quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Guiné 63/74 – P9313: Memórias de Gabú (José Saúde) (20): Passagem de ano 1973/74



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabú) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série.


PASSAGEM DE ANO 1973/74
O odor do mato

Pensei enviar esta mensagem em tempo considerado oportuno, ou seja, antes as badaladas do sino da igreja que nos indicavam a chegada do novo ano de 2012, porém repensei a minha decisão e fiquei com ela em carteira. Hoje, voltei a relê-la e entendi ser ainda oportuno traze-la à estampa uma vez que reconheço que a opinião relatada se enquadra com situações vividas por antigos camaradas que se depararam ao longo da sua comissão na Guiné com situações parecidas como aquela que descrevo. Num dos meus relatos sobre AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU sublinhei que um dia falaria sobre a única passagem de ano em território guineense. Uma promessa que ficou suspensa mas agora cumprida!


A passagem do ano 2011/2012 já lá vai. Passou. Fica para a história. Bebeu-se uma taça de champanhe, comeram-se as doze passas como manda a tradição e deu-se alvíssaras pelo tempo que se avizinha. Não vou, obviamente, cingir-me sobre o futuro que nos espera, respeito escrupulosamente as opiniões que cada um de nós partilha. O meu repto passa, sobretudo, por uma viagem no tempo, recuar 38 anos e trazer à estampa a minha passagem de ano de 1973 para 1974 na Guiné em tempo de guerra.

31 de Dezembro de 1973. Coube-me a missão comandar o grupo operacional cujo objectivo era  proteger os camaradas que entretanto ficavam no interior do arame farpado para, ao menos, contemplarem a entrada do novo ano de 1974 com alguma segurança. Lembro-me sair do Quartel ao final tarde e caminhar (mos) rumo a um objectivo indefinido. A noite esperava-nos. Claro que a situação considerada normal numa outra ocasião do ano apresentava-se, agora, descabida, tendo em conta a nossa ânsia em festejar a célebre data. Todavia o cumprimento do dever e o clima de guerra vivido, impunha restrições ao mais incauto militar.

Partimos então a caminho destas volúveis incumbências. Fez-se noite. Cerrada. Porém, recomendei, a dada altura, o fim da viagem. Toda gente ficou surpresa com a determinação. “Furriel, estamos ainda longe do local onde vamos ficar”, dizia-me o cabo Rodrigues já conhecedor destas andanças. “Não faz mal, pensei uma outra coisa. Talvez que esta noite não seja tão enfadonha como as outras”, atirei. “Porquê, furriel. Olhe, para mim é uma grande trampa. Pela primeira vez não festejo uma passagem de ano entre a família e os amigos”, respondeu o “nosso” cabo. “Tem calma que a nossa presença no breu da noite poderá ser hoje encurtada!”, respondi. “Não me diga que esta noite não haverá guerra com os mosquitos? Vamos mais cedo, não é verdade”, interpunha o homem do bigode farfalhudo e sempre astuto nas conversas. “Acertaste”, retorqui. 

Os ponteiros do relógio entretanto avançavam. Vieram as nove, dez, onze horas e o pessoal começou a procurar o melhor espaço para descansar. As conversas sobre o convívio da passagem do ano não paravam. “O ano passado já estava na tropa em Penafiel e tive licença para passar três dias em casa e agora passo o fim do ano no mato”, lembrava o soldado Antunes com a sua pronúncia do Norte. Um outro camarada, mentalizado com o destino que a vida lhe pregou, divagava nas suas aventuras, algumas amorosas, vividas em anteriores passagens de ano. Eu, claro, materializava excelentes recordações de uma vida passada ao rubro e longe do cenário por ora visualizado. Pensava nas noites electrizantes dançando ao som do twist-twist ou de melodiosos sons sul-americanos. Calmos. Aqueles que davam para um desejado enroscar de corpos ainda jovens. 

Lembro que as namoradas, à época, alindavam-se para uma noite divinal e nós, já quentes, a ferver, embeiçávamo-nos com o tornear dos seus esbeltos corpos.

Agarrado à minha camarada G3, companheira em momentos de aflições, meditava na revolta sentida e engendrei, aliás, já estava engendrada, uma solução para por fim ao sofrimento partilhado entre os meus companheiros.

Inesperadamente soltei um grito: “Meus amigos estamos todos no mesmo barco, arrumemos a tralha e toca andar a caminho do Quartel. Aconselho, porém, que a nossa entrada à porta de armas seja feita o mais silenciosamente possível e vamos festejar, também, o novo ano de 1974”. O regresso foi encarado euforicamente, recordo. Seguiu-se a entrada para o interior do arame, a festa e o ênfase, natural, que a madrugada declarava.

A estratégia de ficarmos próximo do Quartel suscitou, obviamente, uma réstia de esperança para aqueles homens entregues então à solidão de uma noite, para mim, e para eles, inesquecível.

Para a posterioridade ficou a certeza que numa noite de festa – 31 de Dezembro de 1973 para 1 de Janeiro de 1974 – em que partilhámos a inequívoca realidade do odor do mato!

Um abraço deste alentejano de gema,
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523


Fotos: © José Saúde (2011). Direitos reservados.
Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados. 

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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

31 DE DEZEMBRO DE 2011 > 
Guiné 63/74 – P9297: Memórias de Gabú (José Saúde) (19): Um poço no mato  

 

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