quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5344: Notas de leitura (37): Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?, de José Pedro Castanheira (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Novembro de 2009:

Carlos e Luís,
Soube-me muito bem reler o José Pedro Castanheira, o enigma persiste, é espantoso como desapareceram todas as provas, salvo a do ódio que deixou raízes e que eu vivi durante aqueles anos da nossa guerra, e confirmei em 1991.
O que é estranho é todos se recusarem a perguntar o que verdadeiramente está por detrás destes rancores.

Um abraço do
Mário


Quem mandou matar Amílcar Cabral?
Por Beja Santos

Na noite de 20 de Janeiro de 1973, à porta da sua residência na Guiné-Conacri, Amílcar Cabral foi assassinado a tiro por companheiros de luta: Inocêncio Kani desfechou o primeiro tiro, outro (ainda não identificado) deu-lhe os tiros de misericórdia.

Iniciava-se, com este assassínio, um processo de identificação das razões de um crime, nada está apurado, escreveram-se milhares de páginas em relatórios, artigos, livros, depoimentos. Desapareceram todas as provas do processo movido aos conspiradores e suspeitos (declarações escritas e cassetes).

Ao longo dos anos, desenvolveram-se hipóteses sobre quem verdadeiramente o mandou matar, organizou o crime e tentou um golpe de Estado no interior do PAIGC. A reportagem de José Pedro Castanheira Quem mandou matar Amílcar Cabral? (Relógio d’Água Editores, 1995) continua a ser o documento mais interessante para analisar esta tragédia, o que abona o mal-estar que este assassinato ainda hoje provoca entre os protagonistas e os investigadores que acabam por desistir devido à sinuosidade dos depoimentos dos vivos e à incapacidade de decifrar a eliminação de provas. Por isso, vale a pena relê-lo, à luz dos ensinamentos dos últimos 15 anos.

Durante anos, insistia-se na tecla de um assassinato promovido pela PIDE/DGS, a partir de Lisboa ou de Bissau. Tratar-se-ia de uma operação cuidadosamente montada envolvendo pelo menos dois dos mais importantes cabecilhas da conspiração, Mamadu Turé e Aristides Barbosa, antigos tarrafalistas [, prisioneiros do Tarrafal,] que teriam sido aliciados para o crime.

Esta argumentação, veio-se a provar, não tinha fundamento, nenhum documento se encontrou nos arquivos da PIDE/DGS onde existem os nomes dos informadores que colaboraram com a PIDE/DGS e que tiveram acesso ao topo da hierarquia do PAIGC. As declarações arrancadas aos assassinos e suspeitos, que confessaram tal ligação, foram arrancadas com violência abominável, como mais tarde se veio a saber.

Não existem provas do braço longo do ditador Sékou Turé, que inequivocamente detestava a popularidade de Cabral, cujo prestígio aumentava de ano para ano, na cena internacional. Nunca se apresentou uma prova fidedigna do envolvimento do ditador ou da sua polícia secreta na divisão no interior dos dirigentes e centenas de militantes do PAIGC que operavam em Conacri ou noutros pontos da República da Guiné. Com o tempo, também se veio a perceber que o assassinato de Amílcar Cabral foi um golpe duro nos planos de Spínola que acalentou negociações com o dirigente máximo do PAIGC.

A reportagem de José Pedro Castanheira mantêm-se actual, investigou em todas as direcções e não é por acaso que o seu trabalho foi galardoado com dois importantes prémios do jornalismo: pesquisou a vida de Cabral, os seus estudos em Lisboa, as suas amizades com futuros dirigentes africanos, os seus trabalhos na Guiné, a formação do PAIGC, a sua residência em Marrocos depois de ter passado à clandestinidade, a consolidação do seu pensamento, a luta armada a partir de 1963, o crescente prestígio internacional, o seu trabalho político no PAIGC, em África, no mundo.

O jornalista explora, em torno do assassinato, outras especulações de outras tentativas para liquidar o dirigente mítico. Recorda-nos que em Março de 1972 ele próprio denunciara um plano para “destruir o partido por dentro”. Segundo o documento que distribuiu, haveria três fases: (i) infiltração de agentes africanos preparados pela PIDE e fomento da discórdia entre guineenses contra cabo-verdianos; (ii) criação de uma “direcção paralela” aglutinando esses descontentes infiltrados; (iii) contactos com partidos e governos de países vizinhos no sentido de se obter apoio, admitindo-se mesmo a liquidação física do secretário-geral do PAIGC.

Contou Manuel Alegre que Cabral lhe disse um dia em Argel: “Se um dia for assassinado, sê-lo-ei, provavelmente, por um homem do meu povo, do partido e talvez mesmo da primeira hora”. E Alegre comentou: “Foi uma previsão premonitória”.

Provado, verdadeiramente provado, sabe-se que pelas 23 horas de 20 de Janeiro de 1973, Amílcar regressou a casa na companhia da mulher. Aguarda-os um jipe de onde saltam vários militantes armados. Um deles é Inocêncio Kani, um veterano do PAIGC, ex-membro do Comité Central e ex-comandante da Marinha de Guerra. Querem prender Cabral, ele resiste, Kani dispara a pistola a queima-roupa, tê-lo-á atingido no fígado. Um seu companheiro, nunca identificado, disparou uma curta rajada de metralhadora AK, atingindo-o na cabeça.

Um outro grupo liderado pelo chefe dos guardas capturou Aristides Pereira e levaram-no para uma vedeta do PAIGC. Aristides Pereira disse sempre que o informaram que o iam levar para Bissau. Três embarcações zarpam do porto de Conacri, presume-se que para atingir Bissau. E um outro grupo apodera-se da prisão do partido de onde foram libertados quadros guineenses do PAIGC, sobretudo os cabecilhas da conjura.

Os conspiradores foram às instalações do partido onde detiveram aos molhos dirigentes cabo-verdianos, incluindo a mulher de Cabral. Os cabecilhas foram à presença de Sékou Turé que desmantelou a conspiração, prendendo-os e mandando perseguir as embarcações. Começara o estranho processo, com dezenas de acusados, cúmplices e suspeitos. O dirigente do inquérito foi Fidelis Almada que mais tarde veio denunciar as monstruosidades cometidas. Viveu-se um clima de terror estalinista, nem Nino Vieira escapou.

Quem ganhou com o crime, é sempre a pergunta obrigatória. As concepções de Spínola ficaram prejudicadas com o desaparecimento de Cabral. O governo de Caetano e os dirigentes militares portugueses como o general Costa Gomes não desconheciam a escalada armamentista do PAIGC, com alto patrocínio soviético: estavam já formados os utilizadores dos mísseis Strela, estavam em formação os pilotos que iriam trabalhar com os MIG, o dispositivo de combate naval, previa-se, ia ser temível.

O desaparecimento de Cabral, por conseguinte, em nada iria diminuir o esforço de guerra do PAIGC, altamente moralizado pelo apoio internacional e pelos sucessos militares. Passando em revista os potenciais responsáveis, Castanheira detém-se numa figura espantosa digna de um grande romance de John Le Carré: Rafael Barbosa. Porque Barbosa ultrapassa o extraordinário: fundador do Movimento de Libertação da Guiné, dinamizador de greves, colaborador de Amílcar Cabral, agitador em Bissau, preso, eleito presidente do PAIGC durante a prisão, continua a receber e a orientar agitadores na prisão, liberto por Spínola a quem promete publicamente que será tão bom português quanto o comandante-chefe das Forças Armadas.

Depois, após a independência, escapa a todos os processos, a todas as ameaças de execução. Igualmente nunca se comprovou qualquer ligação entre Barbosa e os matadores de Cabral.

Fora inúmeros os agentes e os intermediários que o PAIGC e Spínola utilizaram, foi graças a eles que trocaram correspondência e chegaram a preparar encontros. Alpoim Calvão dirá sempre que teve um intermediário em Londres que levava e trazia o correio de Luís Cabral. De toda a investigação, Castanheira não encontra um só papel que comprove a existência de uma conspiração para matar Cabral.

Estamos a acabar, Castanheira refere as dissensões profundas entre guineenses e cabo-verdianos. Foram tão marcantes e evidentes, que todos os dirigentes do PAIGC fugiram à frontalidade dos factos. Sabe-se hoje que não havia sustentação histórica e cultural para ficcionar uma vida comum entre a Guiné e Cabo Verde. Tudo quanto aconteceu na Guiné a partir de 1974 tem a ver com o pesadelo dessa arquitectura ficcionada: perseguições, maquinação de complôs, afastamento dos cabo-verdianos, a tragédia tribalista, novos complôs, incapacidade de governação, dirigentes pirómanos, guerra civil, formação de grupos passadores de droga.

Perderam-se as provas do processo do assassínio de Cabral, eram seguramente incómodas para as diferentes partes. Como nas tragédias de Shakespeare, Cabral sonhou uma pátria impossível, de acordo com o seu código genético. Como sempre, a história e cultura revoltaram-se. Foram e são demónios à solta. E a Guiné continua a carecer de apaziguamento, reconciliação, desígnio. Corre-se ainda o risco de haver uma segunda morte de Cabral.
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5337: Notas de leitura (36): Os Movimentos Independentistas, o Islão e o Poder Português de Francisco Proença Garcia (Beja Santos)

4 comentários:

Anónimo disse...

Tantos anos a perguntar "Quem matou" Amilcar Cabral e nunca se pergunta ao povo guineense.

Entretanto com a curta longevidade dos guineenses, desaparecem os contemporâneos de Amilcar Cabral.

E esses sim sabem muito bem quem foram os autores e como foi julgamento dos culpados e dos que "ficaram à porta".

Os jornais contemporâneos na Guiné era o boca-a-boca e não falhavam tal como ainda hoje.

Antº Rosinha

paulo santiago disse...

Oh Rosinha,quem matou?O que diziam
os jornais?O Nino foi um dos que
"ficou à porta"?

Anónimo disse...

Paulo, segundo o povo, os culpados foram julgados e "limpos", e os que ficaram à porta tambem lhe aconteceu o mesmo. É o que povo dizia. Dizia no 14 de Novembro de 1980.

Embora se mencione apenas um nome Inocêncio Kani, até esse nome foi aquele que os "juizes" entenderam deixar escrito para a posteridade.

Atenção que só os "juizes" sabiam escrever e ao ser perguntado a estes quem e quantos foram julgados nunca quizeram escrever os nomes nem a quantidade dos que foram "limpos" e julgados.

Mas os "juizes" são sobejamente conhecidos.

Paulo, para os Caboverdeanos, que só falam no Kani, não interessava registar nomes, porque a quantidade e variedade seria inconveniente, e para os guineenses, tambem não interessavam os nomes, porque aí era fulanizar e até "etnizar", o que só lhe trazia inconvenientes a todos.

Portanto Paulo, todos ficaram naquela do "eu sei que tu sabes que nós sabemos". Mas...

Mas ficou aquela da PIDE-DGS-SPINOLA-SEKOU TOURÉ, só para atrapalhar.

E neste ponto os guineenses têm uma resposta, que eu não sei traduzir muito bem e tinha que recorrer a quem tenha vivido muitos anos em África para esplicar melhor: Quando os africanos querem desmentir algo, fazem um som emitido com os lábios e os dentes e esse som para eles equivale o que para nós é o "só balelas".

Mas os grandes fieis a Amilcar Cabral têm uma teoria sobre o efeito das conversas spinolistas tipo da "guiné para os Guineus" que chegou aos revoltosos.

E eu dou razão a esses fieis, porque durante muitos anos ouvia os guineenses repetir as palavras de Spínola.

Portanto Paulo, porque seremos nós a individualizar quem matou "se eles todos querem generalizar?"

Antº Rosinha

paulo santiago disse...

É verdade, António, não devemos
fulanizar,até nem temos bases para
o fazer.Nestas "operações",pouco
foi escrito,e o que foi escrito foi
destruído.O livro do J.P.Castanheira,é um livro importante, mas como diz um meu
amigo,"são os olhos de um jornalista",há pouca investigação
dentro do pouco que possível haveria para investigar.
E, chegamos ao caso recente do Nino
...indicaram-me dois nomes,mas...
nunca se saberá.Já quanto ao Tagmé,
estará mais facilitado, aquela morte teve "engenho sofisticado"
com origem no exterior da Guiné.

P.Santiago