quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5346: Não-estórias de guerra (3): A minha Escola (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71), com data de 23 de Novembro de 2009: Caros Editores, Junto envio mais uma Não-estória de guerra, desta vez sobre a Escola. Um Abraço, Manuel Amaro 


  Não-estórias de guerra:A Escola 


 Hoje venho falar sobre sobre a Escola, a minha Escola. Que escrito assim, até pode parecer que é apenas uma. Mas, não. São duas Escolas. Uma em Aldeia Formosa. A outra em Nhala. Nem imaginam como eu gostaria de vos falar de outras Escolas. Do Colégio do Bom Sucesso. Ou do Externato da Princesa Santa Joana. Mas não. A minha Escola, a nossa Escola, é Aldeia Formosa e Nhala, nos anos lectivos de 1969/70 e 1970/71. 

 Eu cumpri estes dois anos lectivos, com um prazer enorme. O primeiro foi incompleto, porque o PAIGC atacou e era preciso travar o inimigo. Claro que o Comandante tinha uma “arma secreta”, para resolver a questão. E lá avançou o professor, mesmo em prejuízo da escola. Em Nhala fiz o ano completo. É certo que, em qualquer terra, por todo o globo, ser o Professor, é ter um estatuto social diferente, para melhor, em relação à maioria da população local. Frequentemente recebia doses de bananas, ananases, mangas, até galinhas e frangos… que o maqueiro da CCS transformava em “grambrinescos” petiscos. Mesmo em tempo de guerra, em Aldeia Formosa e Nhala. 

 No início não foi fácil. O edifício destinado à Escola ainda estava em construção. As aulas começaram numa tenda, com bancos de madeira e os alunos escreviam com o caderno apoiado nas pernas. No primeiro dia de aulas compareceram todos os alunos matriculados. Bem vestidos, lavados, alguns de sandálias, um dos mais crescidos apresentou-se mesmo com sapatos e meias, mas a maior parte “calçados” à moda de Aldeia Formosa. No entanto fiquei bem impressionado. Era quase uma Escola a sério. Passados uns dias comecei a notar algum desleixo na higiene, mas o que mais me impressionava, além da ausência de sapatos, eram os narizes sujos, tão sujos… O meu primeiro impulso foi dizer, ou gritar… não aguento… Mas depois, lembrei-me que na civilizada Metrópole também havia gente assim. Alguns, com honras de figurar em excelentes obras da literatura portuguesa. Vitorino Nemésio escreveu (e falou na RTP), sobre um seu colega de carteira na Escola Primária, na Ilha do Faial, que andava sempre ranhoso e de vez em quando limpava o nariz à manga da camisa, que utilizava meses a fio, sem ser lavada. “O Marcos”, de Miguel Torga, é apresentado de “…penugem arrebitada e com duas torcidas de ranho no nariz”. Ao ser-lhe dito para se assoar, fê-lo, de imediato, à manga do casaco. 

 Mas aquela turma, a minha turma, cheia de ranho, nem sequer tinha mangas, nem de camisa, nem de casaco. No máximo tinham fraldas de camisa. Sim, isso eles tinham. Então adoptei o sistema de, sempre que necessário, fazia o gesto na direcção do nariz, o aluno saía da aula e voltava com o nariz limpo, ou pelo menos sem ranho. Não sei como faziam e jamais tive essa curiosidade. A surpresa agradável é que aquelas crianças eram muito inteligentes. E apesar de terem entre sete e 12 anos, tinham uma boa capacidade de aprendizagem e de raciocínio. Todos? Não, mas a maioria deles, sim. 

 Um dia contei-lhes a história do aluno madeirense (que me desculpem todos os madeirenses), que, perante a imagem do tubérculo, soletrava b+a=ba… t+a=ta… t+a=ta… e depois dizia… Semelha. Perceberam perfeitamente. Riram e prometeram que não iriam cometer esse tipo de erros. Para o ensino da aritmética, comecei por requisitar, no depósito de géneros, um saco de grão de bico, de forma a que todas as operações enunciadas no quadro fossem representadas fisicamente por grãos. Aos grãos de bico, umas vezes chamávamos soldados, outras vezes ananases, outras vezes pães… 

 E apesar das condições precárias nunca deixei de completar o programa com aulas de educação física, música/canto e jogos infantis. Passados mais de 38 anos, ainda tenho saudades da minha Escola. As fotos anexas constituem prova. Nunca foram destruídas. Jamais serão arquivadas. 

  Em tempo: Porque falamos de memórias não quero deixar de referir que, enquanto Professor, eu dependia de uma hierarquia constituída por Pedro Pezzarat Correia, (major), no BCAÇ 2892 e Otelo Saraiva de Carvalho (capitão) e António Ramalho Eanes (major), ambos na REP ACAP, em Bissau. 

 Manuel Amaro


 
Posto Escolar Militar de Aldeia Formosa, Dez 1969

Aldeia Formosa, 1970 - Recreio (visita de um furriel da CArt 2521)
Nhala, 1971 - Educação Física no Campo de Futebol
Nhala, 1971 - Os melhores em acção Fotos e legendas: © Manuel Amaro (2009). Direitos reservados

__________ 

Nota de CV: 

4 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Aqui está uma "missão" a que se entregaram centenas de camaradas nossos, desde soldados a alferes, transmitindo aos mais novos e até aos mais velhos, no caso de unidades africanas, nas Escolas Regimentais.

Foi uma missão a que nos entregamos, porque tambem "leccionei", não só nas horas vagas, mas sobretudo, usando os livros concebidos para o ensino na metrópole, além da falta de instalações mínimas.

Resta a consolação de que não tenha sido em vão!

José Marcelino Martins disse...

Aqui está uma "missão" a que se entregaram centenas de camaradas nossos, desde soldados a alferes, transmitindo aos mais novos e até aos mais velhos, no caso de unidades africanas, nas Escolas Regimentais.

Foi uma missão a que nos entregamos, porque tambem "leccionei", não só nas horas vagas, mas sobretudo, usando os livros concebidos para o ensino na metrópole, além da falta de instalações mínimas.

Resta a consolação de que não tenha sido em vão!

mario gualter rodrigues pinto disse...

Caro Manuel Amaro

Peço desculpa de te contactar deste modo.

Mas necessitava de uma ajuda tua sobre a CCAÇ 2615

o meu contacto:

pintanof@gmail.com

Um abraço

Mário Pinto

Anónimo disse...

Camarada Manuel Amaro,

Não venho apenas elogiar a forma do teu texto, mas antes realçar o seu conteúdo e dizer-te, com toda a sinceridade, que homens como tu, dão elevado contributo para o entendimento entre os portugueses e os guinéus.
Os miúdos que nos mostras em Aldeia ou em Nhala, terras que eu também e tão bem conheço,hoje homens feitos, quando saúdam calorosamente as missões que os visitam, lá no fundo estão também a dar vivas ao seu professor.
Bem hajas, camarada
Vasco A.R.da Gama