Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 7 de janeiro de 2012
Guiné 63/74 - P9326: Memórias de Manuel Joaquim (2): Manhã maculada
1. Mensagem de Manuel Joaquim* (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 5 de Janeiro de 2012:
Meus caros amigos e camaradas,
Aqui vai uma coisinha que ainda vive na minha memória. Se acharem que vale a pena
Um grande abraço
Manuel Joaquim
MEMÓRIAS DE MANUEL JOAQUIM - 2
MANHÃ MACULADA
Introdução
Os primeiros dois meses e meio de comissão passou-os, a minha CCaç 1419, em Bissau. Rondas, serviços de guarda, ações de vigilância na área do aeroporto, uma ou outra escolta a batelões de abastecimento nas suas deslocações pelo rio Cacheu ou pelos canais do sul da Guiné. Uma maravilha comparando com o que acontecia às duas outras Companhias operacionais do Bcaç 1857 (1420 e 1421), a primeira em Fulacunda e a segunda em Mansabá/K3. Cheiros de guerra a sério também tivemos mas poucas vezes e foram só cheirinhos. Saíamos para Mansoa onde, enquadrados por tropas já veteranas, participámos em ações de reconhecimento. Houve contactos com o IN mas de fraca intensidade e sem vítimas visíveis de qualquer dos lados, exceto uma vez, no início de outubro de 1965, dois meses depois da chegada à Guiné. Mas, “aburguesados” em Bissau, estas participações causavam-nos algum nervosismo. Coisas de “periquitos”.
Manhã maculada
E mais uma vez, náufragos inseguros num “mar” quase desconhecido, massas de sombras embrulhadas em silêncio e medos indefinidos, lá vamos a caminho de Mansoa. As viaturas, estrada fora roncando, vão rompendo o negrume espesso daquela noite chuvosa e trovejante.
Espera-nos um grupo de “velhinhos”, prontos para nos apoiar e instruir em mais uma das nossas idas à guerra. Havia algum exibicionismo da sua parte. Ao nosso ar encolhido, tímido e ansioso contrapunham uma pose desinibida, à gingão, fardas desbotadas com falha de botões e/ou rasgada, botas cambadas, manuseio fácil e displicente da G3, pose madura e superior mas apaziguadora para estes “periquitos” de camuflado novo de cores vivas, idos de Bissau.
E é nesta pose ostensivamente protetora que nos juntam ao seu grupo para os acompanharmos numa ação de vigilância, de segurança e de reconhecimento.
Na escuridão da noite os relâmpagos próximos dão cabo da nossa, já de si difícil, perceção visual. A progressão faz-se de mãos nas costas ou no ombro do camarada da frente. Ouvem-se sons dos toques entre capacetes e armas devidos a cortes frequentes na coluna que obrigam a fortes acelerações e a choques inesperados ... ... ...
Amanhece. As sombras começam a dissipar-se e as formas da natureza envolvente tornam-se rapidamente mais nítidas. Acariciados pelo resplandecer matutino e pelos golpes de luz entre os intervalos da chuva, somos embalados pelo cantar das aves e interpelados pelos novos sons da floresta. Um ribeiro bem cheio é atravessado. A exemplo dos de mais baixa estatura, preparo-me para o atravessar elevando os braços e segurando a arma e o capacete com os cigarros dentro. Ao chegar a minha vez vejo-me com água pelos olhos. De braços no ar lá vou avançando, qual canguru aos saltos para a frente, tentando respirar na parte alta do salto. Há um matulão atrás de mim que deve ter perdido a paciência e, não sei como, dei por mim a pairar sobre a água e a aterrar na margem, sob risadas surdas e gozonas! Mas que culpa tenho eu do meu 1,63 m?
Avançamos. A paisagem inebria, uma mescla de aromas densos e acres evola-se da terra molhada, a folhagem verde do capim brilha nas gotas de água que a salpicam e que refletem, faiscando, os raios do sol. Há qualquer coisa de sagrado naquele ambiente que uma fila de homens armados ofende. Repetem-se momentos onde se chocam sensações opostas de sofrimento e de gozo, de ansiedade e de paz ... ... ...
E, de repente ...! Um grito lancinante de mulher corta os ares, seguido de rajadas de G3 e de alguns tiros de som diferente. Houve contacto com o IN, um encontro inesperado para os dois lados. Segue-se um silêncio interrogativo e de preocupação nas hostes “periquitas”. Ouvem-se ruídos de vozes lá para a frente da coluna.... (Ah, aquele grito de mulher, aquele grito de dor, de impotência, de desespero e aviso (... ...)! Ah, aquele grito que nunca mais me sairá dos ouvidos, que ecoou na selva ao momento da aurora, seguido de rajadas de espingarda automática! Ela sentiu que se acabava, mostrou-me como é grande o desejo de viver e antes de cair varada pelas balas gritou bem alto o aviso aos outros que, como ela, estavam sob o nosso cerco.)*
Levanto-me e procuro informação. Avanço e vejo um corpo de mulher varado pelas balas. Diz-se que o grupo seria numeroso e que o seu grito tão forte foi de aviso aos seus companheiros de caminho. Alguns ripostaram com fogo de modo a facilitarem a fuga de quase todo o grupo que, tudo levava a crer, tinha funções de reabastecimento de alguma célula do IN.
Olho de novo para o corpo estendido e reparo numa figura sentada, ali perto e encostada às pernas de um soldado. Calada, alguns fios e salpicos de sangue pelo corpo, olhar vago, expressão indefinida, talvez em estado de choque, está uma jovem bajuda, aparentando uns 15 a 17 anos (viçosa, semi-nua, seios túrgidos e vigorosos pintalgados de sangue, talvez filha. Manhã maculada! Manhã terrivelmente dolorosa. Infelizmente, manhã inesquecível. Quão estúpida e vergonhosa, horrível e criminosa é a guerra, minha querida...)*
*Em itálico, excertos duma carta enviada, na altura, à minha namorada e futura esposa.
____________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 7 de Dezembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9153: Notas de leitura (309): Guillaume Apollinaire, de George Vergnes (Manuel Joaquim)
Vd. primeiro poste da série de 27 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5358: Memórias de Manuel Joaquim (1): O Balanta furtador
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
8 comentários:
Só para te mandar um abraço e dizer-te: - porque escreves tão bem e tão pouco?
Gosto do que leio vindo de ti, caro Manuel.
Dá um abraço ao teu rapaz e outro tara ti.
Ab T.
Porra, camarada Manel Jaquim!
Tens uma história desta, um momento deste, um documento deste, e ainda está com dúvidas sobre o seu eventual interesse, pertinência e qualidade para publicação no blogue!...
Às vezes estamos para aqui a tocar pívias aos grilos, sem material de jeito para publicar (oito anos é já muito ano, são 4 comissões!), e tu com um texto fabuloso como o teu, metido na gaveta!... Se ainda estivesses na tropa, cortava-te a licença de fim de semana, e quem era castigado era a tua... pequena!
Um grande abraço, camarada de armas pesadas de infantaria!... e colega pedagogo (... palavra que, como sab es, vem do grego, παιδαγωγός, o escravo que leva o menino do senhor à escolinha...).
Dados do B.I. do cidadão Manuel Joaquim:
Altura: 1,63m
Estatura Moral: > 2m
Talento: Carradas
Estou de alma cheia, depois de tanta borrasca um Domingo solarengo, cheio de sol e ideias claras , risadas dos putos(netos) lá fora e um texto destes deixam-me feliz e com a certeza de que a vida vale a pena, como vale a pena continuar a visitar-vos todos os dias.
Obrigado Manuel, fico à espera do próximo.
A.Almeida
Caro Manel "Xequim"
Xim xenhor
gostei
A guerra não é mais do que bestialidade e irracionalidade, às vezes misturada com uma gotas de humanidade (o teu caso).
Um grande alfa bravo
C.Martins
Manuel Joaquim,
Deixa-me subscrever o comentário do Torcato.
O texto é magnífico, tanto pela descrição, como pela perplexidade e sentimento gerado.
Os capacetes e as armas a tocarem-se sob as trevas, as irregularidades de paragens e arranques do que resultava o medo de se perderem na mata por fracionamento.. que bem que descreves.
E também o assombro perante a morte.
Um abraço
JD
Caro Manuel Joaquim,
Um belo testemunho da sua alta sensibilidade humana e as contradicoes que nascem das guerras.
A sabedoria do povo ensinou-nos que os homens nao se medem aos palmos.
A tua originalidade de pensamento e de accao esta sobejamente demonstrada.
Cumprimentos para o meu irmao Adilan.
Um grande abraco,
Cherno Baldé
Meus queridos companheiros de Tabanca,
Que dizer ? ...
Fico feliz com estes comentários, muito obrigado aos comentadores, mas o que eu quero dizer é que ninguém se iniba de escrever por pensar que a sua escrita tem pouca (ou não tem) qualidade.
Esta qualidade pode ter (ou deve ter) importância noutros locais. Neste blogue, o objetivo é falar da nossa participação numa guerra. Sendo assim, erros de ortografia, erros de gramática ou de construção de frases devem ser a última preocupação de quem escreve ou nem sequer deve haver preocupação.
Não nego que me dá mais prazer ler um texto bem escrito mas não é deste que ando aqui à procura. Penso que aqui interessa muito mais o que se diz no texto do que a qualidade da sua redação.
Quanto à possível qualidade da minha escrita, olhem, são 60 anos a "malhar" no tema, alguma tarimba e ossos do ofício.
O meu pai foi um carpinteiro de qualidade. O eu sentir que nunca serei capaz de fazer o que ele fazia não me inibe de trabalhar em madeira quando disso preciso. Já fiz coisas "horrorosas" esteticamente mas serviram para o efeito.
Também aqui, o que interessa é que a nossa participação "sirva para o efeito".
Um abraço
Caro Manuel Joaquim,
Mais claro do muito que dissestes...só mesmo a água do Oceano que nos une.
José Câmara
Enviar um comentário