sábado, 5 de abril de 2014

Guiné 63/74 - P12936: Bom ou mau tempo na bolanha (51): Batuque no aquartelamento (Tony Borié)

Quinquagésimo primeiro episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.




Guerra, guerra e guerra, lá vamos outra vez parar ao interior da Guiné!

Vamos abrir aquele miserável diário, que não é diário nenhum, é mais um amontoado de folhas, vejam lá que até lá estão uns pedacinhos de ferro, dentro de um plástico, que deviam ser aqueles plásticos que vinham a embrulhar uma qualquer escova dos dentes, que possivelmente o Cifra apanhou em algum lugar, pois hoje não se lembra se alguma vez usou uma escova dos dentes, durante a sua permanência lá naquele conflito. O Cifra nunca foi educado para usar esse objecto, e creio mesmo que lhe devia de fazer alguma confusão, e até talvez “cócegas” na boca ao esfregar com a referida escova e, o álcool roubado ao “Pastilhas”, lavava tudo até os órgãos interiores do corpo, como por exemplo o fígado.

Continuando, dentro desse plástico, também lá vem um papelinho dizendo que são estilhaços de granada. Aqui já começa a ser “doença”... guardar isto para quê? Bem, esse resumo será para outra conversa, hoje vamos abrir umas tantas páginas e concentrar-nos no costume, que é quase tudo aquilo que os seus companheiros do pelotão de morteiros e não só, lhe relatavam, depois do seu regresso das patrulhas e operações no “mato”. O mais detalhado nos pormenores era o Trinta e Seis, pois tinha fama de “não fala mentira”, era responsável demais para a sua idade, e às vezes o Cifra ficava embaraçado, pois não sabia se estava a falar para um companheiro, ou para um irmão mais velho, ou mesmo para um pai. Relatava ao Cifra as emboscadas, as aflições, os momentos de pânico, com alguns pormenores, que faziam o Cifra às vezes ficar com lágrimas nos olhos, mas vamos avançar, o diário, diz assim:
No dia 26 de Outubro, que devia de ser de 1964 - Pela manhã, houve uma festa de despedida no aquartelamento de duas Companhias que estavam estacionadas na zona operacional do Oio, e actuavam sobre ordens do Comando do Agrupamento a que o Cifra pertencia, estando parte dos militares dessas Companhias estacionadas no aquartelamento de Mansoa. Pararam as obras no aquartelamento, houve rancho melhorado, cada um teve direito, em vez de um, a dois ou três púcaros, (que também serviam o café pela manhã, e que se tiravam da bacia de alumínio, que estava no meio da mesa, cheia de vinho, que afinal era a mesma bacia, que às vezes servia o arroz com peixe da bolanha), de vinho, houve “batuque”,  fizeram-se discursos, houve sorrisos e algumas lágrimas, seguindo as referidas Companhias em veículos militares para o cais de embarque, na capital da província.

À noite, por volta das 23,30 horas, desenrolou-se um forte ataque ao aquartelamento, que principiou com três ou quatro tiros isolados, seguidos de rajadas de metralhadora. Começaram a cair sobre o aquartelamento granadas de morteiro, ainda não havia abrigos com eficiência, ainda estavam a começar a construir-se, gerando-se algum pânico. Ficaram feridos cinco militares, uma granada caiu, talvez a vinte metros do Cifra, que estava metido no “abrigo do Olossato”, que era como o Cifra e alguns, camaradas lhe chamavam por ser parecido com os que foram construídos no Olossato, que fora construído na parte sul do aquartelamento, junto do dormitório e com mais segurança. Nesse momento o Cifra estava tolhido de medo, mas com o rosto de fora, viu o clarão da explosão e andou com a cara vermelha e queimada, os olhos também vermelhos, a ver e a ouvir com dificuldade durante algum tempo.

Os militares saíram a bater a zona, por sorte não foram para a estrada que seguia para Mansabá, pois ao outro dia vieram avisar o aquartelamento de que estava um fornilho montado com oito quilos de explosivos na referida estrada, tendo vindo um grupo de militares especiais da capital da província para o desmantelar. Houve depois informações, que alguns dos africanos, que andaram no “batuque”, pela manhã, eram guerrilheiros disfarçados, e sabiam que os militares não tinham muita segurança, pois estavam desfalcados da presença de parte dos militares que estavam estacionados em Mansoa, pertencentes às duas Companhias que regressaram à capital da província.

As explosões das granadas destruíram parte das obras.
Quando o Pastilhas, que era o Cabo Enfermeiro, colocava uma pomada branca na cara inflamada do Cifra, em atitude de brincadeira, dizia-lhe:
- Anda, vai para a Tabanca, com esta pintura pareces um Balanta, numa cerimónia de “Choro”!

O Cifra vai fechar o diário, já chega de guerra.

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Nota do editor

Último poste da série de 29 DE MARÇO DE 2014 > Guiné 63/74 - P12912: Bom ou mau tempo na bolanha (50): Para onde se vá, existe um português (Tony Borié)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caro "Cifra"

Neste teu deambular pelas recordações do 'tempo de guerra' é natural que te surjam à mente episódios de tristeza e de dor, de alegria, de bons momentos, de situações estranhas e/ou pitorescas.
Acho que é um pouco assim com todos.

E não faz mal nenhum este 'regresso ao passado'. Não se trata de 'saudade', de 'saudosismo', creio eu, mas de algo que em certa medida é também reconfortante. Ao lembrarmos esses tempos estamos a viver!

Se os lembramos é porque estamos vivos. Honramos os mortos, que os houve, falando deles. Assim não ficaram esquecidos. Pelo menos por nós e para nós.

Pelo que nos contas o "Cifra" teve alguma (bastante) sorte nesse acontecimento. Escapou e pode-nos contar hoje como foi. Ainda bem!

Abraço
Hélder S.