1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 20 de Novembro de 2010:
Amigo Carlos
Espero que estejas já completamente restabelecido.
Envio-te mais um pouco de “Viagem…” que complementa a narrativa de uma situação vivida e não esquecida, mas com data certa perdida. Talvez o Jorge Picado ou algum outro possa ter memórias destas movimentações.
Como sempre, fica ao teu critério a análise e decisão do interesse que possa ter, para publicação.
Um grande abraço para ti e outro para todos os “Atabancados”, com votos verdadeiros de saúde e independência, neste sombrio e imprevisível 2011
Luís Faria
Viagem à volta das minhas memórias (38)
Teixeira Pinto – movimentações militares e dores de cabeça
Passados os momentos críticos e comunicado por rádio ao Comando o que se passara (Poste 7429), há que pôr rapidamente o mini GCOMB em marcha dentro do possível acelerada, numa tentativa que se veio a revelar vã, de intercepção do grupo armado. Ao mesmo tempo, o estar fora de zona martelava-me a cabeça fazendo-me pensar não tanto na eventual ”porrada” mas, isso sim, na situação perigosa em que ficaríamos se o Comando resolvesse bater zona ou o mais provável, enviar tropa para intercepção.
Assim resolvi que caminhássemos controlando o tempo, mas o mais rápido possível na noite, para NW em direcção à estrada que de certeza não seria batida, ao mesmo tempo que, quando solicitado, íamos informando o Comando da nossa posição (pelo mapa) como se estivéssemos a fazer o percurso para Sul, em direcção a Teixeira Pinto. Deste modo iria haver um ponto em que as trajectórias fictícia e real coincidiriam e aí… estaria safo e podíamos “passar a ser visíveis”!!
O Pessoal sente que o cutelo está no ar sobre o meu pescoço e segue a mínima instrução dada, confiando cegamente ! Maravilha de Rapazes! De pistola na mão continuo guiando a Rapaziada na noite , entretanto um pouco amainada de chuva, rumo ao ponto escolhido.
Estávamos nestas andanças e já muito próximos da estrada, quando se avistam “luzes andantes” encimadas por o que me pareceram focos intensos que rasgavam a noite, vindas na nossa direcção e se começa a ouvir barulho de motores. Continuávamos fora de zona pelo que, se detectados poderíamos ser considerados IN. As luzes continuam a sua aproximação acompanhadas, já em simultâneo, pelo ronco motorizado.
Encontramo-nos a umas poucas dezenas de metros da estrada, em terrenos com vegetação rasteira, com um pequeno grupo de cajueiros(?) a uns metros de nós. Corremos para eles e colamo-nos ao chão mascarando-nos o melhor possível, ficando estáticos. A chuva ajudava. Só por muito pouca sorte seríamos detectados. Minutos depois desfilam “Daimllers” e Unimogs pela fita da estrada, com os focos varrendo a escuridão e passando por nós sem se aperceberem da nossa presença, como fora previsível .
Perdidas de vista as luzes e antes que a coluna regressasse, continuou-se o avanço prudente até que achei que era hora de informar da nossa posição real e de informar do regresso à base.
Graças a Deus tudo tinha corrido bem até ali. Para a frente… logo se veria!
A pequena “bicha de pirilau” espaçada e mal armada, começa a entrar na povoação. De súbito e chamando-me, surge- me o Castro que me traz a G3 e cartucheiras e que começa a infiltrar Rapazes e armas na fila, sem que houvesse paragem e sem explicações desnecessárias. Era óbvio que algo se passava! Ao meter a Walther no coldre… não o encontro! Mais outra porra a resolver! A arma vai para o bolso interior do camuflado onde tantas vezes andara já!
Fiquei satisfeito com a atitude, com a camaradagem e apreço demonstrados pelo Pessoal. O andamento prossegue, agora já não de uma dúzia de “veraneantes” mas de um grupo fortemente armado, o que me iria “salvar” das eventuais consequências de ter saído naquelas (sem) condições, de que só eu era responsável. Tinha sido essa a intenção do Castro e do Pessoal, ao que sei. Como ele sabia por onde íamos passar… já não sei, nem ele recorda.
Passada a porta de armas e na parada, o Grupo forma e apresenta-se, à nossa maneira, ao Cap. Branco, que a reporta ao Comandante do CAOP, Cor Durão. Manga de pessoal era observador!
Com olhar penetrante e expressão cerrada perscruta o Grupo e encarando-me de frente, o que me fez ficar apreensivo e tenso, diz-me irritado,alto e bom som mais ou menos “com um grupo destes e assim armado, deixas escapar uma dúzia de gajos? Mereces é que te dê umas estaladas …”
Aguentei firme o olhar, a mão ferrou-se com força na G3 e enquanto um turbilhão de sentimentos se me passou num “flash”, ouço o Cap. Branco retorquir calmamente em minha defesa algo muito próximo de “…meu Comandante, se houver lugar a castigo, quem castiga os meus Homens sou eu…”!!
Ah, Homem de tomates este meu Capitão Branco!
Destroçada a formatura, dirijo-me ao Capitão e sem lhe contar o que se passara, digo-lhe…” na mesma situação, se fosse o Capitão a comandar teria de certeza feito o mesmo!” ao que anuiu e retorquiu que ficasse descansado. Achei uma prova de confiança. Era um Homem Militar batido, inteligente e esperto. Nunca me perguntou ou indagou rigorosamente nada! Ter-lhe-ia contado, sem qualquer problema, como tudo se passara.
Peço aos Rapazes para não se pronunciarem sobre o que se passou e recolho-me aos aposentos para descansar umas horas. Logo ao alvorecer teria que ir tentar encontrar o coldre da pistola, antes que qualquer elemento da população desse com ele e o fosse entregar ao Comando. Seria a estória do “gato escondido com o rabo de fora”! Julgava saber onde o encontrar e ao alvorecer dirijo-me numa viatura à zona dos cajueiros e… lá estava !
Toda esta estória que pôs o Quartel em polvorosa - despoletada por um grupo IN armado que afinal roubou gado e creio que raptou alguém em Teixeira Pinto ou nas proximidades (já não recordo) - teria acabado por ali, não fossem as bocas enviesadas do género “há gajos valentes…” , os olhares de soslaio… o sair de ao lado, no bar… enfim uma série de manifestações, umas reais outras talvez na minha interpretação, que a meu ver não abonavam alguns Especiais, mas que eu justificava por me terem visto regressar com um GRUPO fortemente armado que tinha evitado o confronto com uma mão cheia de “gajos” e claro, estávamos no seio de Tropa Especial! É verdade que estas atitudes criaram alguns atritos pessoais durante um ou dois dias, mas o mais difícil foi sentir a consciência tranquila e não poder esclarecer a verdade.
Os dias recomeçaram a passar com normalidade e sem mais conflitos, levando-nos a breve prazo para outras batalhas, travadas no meio do nada!
Luís Faria
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 13 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7429: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (37): Teixeira Pinto - Erro que podia ter sido fatal
[...] A decisão está tomada, só disparo se for detectado ou se eles se dirigirem na direcção dos meus Rapazes. Resta aguardar. Preparado e estático, rezo para que não se ouça a Rapaziada desprevenida.
Continuam a aproximar-se ligeiros e em silencio… dez metros, cinco metros, um metro… estou em tensão, mas calmo e frio… começo a contá-los… vão-me passando pela frente quase me roçando, dezassete elementos com espaçamentos curtos - quinze metralhadoras visíveis, confirmados dois RPG e não um - que começam a virar à esquerda, só Deus sabe porque e vão desaparecendo na noite.
Estávamos safos, graças a Deus. Três ou quatro minutos se tanto que me pareceram uma eternidade, se tinham escoado. De imediato movimento-me e instruo o Pessoal, que de nada se tinha apercebido. Pelo “banana” AVP1 contacto o Comando, alertando para eventual flagelação e informando do observado.
O mote estava lançado… movimentações bélicas iriam acontecer… outra dor de cabeça ia começar !
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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10 comentários:
Meu caro Luís Faria,
Na tua história anterior deixei a possibilidade desta tua aventura coincidir com um roubo de vacas, no mês de Outubro, no aldeamento de Capol.
Infelizmente aconteciam, por vezes, picardias entre as tropas especiais e a infantaria. Mesmo assim, julgo que o ambiente era bastante bom entre as tropas que serviram na Mata dos Madeiros.
Já o Coronel Durão tinha essa forma de actuar. Era rijo como uma rocha. Deixarei para uma ocasião futura uma experiência pessoal com ele.
Das poucas vezes que o contactei, quase sempre em cumprimentos, pareceu-me ser um homem correctíssimo e amável. Tinha sempre uma palavra a acompanhar o seu cumprimento.
Como comandante do CAOP1 (Teixeira Pinto) chegou, como bem sabes, a alinhar no mato com a malta.
Em suma um grande comandante.
Um abraço amigo,
José Câmara
Foi bom relembrares as qualidades do Cap. Branco, enquanto defensor dos seus homens e em quem piamente acreditava.Em situação muito grave em Bula, teve acto mais ou menos semelhante comigo.Grande Militar e Grande Homem!Espero que tenha sido boato, a notícia do seu falecimento.Quanto a ti, eu sei que o Major de Operações do Caop., também te não via com bons olhos, mas aí alguém com quem ele simpatizava, fez á sua maneira, a tua defesa e pelo que sei, ele passou a apreciar o teu desempenho, o que aliaz era justo.
Aquele abraço.
Jorge Fontinha
CARO LUIS,
A FORMA EMPOLGANTE COMO DESENVOLVES O RELATO,TRANSMITE A QUEM LÊ A IDEIA DE PRESENÇA NO LOCAL.
ISSO,É ESCREVER BEM.
UM GRANDE ABRAÇO
manelmaia
"...outras batalhas travadas no meio do nada!".
Luís,
Talvez, felizmente, todos os que tiveram que palmilhar matos e bolanhas, travaram dessas batalhas, algumas só para encher relatórios e apresentar os nossos decisores como gente atenta e capaz. Capaz de quê?
Tal como os relatórios de patrulhamentos, emboscadas e operações, que na secretaria podiam ser objecto de tratamento, para que não se pensasse em Bissau que a tropa dormia.
A tropa não dormia, nem os que manipulavam negócios de cobertores e rações, de gasoninas e arroz. E as capacidades revelavam-se como as intuições, para o comércio, como para as carreiras.
E também havia as baratas tontas, tantas, quanto queriam estar de bem com deus e o diabo.
Posso exagerar na interpretação, mas achei que encaixa.
Um abraço
JD
Caro Luís,
....De volta estou!
Para acrescentar o seguinte: Era mais fácil fazer a guerra quando tínhamos por trás comandantes amigos e compreensivos. O capitão Branco era um desses.
A avaliar pela tua história ele tinha galões em cima dos ombros e os tomates, bem medidos, em exposição na parada do aquartelamento de Teixeira Pinto.
José
Caro 'camarigo' Luís Faria
Esta história completa e complementa a anterior. Deste modo podemos ver o 'antes', o 'durante' e os vários 'depois'.
É bem verdade que a realidade muitas vezes consegue suplantar a ficção. Acho que para muitos daqueles que não passaram por essas situações, há dificuldade em acreditar. Mas acreditem, que é verdade!
O teu relato também ajuda, pois tem ritmo, tem 'atmosfera', quem se esforçar um pouco consegue 'estar lá'.
Para terminar é preciso sublinhar a determinação do teu Capitão, como correcta, justa e sábia.
Abraço
Hélder S.
Caro Luis.
Camarada.
Estou de volta. Faz tempo que te fiz uma pergunta que ficou(que eu saiba) sem resposta. Estiveste em Bula, mas Bula não faz parte de nenhuma das tuas crónicas. Porquê? Esta duvida persistente deve-se ao facto de eu ter estado em Bula até Agosto de 69, daí tendo saído para Bissorã. Desculpa voltar à carga (mas sem galopar...) mas não resisto à curiosidade.
Abraço camarigo do
armando pires
Camarigo Luís Faria
Ainda bem que tudo acabou sem consequências para ti e graças ao comportamento do teu comandante, Cap Branco.
Como já referi, tinha uma grande confusão quanto a este Capitão, que mais tarde vim a reencontrar aqui na minha santa terrinha, onde ele viveu alguns anos.
Continuo sem qualquer lembrança dele em TPinto, pois até o confundi com o Cmdt da CCaç Africana do Bachile ou duma CCaç do BCaç 3863 que chegou cerca das 20H30M do dia 24OUT71 ao CAOP 1 e que foi para o Bachile, de acordo com um parco apontamento existente na minha Agenda.
Mas isto não é de admirar, pois as minhas recordações são quase nulas.
Quanto ao dia em que aconteceu esta tua Patrulha, nada posso adiantar, já que apenas tenho apontado o caso de BINHANTE "Colecta e roubo em Binhante - incendiaram 14 moranças, grandes estragos Pop. Ameaças e sevícias, levaram Pop como carregadores", mas isto foi na noite de 24JUN71 e eu desloquei a esta Tabanca no dia 25 por duas vezes levando na 2.ª deslocação 4 sacos de arroz, que levantei na Casa Gouveia em nome do CAOP, assinando eu o levantamento.
O camarigo José Câmara deve ter razão, quanto ao aldeamento de CAPOL, logo a seguir e ligeiramente a Norte de Bajope, onde me desloquei por mais de uma vez. De facto, nestes aldeamentos a N do itinerário TPinto-Calequisse, eles costumavam ir roubar alimentação e "recrutar" pessoal, o que não quer dizer que não o fizessem a Sul de TPinto, já que dos meus poucos apontamentos consta uma deslocação a PADIM, a S de TPinto, no itinerário para Caió, no dia 9SET71, para assistir à distribuição de armas pela POP, que as tinha solicitado para sua defesa.
Quanto ao Cor Rafael Durão, de quem guardo boa recordação, era rude, mas um "bom cabo de querra" como antigamente se dizia e só o "via", a usar "os castigos corporais" com so Páras, quando se fechava com eles no gabinete.
Abraço
Jorge Picado
Caro Armando Pires
Abaixo segue cópia da resposta que te já tinha dado
uma abraço
Luis Faria
Caro Armando Pires
Pelo que me dizes...andaste pelos vistos distraído!!!
Os tempos que passei em Bula ( 1 NOV 70 - 24Maio 71 )estão à minha maneira retratados a começar no Poste
P 3508 de 24 Nov 2008 e à razão aproximada de um por mes.São uma catrewfa deles
Um abraço
Luis Faria
Segunda-feira, Outubro 25, 2010 1:26:00 PM
Camarada Luis, peço que aceites as minhas desculpas.
Ainda meti um parentesis, aquele do "que eu saiba", mas nem assim me safo.
Mais do que distraído, fui preguiçoso. E antes do mais, atrasado. Como podes verificar, só cheguei a esta nossa casa em Agosto de 2009. Depois, quando encontrei os teus escritos devia ter ido consultar o teu histórico e lá encontraria Bula.
È o que vou fazer com um renovado pedido de desculpas.
Novo abraço camarigo do
armando pires
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