sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5358: Memórias de Manuel Joaquim (1): O Balanta furtador



1. O nosso Camarada Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Armas Pesadas da CCAÇ 1419 (Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), havia-nos enviado uma primeira mensagem em 31 de Julho p.p. (poste P4774), onde escreveu “… Meu caro Luís Graça: Quero inscrever-me na Tabanca, mas ainda não sei bem utilizar esta coisa (mandar fotos por exemplo); estou mesmo no início. Um info-excluído, ou quase, que está a tentar sair desta situação e dando os primeiros passos na net, encontra um blogue (Luís Graça & Camaradas da Guiné) e... que descoberta!...”.



2. O Manuel Joaquim, aplicou-se a fundo e lá acabou, da melhor forma, por conseguir os seus intentos, pois enviou-nos nova mensagem, com um texto e as fotos da praxe, em 20 de Novembro de 2009:


Camaradas:

Inscrito na Tabanca Grande (P4774) sem satisfazer as condições (fotografias e texto), aqui estou a colmatar a falha com o envio das fotos e do texto:

BALANTA FURTADOR


Bissorã, 1966. Os balantas dedicavam-se quase só à agricultura e actividades afins, labutando na área que rodeava o quartel. Um dos poucos balantas da tabanca que fugiam à regra era Fafé. Trabalho agrícola não era com ele.Na bolanha ninguém o apanhava.Não precisava de trabalhar a terra para ter arroz. Este nascia,descascado e tudo, no quartel.

Frequente era vê-lo a acamaradar com tropa, bebendo e gesticulando para melhor se fazer entender. Era o caminho ideal para soldado chegar a algumas balantas mais dispostas a amenizar a sua difícil situação. Qual marginal da tabanca, prometia-as por dá cá aquela palha ou, às vezes, exigindo coisas substanciais... alguns cobertores da caserna ganharam asas!

Fafé alardeava coragem. Era vaidoso.Vaidade bem alimentada por outros para aproveitarem o espírito de aventura que revelava.A roubar vacas era excepcional. E com que orgulho contava os seus feitos! A tropa escutava-o e servia-se.Impedia-lhe o furto na área próxima da vila mas dava-lhe pé leve para se embrenhar no mato,à procura das vacas dos «turras».

Cada vaca que trazia não era só redução alimentar no PAIGC e mais carne na tabanca.Vinha também informação para o quartel. E bem valiosa. E assim se tornou numa peça importante.Importância que não sentia. Apresentar vaca na tabanca, dar barriga cheia à sua gente, reconhecerem a sua coragem e esperteza,verem nele um balanta exemplar, eis o que lhe interessava.

Nem todos os do quartel lhe davam palmadinhas nas costas e gostavam dos seus actos. Não dava por isso, era campeão da esperteza, da coragem, do furto perfeito. E era louvado pelos "homens grandes" da tropa. Mas as suas façanhas faziam perder o apetite a muitos.

Eram informações que levavam aos donos das vacas, à caminhada dolorosa pela mata, ao medo que pesava quilos no estômago, aos vómitos secos, ao combate, à dor, à morte. E, alguns, viam nele um símbolo da utilização abusiva que a guerra faz do indivíduo.

Naquela madrugada Fafé não chegou, mesmo sem vaca. As balas da PPSH fizeram das suas, não matavam só tropa mas também pessoal "amigo" de tropa. Ele sabia-o, mas balanta é artista no roubo de vacas. Quantas histórias, sobre este tema, devem ter ouvido aos velhos balantas! Fafé não teve sorte e, daquela vez, voltou arrastado por camarada de furto com a morte e não a vaca por companheira.

E na manhã quente de Dezembro foi «choro» na tabanca. No terreiro, família de balanta grita e rebola no chão. Família de balanta mata vaca para todo o pessoal: choros, lamentos, gritos, gemidos, rufar de tambores, danças, suor, poeira. É o «choro» em honra de Fafé. São horas a passar, em estonteante mistura de dor e prazer, de arroz e lágrimas, de carne e dança, de álcool e pó. Cumpre-se a tradição.

Mais tarde: Cortejo em marcha acelerada, gritos e cânticos, tantãs rufando, pancadas surdas e ritmadas no chão poeirento, à frente corpo de balanta em esquife de esteira baloiçando sobre altivas cabeças de amigos, Fafé foi a sepultar. Enrodilhado nesta onda lá vai o soldado branco, confuso e inseguro, seguindo não sabe quê.

Pó e mais pó solta-se do chão e sobe, sobe por sobre a tabanca. Entorpece o Sol. Soldado branco pára. A multidão acotovela-o. Redemoinha no pó. Tenta limpar os lábios e os olhos. Incapaz de continuar, vê afastar-se a esteira de palma que envolve corpo de Fafé. Soldado branco é turista em funeral de balanta.

Baixa a cabeça, dá meia volta, tenta regressar por onde vê menos pó... repara que mulher balanta, idosa, ainda chora e dá cambalhotas. Mulher balanta não defende lábios nem olhos do pó e da terra que irá cobrir corpo de seu balanta furtador.

Abraço,
Manuel Joaquim
Fur Mil CCAÇ 1419
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Nota de M.R.:

Vd. primeiro poste sobre o autor em:

Vd. último poste desta série em:

1 comentário:

Luís Graça disse...

Qual info-excluído, qual quê! Tudo se aprende,camarada! E, olha, obrigado pela tua história que me surpreendeu!... Tens talento para a escria, experimenta escrever mais. Luís Graça