1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Maio de 2014:
Queridos amigos,
Muitos dirão que a substância desta fotobiografia está completamente ultrapassada. Atenda-se, porém, ao facto de que nos anos 1990 ainda não tinha aparecido um documentário sequenciado sobre a guerra, repertoriando acontecimentos, protagonistas, ações de guerra dos dois lados, apreciações do quotidiano, as orquestrações da propaganda e, enfim, a descolonização.
João de Melo escreveu então com propriedade: “Com exceção de alguns contributos isolados, pouco se tem escrito e falado, entre nós, sobre a guerra colonial. Pode mesmo dizer-se que os traumas por ela causados permanecem apenas ao nível de um registo secreto, mais ou menos individual”.
Este panorama mudou drasticamente, como diariamente podemos testemunhar, aqui, no nosso blogue, porventura a mais vasta fotobiografia jamais organizada por largas centenas de figurantes que, sem qualquer rebuço, falam de si e do que experimentaram. Mas, apesar de tudo, esta Fotobiografia foi um empreendimento editorial cuja importância não se pode iludir como peça histórica.
Um abraço do
Mário
Guerra colonial em fotobiografia
Beja Santos
Quase coincidindo com o lançamento de “Os Anos da Guerra”, coordenado por João de Melo, nas Publicações Dom Quixote, e de que já fizemos ampla referência, Renato Monteiro e Luís Farinha lançaram mão a um projeto ao tempo inovador, uma fotobiografia da guerra colonial, desde 1961 até à descolonização. A primeira edição surgiu em 1990 e a segunda em 1998. Edições que foram um êxito, e percebe-se porquê. Ao tempo, ainda não havia nenhuma história da guerra de África, no todo ou na parte. E o estado de alma dos combatentes ainda era de uma grande hesitação: escrever para quê e para quem? Mostrar as recordações com que fito? Daí perceber-se a observação de João de Melo na introdução desta fotobiografia, tenha-se em atenção que foi escrita há cerca de 25 anos:
“Com a exceção de alguns contributos isolados, pouco se tem escrito e falado, entre nós, sobre a guerra colonial. Pode mesmo dizer-se que os traumas por ela causados permanecem apenas ao nível de um registo secreto, mais ou menos individual. Denunciados por quantos se não conformaram com os lugares, os silêncios, as responsabilidades não assumidas e os preconceitos de um sistema de rasura e de apagamento progressivo das suas consequências, os autores dessas denúncias e análises são ainda hoje objeto de toda a sorte de incompreensões. E, se é verdade que essa guerra modelou o imaginário de muitos escritores e de alguns cineastas portugueses, é pouco provável que ela subsista, no nosso comportamento coletivo, para além de um aparente exercício de ficção”. E a finalizar, o escritor cola-se ao empreendimento que constitui o saber alinhar imagens como ponto de partida para o conhecimento histórico:
“Somos, muitos e muitos de nós, personagens desta Fotobiografia, colhidos por estes lugares, pelos gestos suspensos dos pequenos e grandes atos, sobretudo pela soma das tragédias que em parte explicam o acaso, a sorte e a certeza de estarmos vivos, rendidos à grande e única paixão que é a vida”.
O documental prevalece sobre o estético, há que entender o início da guerra nas três frentes, os embarques de 1961, os protagonistas de Angola, como Mário de Andrade, Joaquim Pinto d'Andrade ou Agostinho Neto, mostrar as plantações de algodão na Baixa do Cassange, as destruições, o contra-ataque, a propaganda. E neste contexto mostra-se uma imagem rara, uma manifestação patriótica junto do palácio do governador da Guiné, em 15 de fevereiro de 1959, de repúdio pela atitude da Comissão de Curadoria das Nações Unidas, e de seguida o Pindjiquiti, Amílcar Cabral e Nino Vieira. E depois o dealbar da insurreição a cargo da FRELIMO.
O prato substância deste escol de imagens denomina-se ação armada, a guerrilha e a contraguerrilha, picadas, colunas, embarques para operações, patrulhamentos, emboscadas, banda desenhada de caráter épico, desativação de minas, viaturas destruídas, aldeamentos bombardeados, devastações de toda a ordem; e golpes de mão, manuais escolares encontrados nas bases dos rebeldes, páginas de diários, metralhadoras antiaéreas, viaturas destruídas; e Angola em toda a sua complexidade de uma guerrilha com diferentes grupos rivais. E noutro segmento, os autores desdobram-se para mostrar as múltiplas manifestações do ganhar confiança junto das populações: construção de escolas, transporte das populações, reordenamentos, confraternizações, brochuras, panfletos, iniciativas do Movimento Nacional Feminino, olhares dos militares para as carências sobretudo dos jovens. Alguém escreve na Guiné em 1970:
“À hora da refeição chega o rapazio. Uma vintena. Trazem latas e, depois de se banquetearem com o que sobeja, correm para o rio, onde se refrescam. Todos os dias almoçamos com a imagem da fome diante de nós”.
E temos o incomensurável quotidiano, o confronto com o desconhecido, a mata temerosa, a precaridade dos elementos, a imagem do cansaço, a chegada de feridos ao hospital, a missa campal, os jogos de futebol, voleibol ou cartas, enfim, as lavadeiras, até brinquedos de criança como uma camioneta Berliet feita com paus.
E a fotobiografia culmina com a descolonização, lanchas ajoujadas com os pertences dos militares na hora da abalada até Lisboa.
Esta fotobiografia, para que não subsistam dúvidas, colheu o triunfo graças ao seu ineditismo. Na viragem do século, tudo mudou, a começar pelo panorama editorial, reformados, sexagenários, septuagenários, aperceberam-se que nada tinham a perder em desencadear o coração e a emoção, sucederam-se os blogues, os desabafos nas redes sociais, multiplicaram-se os colóquios, a história contemporânea, mesmo com sérios embaraços, desatou a ouvir os protagonistas. Mas esta fotobiografia é um pilar incontornável do chamamento à atenção entre as gerações, aquelas imagens, para o bem da História, ali estavam cristalizadas e prontas a serem interpeladas. Como foram e continuaram a ser.
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Nota do editor
Último poste da série de 13 de fevereiro de 2015 > Guiné 63/74 - P14246: Notas de leitura (681): "Os Princípios do Pan-africanismo", por Charles Olapido Akinde e “Os Condenados da Terra”, por Frantz Fanon (2) (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Grande documento esta 'Fotobiografia', em que um dos autores é o meu camarada da CART2479-CART11, o ex-Fur-Mil. Renato Monteiro.
O Monteiro era um poeta. Foi o único que acenou, para o Caís, com um lenço vermelho, quando partimos em 18/02/1969, no 'Timor', para a guerra na Guiné. Sem cessar, até à saída da barra de Lisboa, sem cessar até à saída da barra do Tejo, sem cessar até à saída da barra da nossa terra. O Monteiro foi o único que disse adeus com um lenço vermelho. Soubemos, depois, que dizia adeus à namorada.
Depois, na Guiné, em Contuboel, o Monteiro fazia poesia. Declamava-nos 'Os Brincos na Tua Orelha' e o que ficou, até hoje e que nunca me vou esquecer 'Quando abrires o teu armário das surpresas imprevistas, não desistas, não desistas...'.
O Monteiro, julgo, que não aguentou a 'pressão'(como agora se diz) e, no Xime, não concordou que os homens do seu Pelotão, tivessem que ir abrir valas, num aquartelamento que não era o seu, e o Monteiro entrou na messe dos sargentos e oficiais, reclamando, de viva voz, com o Alf. do seu Pelotão, que soldados eram combatentes e não sapadores de valas. Estava presente um oficial superior e não gostou dos modos insubordinados do Monteiro. E vai uma 'porrada', e nunca mais vimos o Monteiro.
Este livro 'Guerra Colonial-Fotobiografia' tem um pormenor interessante. A fotografia 'Escola de Cabos', como eu lhe chamo, em que aparece o ex-Fur-Mil Cândido Cunha, da CART11, a explicar matemática num quadro, junto a uma árvore extraordinária, a uns soldados africanos (são do meu 4º.Pelotão), trata-se duma foto 'recuerdo', eu tenho uma igual/semelhante com poucas diferenças. O Cunha fotografou-me a mim e eu a ele, como somos, fisionomicamente muito parecidos saíu uma foto quase gémea.
Leiam/vejam esta 'Guerra Colonial-Fotobiografia' e o Monteiro que apareça no blog, com as suas fotos e as suas histórias/estórias, para nos encantar.
Um abraço ao Monteiro
Valdemar Queiroz
Milo MacMahon, e Raul Indipwo, os dois angolanos do Duo Ouro Negro em 1969 em Guilege.
Beja Santos é mais um contributo teu para não deixar esquecer os mais pequenos (grandes) pormenores da "Guerra do Ultramar".
E esperemos que no antigo ultramar português, não venha a entrar o caruncho moderno bokoharam.
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