Quarto episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Já lá vão uns anos, vivíamos no norte, na altura
exercíamos funções de vice-presidente do maior clube de
língua portuguesa situado na costa leste dos USA, todos
os dias era uma aventura, jogava o Benfica, Sporting ou
Porto, se ganhavam, havia alegria, quando marcavam um
golo, gritavam, bebiam e atiravam os filhos ao ar, ficavam
latas e garrafas de cerveja no chão ou em qualquer lado,
se perdiam, os amigos discutiam e às vezes até
chegavam a “vias de facto”, indo para casa dizendo “mal
de tudo”.
Aos fins-de-semana, na época de verão, havia “arraiais à
portuguesa”, sardinha assada, frango de churrasco,
febras, vinho verde, branco e tinto, dançavam e o nosso
rancho folclórico exibia-se, era uma autêntica festa
portuguesa, como se estivéssemos em qualquer aldeia do
Minho, Beira, Ribatejo ou Algarve, a polícia local
colaborava, já nos conhecíamos, também bebiam e, para
o final, já falavam algumas palavras obscenas do
vocabulário de Camões.
Num dia, mais propriamente a uma sexta-feira, recebo um
telefonema do Consulado de Portugal em Newark, onde
um funcionário superior, meu amigo, me diz que ia ao
nosso clube na noite do dia seguinte, com uma
personagem que tinha vindo de Portugal, creio que era
ministro em funções do governo da altura, pessoa muito
ilustre, trazendo consigo um pequeno grupo de pessoas que deviam
ser seus ajudantes em campo.
Na altura não havia festas e não tínhamos “nada” com
que os pudéssemos receber, mas como havia um
casamento no nosso salão principal, falámos com a
pessoa encarregue pelo serviço, prestando-se
imediatamente em colaborar, preparando uma mesa com
o que de melhor havia na altura, incluindo alguns
mariscos e vinhos especiais, recebendo a personalidade e
os seus ajudantes de campo, que se desfaziam em
sorrisos, distribuindo cartões de apresentação, com o
escudo da bandeira de Portugal em relevo, (portanto
naquele momento, para nós, era o país Portugal), dizendo
sempre que queriam ajudar os portugueses na diáspora,
que foi para isso que nos visitavam, mais isto e mais
aquilo, faziam um pouco o papel de “coscuvilheiros”,
perguntando o que precisávamos, quais as nossas dificuldades,
se tudo estava a correr bem com a comunidade,
mostravam que queriam saber da “nossa vida”.
O senhor José Garcia, combatente da guerra colonial em
Moçambique, com tatuagem no antebraço direito, muito
mal desenhada, dizendo “amor de mãe”, a quem nós
carinhosamente, cá fora, chamávamos “Zé Barbeiro” e,
dentro do clube, chamávamos “Ò Lisboa”, por ser oriundo
da capital, tinha a mania que sabia cantar o fado, pois
frequentemente entoava, e muito bem, uma frase de um
qualquer fado famoso, mas só sabia aquela frase, era
quem nos cortava o resto do cabelo, fazia parte do nosso
clube, estava lá, queria reclamar, pois em tempos, depois
de alguma burocracia, tinha comprado um terreno aos
herdeiros do que fora dono, ao lado de uns casebres
onde os seus pais viviam, nos arrabaldes da cidade de
Lisboa, onde queria fazer obras para melhorar a vida dos
pais e, onde queria acabar os seus dias quando a idade
chegasse. Mostrava fotografias a todos, dizendo que iria
fazer “daquilo” um “chalé”.
Pois a cidade, não só não lhe concedeu essas facilidades,
como lhe comunicou que “aquilo” era para ser tudo
destruído, pois era uma zona que iria ter uma urbanização
onde iria haver um grande “shopping mall”. Tivemos que
o “segurar”, pois queria atirar-se à personagem,
barafustava, dizia mal da reputação da mãe daquela
personagem, rasgou o cartão de apresentação da ilustre
personagem, sempre teimando que lhe queria “cortar o
cabelo”.
Nós, como havia muita dificuldade em livros escolares em
português para a nossa escola, logo lhe pedimos livros, muitos ou poucos livros, novos ou usados, dizendo
essa personagem, com uma simplicidade notável, que se
a nossa dificuldade era essa, estava já resolvida, pois ia
providenciar em mandar imediatamente uma grande
encomenda de material escolar.
Pois companheiros, esperámos, esperámos, nunca nada
recebemos, todos os dias tirávamos cópias, nas costas
de papel cedido pela cidade e por amigos do nosso clube,
dos poucos livros que tínhamos, estando a máquina de
copiar sempre a avariar, pois se não fosse assim, muitas
crianças, filhos de portugueses e não só, nunca saberiam
que o D. Afonso Henriques não gostava da mãe e, que o
navegador Vasco da Gama, que se destacou por ter sido
o comandante dos primeiros navios ou caravelas, a
navegar da Europa para a Índia, que era a mais longa
viagem oceânica até então realizada, era uma
personagem que ia ao serviço de uma grande empresa,
que tinha investido nele, procurando no seu regresso,
recuperar todo o investimento, com o respectivo lucro.
Tony Borie, Fevereiro de 2015
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Nota do editor
Último poste da série de 8 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14233: Libertando-me (Tony Borié) (3): O senhor Spencer, em Mansoa, industrial de madeiras, representante do Gazcidla e de uma agência de viagens
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caríssimo Tony
Estas memórias não são já do "Cifra", mas 'sinto' que ao recordá-las o sangue a ferver do "Cifra" vem ao cimo e transforma-se na forma irónica/amarga como relata mais uma 'falsa promessa' com que os governantes, ou seus representantes, deste País transformado cada vez mais em local 'mal frequentado', costuma presentear os seus 'súbditos'.
É recorrente esse tipo de expediente. Nas visitas a Escolas, a Feiras e Mercados, a Lares de Idosos, misturado com beijos lambuzados de criancinhas, lá costuma ser debitado o rol de falsas promessas.
Enfim, pelos vistos o patriotismo dos nossos emigrantes continua a superar, e muito, as malfeitorias praticadas pelos 'patrioteiros'. Se não fosse esse genuíno 'amor a Portugal', não era, na maior parte das situações, a ineficácia das acções dos (ir)responsáveis que o iria manter.
Abraço.
Hélder S.
Amigos,
O Tony Borié trouxe ao conhecimento de vós uma situação que, nada tendo a ver com a Guiné, deve ser aprofundada.
As comunidades portuguesas nos EUA são praticamente responsáveis pelas escolas de ensino do português. De uma maneira geral são os clubes que cedem as salas de aula e os pais pagam os ordenados dos professores, livros e demais material didático.
Posso acrescentar que em alguns casos muito louváveis, os professores têm abdicado do seu ordenado.
Apraz-me registar que na zona da Nova Inglaterra, o Governo Regional dos Açores tem ajudado com algum material didático. O Governo Português pomposamente estabelece as regras do ensino.
Do Governo Português temos um Coordenador do Ensino de Língua Portuguesa na Embaixada de Portugal em Washington. Muito pouco, se preferirem, um nada, para ser verdade.
Mas para quem se interessa por estas coisas vale a pena comparar com o que se passa no Ensino do Português na Europa e ver as diferenças, melhor a discriminação praticada por quem de direito em Portugal. Pelo menos desde que cheguei aqui, em 1973.
Cumprimentos.
José Câmara
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