quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Guiné 63/74 - P7557: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (10): O dia no Enxalé, em Madina e Belel

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Dezembro de 2010:

Malta,

É um tempo de dias excepcionais, boa colheita para o coração disponível.
Deixo aqui muito trabalho para a malta que viveu no Enxalé, segui depois para Madina e Belel, confirmei que tudo é áspero, penoso e até pobre. Mas o povo recebeu o Tangomau com calor, quis perceber o sentido da viagem, manda cumprimentos para quem ali combateu.

Um abraço do
Mário



Operação Tangomau (10)

Beja Santos

O dia no Enxalé, em Madina e Belel

1. Tudo quanto se vai ver, até a própria comunicação bem-sucedida com o recurso ao crioulo, deve-se ao infatigável desempenho do prestador de serviços Lânsana Sori. Sem ele, o Tangomau ficaria apeado, impossibilitado de visitar pontos ermos, inacessíveis a viaturas. Lânsana aparece na vida do Tangomau graças a Calilo Dahaba, condutor de ligeiros, que detectou a expectativa e encontrou uma resposta. Durante três dias, até ao termo da digressão em terras de Bambadinca e arredores, Lânsana será omnipresente, prestável, sorridente e compreensivo. 

Nesse dia 26, começou-se por ir ao mercado, depositaram-se as vitualhas no Bairro Joli, passou-se pela Bantajã Mandinga, inflectiu-se à esquerda, em direcção a Finete. Manga de cumprimentos na encruzilhada entre Finete e Canturé. O Sr. Biloche mostra casa, sabe-se lá até para dar um sinal da sua competência como construtor civil, ele andou com o Tangomau por Finete e discutiram com o chefe de tabanca a cedência de terreno para o anarca Jorge Cabral se transferir de Miami para ali. Há orçamentos, agora o anarca que tome decisões. 

O Tangomau não esquece a luminosidade do dia, o ar cheio de odores da floresta e os sons de Novembro. Não se vêem macacos mas há borboletas, os pássaros multicolores atravessam o Geba nos dois sentidos. O ronrom da máquina trepidante embala os viajantes. É uma sensação única ir falando para o ouvido do condutor e depois apontar com o nosso próprio ouvido para os lábios de quem fala. E assim se seguiu por Mato de Cão, Saliquinhé, São Belchior, sempre a avistar Samba Silate, na outra margem do Geba. Depois a curva para o Enxalé, é um dos trajectos mais gostosos para quem vê sem precisar de estar atento às rugosidades do estradão traiçoeiro. Feitas as apresentações, o Tangomau é conduzido por Suleimane Sanhá, chefe de tabanca, e dois antigos combatentes, Malã Tchamo e Sadjo Tchamo.


2. Em primeiro lugar, o Tangomau pediu esclarecimentos sobre o Enxalé de ontem e o de hoje. No passado, o Enxalé da guerra era abastecido por dois caminhos: o chamado porto novo, mais curto, na margem do Geba, em frente a Samba Silate; e o porto do Xime, um caminho de alguns quilómetros entre o Enxalé e o Geba. Hoje, estes dois portos estão desactivados. O que se está a mostrar era o início da estrada para o Porto Novo. 

O Tangomau não esconde a sua atracção pelos vestígios, pensa sempre nos sacrifícios, nas escoltas, nos cuidados, em aprovisionar em condições tão difíceis. A natureza ainda não mudou tudo. Certamente que quem viveu e combateu no Enxalé terá recordações deste caminho, um ponto de partida ou um ponto de chegada, consoante a situação, quem desembarcava não era só a comida nem as munições, eram também os homens que faziam a guerra.


3. Um plinto com história, alguém ali gravou nomes, talvez mortos em combate, sabe-se lá. O importante é que temos uma memória, os habitantes do Enxalé e cultores deste blogue terão histórias para contar. Tivesse havido tempo e tomava-se nota de tudo, até se teria fotografado em melhores condições. Agora, quem esteve no Enxalé conte a sua versão da história. Um esclarecimento: o Enxalé expandiu-se mas as edificações, disseram os acompanhantes do Tangomau, estão ali praticamente todas, à excepção dos abrigos e das vedações. 

Depois do Xitole, o Enxalé é um verdadeiro alfobre de vestígios. Oxalá que alguém os queira preservar.


4. Alto lá, aqui temos um sinal de uma companhia, a 556 (**), parece, está lá dentro um crocodilo e a legenda diz "Os Sem Pavor". Eles que se apresentem e que se orgulhem de que o tempo inclemente poupou a lembrança da sua passagem. O Tangomau ia cogitando: quem viveu e combateu no Enxalé tem razões de sobra para aqui vir em romagem de saudade.


5. Aqui está a prova provada da presença da Companhia dos madeirenses [, a CCAÇ 1439,]  os mesmos que habitaram em Missirá, que percorreram as mesmas estradas, que viram o sangue derramado no Cuor. O Tangomau foi convidado para o último convívio, que se realizou em Coruche e gostou muito. Agora pede-se a todos que escrevam sobre este monumento, certamente que lembranças não faltam.


6. Aqui temos um armazém, ou oficina, ou até caserna, a caminho da destruição total. Houve várias versões sobre a função do edifício, nem tem sentido andarmos a especular. Isto porque alguém avançou que se tratava de instalação comercial, anterior à guerra, mostrou os restos do telhado, dizendo que pertencia às instalações usadas por um comerciante. Compete à malta do blogue ler e identificar. Até teria mesmo sentido, caso seja possível, mostrar todas as fotografias de décadas atrás, de múltiplas presenças, e juntar agora estas imagens, para clarificar a memória.


7. Este edifício cheira a instalação do comando, seja para tratar do expediente ou local de convívio. Aqui também se ouviram opiniões díspares, houve quem argumentasse que era a casa de um antigo comerciante, nada da Casa Gouveia ou Ultramarina, um comerciante que ali viveu. Seja como for, tem função e está preservada. Agora, os antigos habitantes do Enxalé que se pronunciem.


8. Os guias foram peremptórios: aqui era refeitório, talvez dos oficiais ou dos sargentos, ou de ambos. Mais material para descodificar. Felizmente, que lhe puseram cobertura: será escola? Terá funções de mesquita? Era tal o afã do Tangomau em tudo registar que nem se pôs com conversa fiada, e bem gostaria. 

Não é preciso ser antropólogo para se saber que isto de conversar não é atar e pôr ao fumeiro, é preciso estar, criar atmosfera, deixar as mentes confiarem nas suas memórias; é preciso tempo para ganhar confiança. Talvez mais um motivo para voltar, assim pensa o Tangomau, este Enxalé está cheio de preciosidades, apetece andar por estes caminhos até ao rio, beleza natural não falta.


9. Quem terá vivido aqui? Mais discordância: para uns, aqui trabalhava o capitão e aqui vivia; para outros, era sala de convívio; houve reticentes, disseram que a construção era anterior à guerra. O Tangomau mantinha-se indiferente a tantas razões inconclusivas, o que ele queria era captar todos os vestígios, todas as marcas, ninguém o incumbiu da missão, foi ele que inventou esta obra asseada. Vamos a ver o que dizem os bloguers que lá viveram.


10. Armazém? Caserna? Escola? Edificação da tropa ou de comerciante? Que é de estrutura impressionante, não restam dúvidas. Quando se percorre o Enxalé fica-se com a noção de que a povoação já tinha história e um certo passado de residência e estadão comercial. Na reunião de Coruche compareceu uma senhora que ali viveu na infância, salvo erro filha de um comerciante. (**) O que se espera é que alguém lhe faça chegar estas imagens e a convoque para rememorar, mais não seja com base no seu acervo fotográfico.


11. Do Enxalé partiu-se à procura de Madina. Saiu-se de um território amplo, com vistas largas e com história. Entra-se num espaço hermético, árido e até inóspito. Não é difícil perceber como o PAIGC aqui estava aninhado e bem protegido. Este caminho fala de secura, de pouca fertilidade, de distâncias longínquas. Como se irá comprovar, deu que fazer os primeiros quatro quilómetros até Cabuca, passou-se ao largo, mas deu para ver que ali havia tabanca, e não pequena. 

É tudo aspereza à volta de Madina. O chefe de tabanca não estava, andava na faina. Foi o Sr. Sebastião Mendes quem nos acolheu, já Lânsana Sori dava sinais de esgotamento, graças àquele maldito pneu furado, que vê na primeira imagem. O que o Tangomau quis captar foi o futuro, as crianças à sombra, pois cá fora temos a ameaçadora fornalha do sol. E pensarmos nós que aqui houve combates terríveis, que morreram homens, mulheres e crianças, aqui se sinistraram Quebá Soncó e Fodé Dahaba. A cabeça do Tangomau não pára de girar. Sente-se apaziguado mas reserva para si este dever de memória.


12. Seguiu-se para Belel. Esta é uma enternecedora memória, a escola de Belel. Curiosamente, o professor, vemo-lo na primeira fila de pé, também se chama Sori, recebeu-nos efusivamente, propôs fotografia. O Tangoamu gosta a valer desta imagem, mais do que futuro temos aqui a hospitalidade guineense. Aqui se interrompe a viagem, a motocicleta está cada vez pior e o narrador quer ter mais história para contar, amanhã. Vamos continuar, está prometido.


(Continua)

Fotos: © Mário Beja Santos (2010). Todos os direitos reservados.
__________

Notas de CV/LG:

Vd. último poste da série de 30 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7528: Operação Tangomau (Mário Beja Santos) (9): O dia no Xitole e o regresso a Finete

(*)  CCAÇ 556 foi mobilizada pelo RI 6, partiu para a Guiné em 4/11/1963 e regressou a 28/10/1965. Esteve em Bissau, Enxalé e Bambadinca. Comandantes: Cap Inf José Abílio Lomba M;artins, Cap Inf Carlos Alberto Gonçalves, Ten Inf Fernando Gonçalves Foitinho.

(**) Vd. poste de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6116: O Nosso Livro de Visitas (85): Maria Helena Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, localidade onde nasceu há 60 anos, hoje residente nas Caldas da Rainha (Luís Graça)

(...) Na sequência do encontro da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole, Missirá, 1965/67) , em Coruche, contactou-me, por telefone,  a Maria Helena Carvalho, nascida no Enxalé, e actualmente casada, residente nas Caldas da Rainha (...) (Telef. 262 842 990). 

Seu pai, Amadeu Abrantes Pereira, natural de Seia, era um conhecido comerciante, o Pereira do Enxalé. Era dono um importante destilaria de aguardente cana, bem como de outras instalações e casas, que ainda hoje estão de pé. A família era muito estimada pela população local. 

A Maria Helena nasceu no Enxalé em 1950, se não erro. Saiu cedo de lá, creio que com sete ou oito anos, por volta de 1958, para ir estudar em Bissau e depois na Metrópole. Mas regressava nas férias grandes. As suas memórias de infância (e os seus amigos de infância) estão indelevelmente ligados a esse tempo e a esse lugar. Os pais acabaram por sair do Enxalé, fixando-se em Bissau, em 1962. Já havia nuvens negras que prenunciavam a chegada da borrasca da guerra. A matéria-prima (a cana de açúcar) que abastecia a destilaria começou a escassear. Os caminhos tornavam-se perigosos. O PAIGC fazia o seu trabalho de sapa. Entretanto, a mãe morreu e a Maria Helena ficou definitivamente entregue aos cuidados dos padrinhos, das Caldas da Rainha.

O património da família ainda lá está, no Enxalé, arruinado. Também tinham prédios em Bissau. Em 1989, a Maria Helena voltou aos lugares da sua infância. Ainda encontrou, no Enxalé, gente que trabalhava para o seu pai e amigos de infância.

Ela ainda fala do Enxalé e da Guiné com emoção. (...)

3 comentários:

Luís Graça disse...

Algum camarigo, que tenha estado no Enxalé, é capaz de ter a gentileza de telefonar a esta nossa amiga, que nasceu lá, e vive hoje nas Caldas da Rainha, para lhe dar conta desta foto-reportagem do Tangomau ?

O telefone do seu estabelecimento comercial é o que consta no final do poste...

Luís Graça disse...

Temos que acarinhar a ideia, sopbretudo junto das autoridades e comunidades locais da Guíné-Bissau, do Esatdo, das Forças Armadas, das ONG que lá operam, da CPLP, etc., que estas "marcas" dos portugueses são "artefactos culturais", com valor patrimonial, documental e até turístico... Alguns terão sido destruídos, como sínmbolos do "colonialismo", mas outros têm sido preservados (ou não destruídos)...

Temos que a obrigação moral, cívica e humana de contribuir para a sua preserção, começando por fotografá-los e identificá-los como temos feito no nosso blogue, nas nossas viagens, etc. E se possível apoiar (com algum dinheiro, com tecnologia, com conhecimento, com imaginação, com afecto e, sobretudo, com envolvimento dos professores e alunos das escolas locais)...

Não é tarefa fácil... Para nós, foram "lugares de passagem"... mas com outro signicado, muito mais profundo que o dos sítios "turísticos" por esse mundo fora por onde passámos, fizémos férias, dormimos um ou dois dias, viajámos a correr por razões profissionais ou outras, e que até fotografámos mecanicamente... Todas as nossas fotos da Guiné têm uma "história" por trás... E as últimas que tirámos nas últimas férias ? Depois de mostradas, a correr, aos amigos e familiares, ficam arrumadas (?) no disco externo do computador... O Enxalé, a Madina / Belel, Missirá, Finete, Matao Cão, Bambadinca, e tantos outros sítios que o nosso Tangomau "revisitou", fazem já parte do seu/nosso "genoma", vão morrer com ele, com cada um de nós....

Anónimo disse...

Tenho seguido com toda a atenção e expectativa o trabalho do nosso Tongomau. A Maria Helena disse-me há bocado que a casa do pai onde estava instalada a, digamos, sede da companhia (capitão, secretaria, refeitório de oficiais e sargentos) já não existia quando lá esteve em 1989. Ainda não teve oportunidade de ver o Blog, mas logo que seja possível vamos conversar a ver se me ajuda a melhor identificar os edifícios que aparecem nas fotos. O plinto da figura 3 deve ser de alguma unidade que por ali passou posteriormente. Henrique Matos