Quinquagésimo primeiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Guerra, guerra e guerra, lá vamos outra vez parar ao
interior da Guiné!
Vamos abrir aquele miserável diário, que não é diário
nenhum, é mais um amontoado de folhas, vejam lá que até lá estão uns pedacinhos de ferro, dentro de um plástico, que deviam ser
aqueles plásticos que vinham a embrulhar uma qualquer escova dos
dentes, que possivelmente o Cifra apanhou em algum lugar, pois
hoje não se lembra se alguma vez usou uma escova dos
dentes, durante a sua permanência lá naquele conflito. O Cifra nunca foi educado para usar
esse objecto, e creio mesmo que lhe
devia de fazer alguma confusão, e
até talvez “cócegas” na boca ao
esfregar com a referida escova e, o
álcool roubado ao “Pastilhas”,
lavava tudo até os órgãos
interiores do corpo, como por
exemplo o fígado.
Continuando, dentro desse
plástico, também lá vem um
papelinho dizendo
que são estilhaços de granada. Aqui já começa a ser “doença”...
guardar isto para quê? Bem, esse resumo será para outra conversa, hoje vamos abrir
umas tantas páginas e concentrar-nos no costume, que é quase
tudo aquilo que os seus companheiros do pelotão de morteiros e
não só, lhe relatavam, depois do seu regresso das patrulhas e
operações no “mato”. O mais
detalhado nos pormenores era o
Trinta e Seis, pois tinha fama de “não fala
mentira”, era responsável demais para a sua
idade, e às vezes o Cifra ficava
embaraçado, pois não
sabia se estava a falar para um
companheiro, ou para um irmão
mais velho, ou mesmo para um pai. Relatava ao Cifra as emboscadas,
as aflições, os momentos de
pânico, com alguns pormenores,
que faziam o Cifra às vezes ficar
com lágrimas nos olhos, mas vamos
avançar, o diário,
diz assim:
No dia 26 de Outubro, que
devia de ser de 1964 - Pela
manhã, houve uma festa de
despedida no aquartelamento de
duas Companhias que estavam
estacionadas na zona operacional do Oio, e actuavam sobre ordens
do Comando do Agrupamento a que o Cifra pertencia, estando parte
dos militares dessas Companhias estacionadas no
aquartelamento de Mansoa. Pararam as obras no aquartelamento,
houve rancho melhorado, cada um teve direito, em vez de um, a dois ou três
púcaros, (que também serviam o café pela manhã, e que se tiravam
da bacia de alumínio, que estava no meio da mesa, cheia de
vinho, que afinal era a mesma bacia, que às vezes servia o arroz
com peixe da bolanha), de vinho, houve “batuque”, fizeram-se discursos, houve sorrisos e algumas lágrimas,
seguindo as referidas Companhias em veículos militares para o
cais de embarque, na capital da província.
À noite, por volta das 23,30 horas, desenrolou-se um forte
ataque ao aquartelamento, que principiou com três ou quatro tiros
isolados, seguidos de rajadas de metralhadora. Começaram a cair
sobre o aquartelamento granadas de morteiro, ainda não havia
abrigos com eficiência, ainda estavam a começar a construir-se,
gerando-se algum pânico. Ficaram feridos cinco militares, uma
granada caiu, talvez a vinte metros do Cifra, que estava metido
no “abrigo do Olossato”, que era como o Cifra e alguns, camaradas lhe chamavam por ser parecido com os que foram construídos no Olossato, que fora construído na parte sul do
aquartelamento, junto do dormitório e com mais segurança. Nesse
momento o Cifra estava tolhido de medo, mas com o rosto de
fora, viu o clarão da explosão e andou com a cara vermelha
e queimada, os olhos também vermelhos, a ver e a ouvir com
dificuldade durante algum tempo.
Os militares saíram a bater a
zona, por sorte não foram para a estrada que seguia para
Mansabá, pois ao outro dia vieram avisar o aquartelamento de que
estava um fornilho montado com oito quilos de explosivos na
referida estrada, tendo vindo um grupo de militares especiais da
capital da província para o desmantelar. Houve depois
informações, que alguns dos africanos, que andaram no “batuque”,
pela manhã, eram guerrilheiros disfarçados, e sabiam que os
militares não tinham muita
segurança, pois estavam
desfalcados da presença de parte
dos militares que estavam
estacionados em Mansoa,
pertencentes às duas Companhias
que regressaram à capital da
província.
As explosões das
granadas destruíram parte das
obras.
Quando o Pastilhas, que
era o Cabo Enfermeiro, colocava
uma pomada branca na cara
inflamada do Cifra, em atitude
de brincadeira, dizia-lhe:
- Anda, vai para a Tabanca,
com esta pintura pareces um Balanta, numa cerimónia de “Choro”!
O Cifra vai fechar o diário, já chega de guerra.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12912: Bom ou mau tempo na bolanha (50): Para onde se vá, existe um português (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro "Cifra"
Neste teu deambular pelas recordações do 'tempo de guerra' é natural que te surjam à mente episódios de tristeza e de dor, de alegria, de bons momentos, de situações estranhas e/ou pitorescas.
Acho que é um pouco assim com todos.
E não faz mal nenhum este 'regresso ao passado'. Não se trata de 'saudade', de 'saudosismo', creio eu, mas de algo que em certa medida é também reconfortante. Ao lembrarmos esses tempos estamos a viver!
Se os lembramos é porque estamos vivos. Honramos os mortos, que os houve, falando deles. Assim não ficaram esquecidos. Pelo menos por nós e para nós.
Pelo que nos contas o "Cifra" teve alguma (bastante) sorte nesse acontecimento. Escapou e pode-nos contar hoje como foi. Ainda bem!
Abraço
Hélder S.
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