quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Guiné 63/74 - P13469: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (5) - Reportagens da Época (1967): Guidaje

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 4 de Agosto de 2014:

Prezado Luís Graça:
Em primeiro lugar, votos de boas férias, e de bom repouso, no sossego da Lourinhã.
Depois, procedo ao envio de mais umas dicas, - relato do que aconteceu em Guidage, à distância de, precisamente, 47 anos -, que se o entender conveniente, poderá publicitar.

Um abraço amigo para todos os navegantes do blogue,
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1967) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA


5 - GUIDAJE 1967

Mês de Agosto
Dia 5

O tempo continua muito chuvoso. O destacamento não passa de um autêntico lamaçal.
Os abrigos transformaram-se em verdadeiras covas escuras, húmidas e insalubres.
As valas que fazem a ligação entre esses abrigos são verdadeiros pântanos. A água aparece em todos os lados e coloca em perigo todas as construções que por aqui se foram fazendo... Os tipos que substituíram a Engenharia Militar para fazer isto, ou que orientaram quem aqui trabalhou, estão todos chumbados... Não passam de uns incompetentes... Autênticos nabos.


Dia 6

Às seis horas e meia da manhã levantei-me. Às sete, como aliás quase todos os dias, peguei na caçadeira e fui às rolas.
Pelas oito, o Patron (nosso interprete) foi procurar-me nas imediações do arame farpado, para me dizer que durante a noite Guidage esteve cercada por mais de duzentos turras.

Fiquei incrédulo. Custou-me a acreditar. Como é que isso podia ser! O pessoal do destacamento nunca os tinha incomodado! Depois, como podia ser possível que um grupo tão numeroso, carregado de armas e munições, tivesse cercado Guidage, instalado as armas e, de seguida, sem disparar um tiro, tivesse ido embora? Não. Aquilo não podia ser verdade. Mas, como o Patron insistiu, ainda cheio de muitas dúvidas, entrei no aquartelamento, troquei a caçadeira pela G3, e acompanhado por dois soldados fui confirmar o que se tinha passado.

Efectivamente, verifiquei-o com os meus próprios olhos, a informação era verdadeira. Durante a noite, três grupos de turras, provenientes da área do Dungal, de Cumbamory e de Samboyá, tinham cercado Guidage. Pelos vestígios que deixaram calculei que, efectivamente, deveria tratar-se de um grupo constituído por cerca de 150 a 200 homens. A aproximação que fizeram tinha sido perfeita. Pelos vestígios que deixaram no terreno, capim e culturas calcadas, verifiquei que nos tinham feito um cerco perfeito, em meia lua, com o intuito de dirigir o fogo directamente sobre o aquartelamento, no sentido da linha de fronteira.

Regressei ao aquartelamento, e com mais pessoal e armamento, fui seguir-lhes o rasto. Confirmei que retiraram pela estrada que leva a Samoje e Facã, por onde, parte deles, tinham feito a aproximação a Guidage. O grupo que veio do Dungal retirou também para o mesmo lado.
O território do Senegal foi o destino que escolheram após terem desistido de nos atacar.
A cerca de dois quilómetros, já do outro lado da bolanha, na estrada que segue para Bigene, encontrei uma granada de morteiro 82mm, abandonada pelos gajos durante a retirada.

Todos os vestígios que recolhi indicavam que eles retiraram calmamente, sem qualquer precipitação. Em rigor, não efectuaram um ataque em força porque não quiseram. Poderiam, se tivessem atacado, ter destruído outra vez Guidage, ter queimado tudo e, quem sabe, ter mandado alguns de nós para o outro lado da vida. Mas não o fizeram. Não nos atacaram. Retiraram ordeiramente, sem quaisquer problemas, quando quiseram e como quiseram. E tudo isto aconteceu ali mesmo, a cerca de 400 metros do arame farpado, precisamente no local onde os holofotes da iluminação externa já não iluminam nada. Estiveram ali, nas nossas barbas, sem que as sentinelas se apercebessem do que se estava a passar. Tudo tinha sido feito discretamente, com todo o rigor táctico, dentro do cumprimento quase perfeito dos ensinamentos que a gente estudou nos manuais da guerrilha. Estes turras estudaram mesmo numa boa escola!

Apenas há uma coisa que não consigo entender:
- Qual a razão que os terá levado a retirar, sem terem disparado um único tiro sobre o meu reino?

É um mistério que me vai acompanhar para sempre. Efectivamente, só uma razão muito forte pode estar na origem desta desistência de última hora, e desta retirada ordeira sem uma razão aparente. Mas, felizes de nós pela decisão acertada que eles tomaram. Que nos cerquem quando muito bem entenderem, desde que, depois, calmamente, se retirem.

Antes de regressar ao aquartelamento, na área da referida estrada, mas do outro lado da bolanha, coloquei, por precaução, três potentes armadilhas (minas). Tanto podiam ser úteis, como não servir para nada. Que eles voltariam, não me restavam dúvidas. O local por onde iriam fazer a aproximação é que eu não poderia adivinhar. Como, regra geral, a partir do entardecer ficamos quase sempre confinados aos limites estreitos do arame farpado, eles podem aproximar-se sem qualquer receio, escolhendo o local que lhes parecer mais seguro. A noite é praticamente deles. Quando nos atacam dentro dos aquartelamentos fazem-no quase sempre de madrugada, para lhes restar tempo para se retirarem ainda a coberto da noite.

Ao fim da manhã, vindo do Senegal, chegou um informador a dizer que os tipos, durante a retirada, tinham passado por Secunaya e Corumbo, e que não concretizaram o ataque pelo facto de não ter chegado um outro grupo que também deveria participar na festa que desejavam fazer em Guidage.
É uma razão.
Mas eles já dispunham de tanta gente à nossa volta! Tinham da parte deles o efeito surpresa e a escuridão da noite, um grupo numeroso de combatentes e sei lá quantas armas. E não quiseram aproveitar nada disso...

Durante o dia nada mais aconteceu de anormal. A população trabalhou serenamente a terra, e a tropa permaneceu mergulhada na doce estupidez de cada dia.
À noite recomendei a todos, soldados e população, que se mantivessem junto dos abrigos e que ficassem atentos. O perigo não tinha passado. Tínhamos de ser prudentes e cautelosos.

Pelas dez horas da noite, sensivelmente, explodiu uma das armadilhas que deixei do outro lado da bolanha, precisamente a que tinha mais potência. A explosão teve lugar a cerca de dois quilómetros, mas pareceu-nos que aconteceu mesmo ao lado do arame farpado. Efectivamente, para além da carga normal, eu coloquei ao lado da armadilha bastantes granadas velhas e garrafas de cerveja cheias de munições de G3, já fora de uso. Daí que o rebentamento, de todos aqueles explosivos, tenha causado um barulho terrível Mesmo brutal...
As casas dos nativos estremeceram e as paredes largaram caliça. Foi um barulho enorme. Medonho...
Depois, disparei para o local algumas granadas de morteiro 81mm, os soldados e a população mantiveram-se nos abrigos, armas em punho, tudo pronto a abrir fogo ao mais pequeno sinal, à espera que o pior acontecesse.

E um silêncio profundo dominou a tabanca e o aquartelamento durante algumas longas horas, feitas de stress e angustiosa expectativa. Aquela foi para todos uma longa noite, em que o tempo dava a sensação de estar parado. Mas nada de anormal aconteceu. Mesmo nada. Foi mais uma noite igual a tantas outras. Mantivemo-nos é certo, mais atentos, à espera, mas não fomos minimamente incomodados. Apenas o medo nos incomodou... O medo que obriga as pessoas a estar despertas, sempre à espera, o medo que nos rouba o sono e que faz todos os homens corajosos e heróis.
Heróis que só desejam vivamente que não aconteça nada daquilo que se é obrigado a esperar indefinidamente ao longo destas intermináveis noites.
Heróis que apenas desejam que permaneça sempre longe a oportunidade de praticar actos irracionais, capazes de fazer deles esses homens invulgares que as páginas da história vão registando.
É que, ninguém deseja ser herói, nem mesmo aqueles que de facto o foram. O herói é um produto do acaso, ou talvez da irracionalidade da vida.

Já de madrugada, antes de adormecer, eu apenas me interrogava:
- Será que foi um bicho a detonar a armadilha? Será que foram os tipos que vinham de novo com a boa intenção de fazer uma festa nas imediações de Guidage?

E o meu pensamento, ou a minha imaginação, ficaram-se por esta dúvida, na expectativa, aguardando que algo de pior pudesse ainda acontecer.
E, apesar de tudo, ainda dormi um sono, não muito longo, mas suficientemente repousante.


Dia 7

Pela manhã, levando comigo mais de metade dos homens de que dispunha, bem armados e municiados, fui verificar a causa do rebentamento da armadilha. Efectivamente tinha sido accionada pelos turras que, outra vez, e por certo a sério, se dirigiam para Guidage, no intuito de efectuar um ataque.

A explosão da armadilha deixou no chão um buraco enorme. Ao lado, por entre o capim calcado, havia muito sangue, pedaços de vestuário e vestígios da presença de muitos feridos, ou mortos. Perto do local da explosão, encontrámos um ferido abandonado. Tratava-se de um rapaz novo, que não teria mais de 15 anos. Encontrava-se totalmente nu. Era, por certo, um dos muitos carregadores utilizados no transporte das armas e das munições. Pensando que estava mesmo morto, deixaram-no abandonado entre o capim, absolutamente despido, sem qualquer elemento que o pudesse identificar.

No meio de todo aquele ambiente pesado, ouviu-se a voz de um soldado que, mesmo a meu lado, satisfeito, dizia:
- “Os filhos da puta vinham cá para nos foder, mas eles é que foram pró caralho.”

E, mais baixinho, outros soldados foram murmurando:
- Sim... desta vez eles é que foram pró caralho. Esses caragos, bem que nos podiam deixar em paz. Mas, desta vez quem lerpou foram eles.

Levámos para o aquartelamento o rapaz que os tipos abandonaram e tratámo-lo o melhor possível. Depois, pediu-se uma evacuação para o Hospital Militar, que não chegou a concretizar-se porque, entretanto, ele morreu.
Aparentemente ele tinha apenas algumas escoriações. Devia, no entanto, ter algum traumatismo interno a cujas consequências não resistiu. Deve ter sido projectado pelo sopro causado pela explosão da armadilha e, ao embater no chão, os órgãos internos devem ter ficado muito afectados.
A população quando nos viu chegar com o prisioneiro ficou satisfeitíssima.
Fizeram festa. Bateram palmas. Afinal, ele era dos que vinham atacar e destruir as suas casas, matar pessoas e destruir bens.

Enterraram-no.
Verifiquei com tristeza que a população efectuou o funeral sem qualquer cerimónia, com desprezo e ódio, como que se de um simples animal se tratasse. Intimamente senti-me chocado com toda aquela frieza.
O que ali estava era o cadáver de um homem ainda muito jovem, obrigado, por certo, a colaborar com a guerrilha. Um jovem a quem a guerra acabava de destruir...

De tarde voltei à estrada de Samoje e coloquei novas armadilhas. Na estrada de Binta fiz a mesma coisa. Eu sei que mais dia menos dia os tipos vão tentar de novo... Temos que estar sempre atentos...

O objectivo deles, é dar cabo de nós.
O nosso objetivo, é dar cabo deles.
Somos todos loucos.
Era preferível acabar de vez com isto, com esta guerra que não vai levar a lado nenhum.

Domingos Gonçalves
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (4): A morte do Furriel Moreira

1 comentário:

Simoa disse...

Domingos, interessante postagem sobre a realidade de Guidage em 1967.
O Patron, deve tratar-se do Patron Sonco que chegou a chefe da tabanca...
Na minha altura, certos elementos da companhia afirmavam que o Patron tinha contactos com o PAIGCV, por quem demonstrava simpatia…
Um abraço,
José Pechorro
Ex 1º Cabo Op Cripto 71/73
CCaç 19 - Guidage