressão.

Como eu era sempre o terceiro ou quarto homem depois das picas, vi perfeitamente que os picadores tinham localizado qualquer coisa. Montada a segurança lá chamei de novo o Seleiro para conferenciarmos sobre aquela.

Depois de nos certificarmos que estava isolada, tinha que decidir se abortava a operação, rebentando a mesma e regressando a São Domingos, expostos a alguma emboscada do IN. Se fosse entendido desactivar a mesma, poderíamos ir ao objectivo e no regresso levantá-la sem qualquer perigo.

Um e outro rastejámos até à mina que parecia nova e eu comecei a dizer ao seleiro que a queria levantar. Ele acabaria a sua comissão dois meses mais tarde.

Comecei a suar por todos os poros e depois de olhar bem aquela malvada, disse ao Seleiro que não era capaz. Ele disse-me que não havia crise e tomou o meu lugar.

Deitado no chão a cerca de 5 metros, acompanhei todos os seus movimentos com angústia e só relaxei um pouco quando ele, de joelhos e com a mina na mão, prestes a desarmadilhá-la me chamou:

- Meu Alferes, olhe aqui.

Comecei a levantar-me e senti o estrondo infernal, o sopro que me projectou de costas, o sangue quente a escorrer na cara e os gritos dele a dizer que estava morto…

Mas não estava. Os nossos homens trataram-nos o melhor possível, pediram as evacuações e fizeram uma macas com bambus e camisas. Tinha medo de perder a consciência e passar para o outro lado.

Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Seleiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo.

Quarenta e oito horas depois chegámos ao aeroporto de Figo Maduro e, como já foi dito por um camarada nosso, fomos colocados dentro de ambulâncias militares e sem qualquer barulho para não acordar a cidade, levaram-me a mim para o HMP na Infante Santo e o Seleiro foi levado para o Anexo, em Campolide.

Fiquei num quarto com mais dois camaradas que estavam lá a repousar, duma operação a uma hérnia um, e de um quisto qualquer, outro.

Só passados cerca de 10 dias a minha família foi avisada e nada disseram aos meus Pais. Afinal ainda podia morrer. Recordo-me de ver dois vultos aos pés da minha cama e ouvir a voz da minha irmã mais velha dizer, lamuriante:

- O meu irmão era tão bonito.

Imagino o aspecto que teria todo queimado e cheio de cicatrizes na cara, cabeça e membros. Nessa altura já o médico me tinha dito que tinha ficado sem o olho esquerdo e começaria os tratamentos a seguir à Páscoa quando estivesse mais estabilizado. Só ao fim de dez ou quinze dias comecei a poder comer porque até aí os dentes abanavam todos.

Em meados de Abril já fazia a pé o caminho para as diversas clínicas que passei a frequentar e apanhei o primeiro susto quando tiveram que me amputar os restos do olho.

Foi horrível mas acho que foi o Luís (Graça) que pediu algumas vivências de camaradas da Tabanca que tivessem frequentado o HMP, tout court.

Não sei se esta parte da Guerra é publicável, mas eu limito-me a contar a minha história, como a vivi e sobrevivi.

A verdade é que com isto tudo estava outra vez em Lisboa e, assim que achei que estava operacional, em Agosto outra vez, pedi para me mandarem à Junta Médica (JHM) e fiquei livre da minha guerra de G3.

Assim pensava. Em Outubro já estava em Angola a tomar conta da Fazenda Tabi, em zona de guerra, perto do Ambriz e fiquei naquele belo País até Abril de 1974. Foi o tempo para lamber e sarar as feridas.

Um abraço do
Hugo Guerra

__________


Notas de vb:

1. Artigos do Hugo Guerra em

Guiné 63/74 - P3443: Guiné/Vietname. Por favor, deixem-me sair de Gandembel (Hugo Guerra)

2. E da série Histórias de vida em:

17 de Novembro de 2008 >Guiné 63/74 - P3464: Histórias de Vitor Junqueira (10): Santa Paz

6 comentários:

Luís Graça disse...

Obrigado, Hugo, por teres respondido à chamada. E sobretudo teres sabido interpretar o meu tímido repto...Por pudor, não gostamos de mostrar, em público, as chagas do corpo e as mazelas da alma.

A tua história de vida dava um livro, como se costuma dizer. Não te falta o talento para a escrever e, o mais importante, a matéria-prima.

Obrigado, amigo e camarada, tiro o chapéu à tua coragem, não à de ontem, mas à de hoje: reviver todo esse pesadelo dos teus 24/25 anos, não sei se te faz bem, se te faz mal... Mas, para mim, a tua história de vida dá um toque imensamente humano à História com H grande... Um dia, os Historiadores com H grande vão esquecer-se, mais uma vez, de nós, o Guerra, o Celeiro, o Baptista, o Marques, o Gramunha, o Cunha, e por aí fora, de todos nós que morremos, que ficámos estropiados, feridos no corpo e na alma, e que fizémos a guerra, e que a ganhámos e perdemos mil vezes... Um dia, os senhores doutores vão contar a guerra, descrever as batalhas, avaliar as estratégais dos generais, pintar um grande quadro sinóptico, e tu, Hugo, não estás lá, nem como simples figurante, como mero adereço, ao lado do poidão de Chamarra... Mas os teus camaradas, os teus amigos, os teus filhos e os teus netos, terão orgulho em ti, tu que foste evacuado duas vezes e meia e andaste a voar nesse ninho de jagudis e de águias que era a psiquitria do Hospital Militar Principal, entre heróis e filhos da mãe...

Terão orgulho em ti, por que foste um homem digno, um militar nobre e uma camarada solidário... Não é fácil, a um militar com o teu currículo, vir aqui, num blogue de camaradas, admitir que não foste capaz, daquela vez, em São Domingos, levantar a maldita mina que te iria marcar, no corpo e na malta, para o resto da vida. A ti e ao Celeiro.

Deixa-me dizer-te, por fim, que achei muito lindo o que escreveste sobre ele, o cabo Celeiro. É um naco de prosa de antologia:

"Aguentei, em choque, até chegarmos ao HM 241 em Bissau e o que mais me agradava naquele desespero todo era continuar a ouvir o Celeiro a dizer que estava morto. Se ele se calasse, sabia que podia ter perdido um amigo".

Aceita um Alfa Bravo deste teu leitor, reconhecido. Cuida de ti e... do olho que a maldita não te conseguiu roubar. Luís

Anónimo disse...

Volto por motivos superiores.
Mais um texto que nos orgulha, mas que dizer do comentário.
Não somente este, os do post anterior,P3517, tb devem ser relidos .
Superior é ter um comentário que faz enobrecer a obra.
Boa Luiz
Jorge Félix

Anónimo disse...

Mais palavras para quê?
Só te quero enviar um ABRAÇO FORTE Camarada.Encontra a tua Paz.
Torcato

Anónimo disse...

Hugo.
Depois do que li,que dizer-te ?. . .
Em silêncio, deixa-me vaguear pela "nossa" Guiné. Voltar a re-ver-te em Mampatá, o "puto"do alferes periquito, alto, esguio e medrosamente confiante, que tinha um destino traçado - Gandembel.
Nessa noite em Gandembel o ataque foi duro e prolongado e tu a ouvires a "festa" ao longe ! Eu estava lá contigo. Alguém disse:Meu alferes é aquela merda que o espera.Alferes periquito, sofre . . .
Em silêncio deixa-me abraçar-te. Não tenho palavras, essas, foram esmagadas no texto que corajosamente escreveste.

Anónimo disse...

É isto que faz a riqueza do Blog, o pesadelo (como lhe chama o Luís) do Hugo em contraste com a hilariante estória cabraliana. E já agora só uma nota que é mais um preciosismo aos editores: retirem a referência ao Pel Caç Nat 50 que nunca existiu, como o próprio Hugo já esclareceu no Post 2415. Estes pelotões tiveram o seu baptismo em Agosto de 1966 em Bolama e a numeração, por qualquer razão que desconheço, começou com o número 51.
Abraço Henrique Matos

Anónimo disse...

Os escritos anteriores tinham-me causado já uma certa simpatia, até mesmo empatia. Mas pensei que fosse por causa de Gandembel. Quanto a este texto,h quero cumprimentar o Hugo Marçal pela coragem de se expor (e explicar?).
Fiquei comovido.
Dois abraços e ...meio
Alberto Branquinho