segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13461: Notas de leitura (619): Revista África - Literatura e Cultura - “Três provérbios em crioulo, uma aproximação à universalidade dos ditos” da autoria de Teresa Montenegro e Carlos Morais (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
É inteiramente impossível estudar a cultura crioula, penetrar na sua filosofia, sem atender à riqueza dos seus provérbios.
O erudito e padre Marcelino Marques de Barros, o guineense que primeiro estudou o crioulo e repertoriou o seu dicionário elementar, recorreu frequentemente aos provérbios. Na sua tese de doutoramento na Sorbonne, Benjamim Pinto Bull também se apoiou na riqueza dos provérbios. E os estudiosos portugueses, como o divulgador Manuel Belchior, também se sentiu atraído por esta memória das experiências que confluem para a tradição oral e que são o espelho da experiência, dos valores e dos princípios de um poderoso compromisso cultural das etnias que deixam fundir a sua história e transmiti-la na língua veicular, o crioulo.

Um abraço do
Mário


A riqueza dos provérbios guineenses

Beja Santos

A saudosa revista “África”, um acontecimento cultural de grande significado entre os anos 1970 e 1978, dirigida pelo escritor Manuel Ferreira, publicou com regularidade alguns materiais da cultura guineense. No seu número 11, de janeiro a junho de 1978, apareceu um artigo intitulado “Três provérbios em crioulo, uma aproximação à universalidade dos ditos” da autoria de Teresa Montenegro e Carlos Morais, que vale a pena aqui enunciar.

Em primeiro lugar, os autores debruçam-se sobre a sapiência da cultura crioula a partir da tradição oral. É do conhecimento geral que a tradição oral é uma das pedras angulares de qualquer cultura africana. Os autores referem o facto de em 1941, Amadeu Uadé, um letrado de Dogam, no Senegal, ditou em wolof uma crónica do reino do Oualo com uma lista de 52 soberanos que permitia uma reconstituição até às origens dos wolofos, no princípio do século XIII, versão esta que permitiu o seu confronto com os relatos da viagem de Cadamosto, no século XV.

Passando aos três provérbios, temos que no primeiro a mensagem é a seguinte: “Por muito velho que sejas, não assististe à juventude da tua mãe”. O que obriga também a uma explicação. Uma pessoa pode ser mais velha do que o “pai” – recorde-se que é costume designar-se por “pai” o marido da mãe, que pode ser mais novo que os filhos desta – mas não pode ser mais velho do que o seu irmão mais velho. Uma pessoa velha presenciou muita coisa, os muitos mais anos dão hipóteses de assistir a muitos acontecimentos. Mas há coisas que são manifestamente impossíveis, é o caso de alguém ter assistido a acontecimentos que precederam a sua própria existência – a juventude da sua própria mãe, a “bajudeza” de quem nos dá a vida. Procurando interpretar o provérbio, observam os autores: não tens experiência que chegue para afirmares o que afirmas ou para provar o que dizes; eu, que te conheço, sei que isso para ti é tão impossível como teres assistido à “bajudeza” da tua mãe. É frequente usar-se este provérbio quando se trata de sobrelevar a nossa experiência em qualquer campo, tem a vertente moralizante de pôr termo à prosápia de quem procura dar-se ares de eficiente e sabedor.

Reza o segundo provérbio: “Os gafanhotos a arder dão pontapés uns aos outros”, o que tem subjacente um dado elementar, que os autores comentam. Quando se queimam gafanhotos (dentro ou fora da panela) ressalta o movimento das suas patas. É como se estivessem continuamente a dar pontapés uns aos outros até morrerem. Os gafanhotos andam sempre juntos e pega-se-lhes fogo para proteger as culturas dos estragos provocados pelas pragas. Ardem do mesmo modo quando se faz uma queimada num sítio onde haja gafanhotos. Temos agora a aplicação do provérbio à sabedoria guineense.

Indissociável de grande parte das coisas que comemos, a panela é um dos nossos lugares mais comuns. O mundo é igualmente o lugar onde todos temos que comer. E quando acontece o caldeirão aquecer e nós estamos lá dentro, a situação afeta-nos a todos por igual. Reagir como os gafanhotos, agredindo-nos mutuamente, não será a forma mais indicada de melhorar a situação: não é dando pontapés uns aos outros que conseguimos apagar o fogo ou sair da panela. O provérbio ilustra uma situação condenável, se bem que corrente, que consiste em reagirmos a uma violência de qualquer tipo de que somos vítimas com agressividades laterais e desviadas da sua verdadeira origem. Moral da história: quando partilhamos a mesma má sorte o melhor é encontrarmos juntos a melhor saída.

E passamos para o terceiro provérbio: “A galinha ao colo não se apercebe da distância nem das agruras do caminho”. Recorde-se que as galinhas são uma riqueza, uma moeda. Nos Bijagós o preço de uma vaca era há pouco tempo 100 galinhas e o de uma cabra apenas 10. Na viagem, as galinhas são transportadas dentro de uma gaiola feita de tara. Se as gaiolas foram mais do que uma, podem ir atadas nos extremos de um pau, e este carregado ao ombro. Em qualquer dos casos, a galinha percorre o caminho sempre pendurada. É este o contexto para se perceber a moralidade implícita. Quem não percorre o caminho pelos seus próprios pés, como é o caso das galinhas, não se cansa porque não despende esforço nenhum, e não tem ideia das canseiras que uma longa viagem representa. É como as pessoas quando fruem benefícios de certas situações para as quais não tiveram que contribuir, limitaram-se a receber e não têm ideia dos custos. Estão a leste das dificuldades e nunca sabem o trabalho que cada coisa pode exigir porque a eles não lhes custa nada.

Os autores debruçam-se sobre o crioulo guineense encarando-o como produto da interação secular de diferentes grupos culturais, a língua espelha a diversidade da origem dos sinais e a sua originalidade, é, pois, o espaço síntese de comunidades culturais que não deixaram de existir e faz com que nem tudo o que se exprime em português, Mandinga, Fula, Manjaco, Balanta, etc. encontre a sua formulação correspondente em crioulo. A língua crioula acolhe e fixa o que há de mais fértil nesse encontro.

Se quisermos partir de referentes culturais portugueses, não será arriscado supor que um provérbio transmontano do estilo “em tempo nevado um alho vale um cavalo” não tivesse grandes hipóteses de se fixar em crioulo formulado em termos idênticos. O proverbio crioulo é isso mesmo: instrumento de comunicação dos diversos grupos culturais que têm este aspeto surpreendente de que um proverbio longínquo que na aparência nos é alheio – e o é de facto, na forma – é objeto de reconhecimento profundo, porque o tema somos nós, sabemos que é de nós próprios que também se pode estar a falar.

Usamos duas xilogravuras do artista guineense Uri Sissé, de rara beleza.


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Nota do editor

Último poste da série de 1 de Agosto de 2014 > Guiné 63/74 - P13453: Notas de leitura (618): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (2) (Mário Beja Santos)

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