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segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27356: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (17): Anexo I: Do cais do Pidjiguiti, em Bissau, ao... 'magnífico porto de Lala', a 6 km de Nova Sintra, em LDM: a 'pequena epopeia' dos reabastecimentios mensais



Foto nº 1 > Deve ser mesmo de 100 litros a capacidade de cada barril de 'água de Lisboa'. Estes estão prontos a embarcar no cais de Pidjiguiti, talvez rumando ao porto de Lala. São à volta de uma dúzia de barris, perfazendo no total 1200 litros, 12 hectolitros. Com a ração diária de vinho a 0,5 litros, uma companhia, com cerca de 160 homens, estafada estes barris em... 15 dias (!).


Foto nº 2  > A bordo de uma LDM (Lancha de Desembraque Média). 
Assinalado com um círculo vermelho sou eu, de mãos na ancas, atento à descarga e que o fiel de armazém ia registando. Este é um braço do rio Grande de Buba.






Fotos nº 3 e 4 > LDM 311. 
Pormenores das descargas. Tudo passava de mãos em mãos e aos ombros até às viaturas, para evitar o contacto com a água, salvo os bidões e os barris que eram empurrados para o rio e ficavam a boiar.


Foto nº 5 > 
Ver canto inferior direito da foto com os bidões a boiar de: combustíveis, azeite e óleo de fritar. O mesmo acontecia com os barris do vinho.



Foto nº 6 > Depois da canseira da descarga 
o banho retemperador para a viagem  de regresso ao quartel (que ficava a 6 km de Lala).



Foto nº 7 > Ao meio na foto, de t-shirt branca por causa dos mosquitos e assinalado com um retàngulo a amarelo, sou eu,acabado de saltar da LDM para a àgua com os braços bem levantados, para não molhar e danificar as guias de transporte. Foi-me dito, "ou saltas, ou vais passear até Bolama". È que a maré começou a baixar rapidamente e a tripulação não podia deixar a LDM pousar no solo.



Foto nº 8 > Regresso ao quartel. Na picada com o capim alto, era o local indicado para se lançar para o meio 
do capim, duas ou três caixas de cerveja e uma a duas caixas de batata, que o pessoal, dias mais tarde, com o propósito de ir à caça, iam recuperar os artigos desviados.



Foto nº 9 > 
Os meus domínios em Nova Sintra: Depósito   de Géneros e Cantina. Atrás do Unimog era,  é claro,  o Depósito de Material.


Foto nº 10 > Os barris de vinho da foto ao lado,vazios,  para, depois de desmanchados, se fazer cadeirões para o “descanso dos guerreiros”.



Foto nº 11 > 
Este era o galinheiro que serviu de adega (depósito dos barris), que o pessoal,  mais expedito, com um berbequim furava os barris e com uma pequena 
mangueira sugava a 'água de Lisboa'. Foi aqui que encontrei os tais três barris de aguardente (300 litros), que, supostamente, deviam ser de vinho. 


Foto nº 12 >  A madeira dos barris, as aduelas, serviam depois para fazer cadeiras para o "descansodos guerreiros". Nada se desperdiçava.

Guiné > Zona Sul > Região de Químara > Noa Sintra > CCAV 2483 (1969/70)

Fotos (e legendas): © Aníbal Silva (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Texto enviado pelo Aníbal Silva,  ex-fur mil SAM, CCAV 2483 / BCAV 2867, Nova Sintra e Tite, 1969/70). Tem informação complementar, originada pelo Poste P27347 (*). Decidimos, todavia, publicá-lo como "anexo" à sua notável série "Vivências em Nova Sintra" (**). O tema dos reabastecimentos a Nova Sintra já foi tratado, mas as fotos e legendas que publicamos acabam oro ser um valioso complemento sobre essa "pequena epopeia" que era levar a casa, todos os meses, a "nossa bianda de cada dia".


Data - sexta, 24/10/2025, 21:33 

Assunto - A nossa guerra em números

Bom dia, caríssimo Luís

Hoje de manhã cedo, bem cedinho, depois de abrir o computador e ler o correio eletrónico, dei a habitual saltada ao nosso Blogue, o que faço diária e religiosamente e então dei de caras com o teu Poste 27347, no qual me identificas como o melhor assistemte de IA. Agradeço a nomeação mas devo dizer-te que estás a ser bondoso e benevolente para comigo. .

Ao ler o texto do Poste, verifico que fazes e ainda bem que o fazes, a transcrição da nossa conversa telefónica recente, relacionada com a nossa guerra em números, nomeadamente sobre o vinho e o “per diem”, que só agora fiquei a saber que se trata do valor da ração diária em géneros atribuída aos soldados.

Porque tinha dúvidas sobre dois assuntos, capacidade dos barris de vinho e o per diem,
telefonei a dois camaradas vagomestres do meu tempo (69 – 70), o camarada Fausto, de Fulacunda e do meu Batalhão e o camarada Carlos Alberto que esteve em Moçambique. 

Tanto um como o outro confirmam que os barris de vinho tinham a capacidade de 100 litros, acrescentando o Carlos Alberto que em Mueda, recebiam os barris, normalmente, com menos 20 litros, que o obrigava ir buscar água limpida ao rio Zambeze, para fazer o batizado e até o casamento. 

Relativamente ao per diem, se não tinha certezas, talvez os 24,50 escudos por ti referidos, agora tenho menos certezas e maior confusão. Diz o Carlos Alberto que em Moçambique nas zonas de risco de 100% o valor era de 20,50 escudos e nas zonas de risco de 50% era de 18,50 escudos. 

O Fausto diz que o valor era de 33 escudos, já em 69/70, o valor referido no relatório anual do Comando-Chefe / CTIG  referente a 1971, como atualização do valor em causa. Perante estas divergências está instalada a confusão e desde já te peço desculpa por te ter metido nela. É muito importante que outros vagomestres dêem a sua opinião sobre o assunto, na perspetiva de encontrar o valor exato.


As fotografias do teu Poste referem-se a Fulacunda (72-74) do camarada Armando Oliveira. As que se seguem dizem respeito a Nova Sintra (69-70), mais própriamente ao “Magnífico Porto de Lala”, sobre o qual o meu Comandante de Companhia escreveu: 

“Havíamos saído de Bolama às primeiras horas da manhã do dia 5 de Março (1969) e a lancha que transportava a Companhia já navegava pelo Rio Grande de Buba há umas boas horas, quando virou o rumo a bombordo e entrou por um canal mais estreito que viemos depois a saber que era conhecido por Lala. Ìamos na direção de Nova Sintra. A marcha da LDM era lenta e podíamos observar com pormenor as margens de ambos os lados cuja vegetação parecia impenetrável e onde não se vislumbrava qualquer indício de vida, nem sequer da possibilidade de qualquer abertura para o desembarque, quanto mais um porto... 

De repente, quando o rio já se tornava preocupantemente mais estreito e o arvoredo das margens parecia querer vir dar-nos as boas-vindas, surge uma abertura na vegetação que mal dava para a monobra de um Unimog e lá estava.... o magnífico porto de lala. E se não
estivessem lá os militares da Companhia que íamos render, meio escondidos pelo capim e meia dúzia de viaturas, teria passado, certamente, despercebido.”.


Preferencialmente era ao porto de Lala que íamos receber os reabastecimentos mensais. A distância era de 6 Km e nunca foi detetada qualquer mina. O mesmo não se pode dizer do porto/cais de S. João, fronteiro a Bolama, que distava 18 Km de Nova Sintra, numa estrada quase sempre minada e onde por duas vezes, devido ao rebentamento de minas anti-carro sofremos quatro mortos (2+2) e uma dezena de feridos graves.

(Revisão / fixação de texto: LG)

______________



Vd. poste de 15 de abril de 2025 > Guiné 61/74 - P26692: Vivências em Nova Sintra (Aníbal José da Silva, Fur Mil Vagomestre da CCAV 2483/BCAV 2867) (7): Coluna de Reabastecimento a S. João - Coluna a S. João em 08/12/69 e Colunas de reabastecimento a Lala

Guiné 61/74 - P27355: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte V: Depois de Ganturé, Sangonhá (maio / junho de 1964)

 

 Guiné > Região de Tombali > Sangonhá  > CCAÇ 1477 (1965/67) > O José Parente Dacosta, 1º cabo cripto, CCAÇ 1477 (Sangonha e Guileje, 1965/67), junto ao monumento da CART 640 ("Quartel ocupado e construído pela CART 640, desde 21/5/1964. [CART] 640 / RAP2".

Há poucas fotos de Sangonhá, Cacoca, Cameconde, quartéis que ficavam na linha fronteiriça e que irão ser abandonados, em 1968.

Foto (e legendas): © José Parente Dacosta (2017). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Carta de Cacoca (1960) (Escala 1/ 50 mil) > Posição relativa de Gadamael, Ganturé, Sangonhá, Cacoca, rio Cacine, fronteira com a Guiné-Conacri, parte do Quitafine/Cacine e do Cantanhez  

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025


O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64)

Parte V - Depois de Ganturé, Sangonhá (mai/junho  64)


Depois de, em Ganturé, existirem as condições mínimas de sobrevivência para a instalação das tropas que aí permaneciam, o Pel Rec Fox 42 juntamente com tropas recém chegadas à Guiné   [CART 640 ] e com um Pelotão de Milícias rumou até Sangonhá a 21 de maio de 1964 [e não março, como por lapso indica o autor ].

Petromax a petróleo
marca Hipólito, modelo 
350
Como de costume segue-se a capinagem, a vedação de arame farpado em volta da tabanca, que seria agora um quartel, a colocação de cavaletes para instalação dos candeeiros a petróleo (petromaxes), a que alguns “valentes” iam dar pressão de ar durante a noite, sempre que necessário.

Também era norma que,  quando chegávamos a um novo local, não se consumia água da que ali existia sem ser certificado de que ela estava em boas condições de utilização, assim, recorria-se sempre ao aquartelamento mais próximo para nos abastecermos desse precioso líquido.

Então no dia 23 de maio de 1964, pela tarde lá vamos nós a Guileje encher os reservatórios de água regressando já ao lusco-fusco, âquela hora em que já não se vê muito bem mas também ainda não é preciso acender faróis.

Assim o IN que decerto nos vigiava não deu pela chegada dos carros da Cavalaria e entenderam ser muito fácil um ataque às tropas recem instaladas para mais que a maior parte tinha as pernas muito brancas,  o que indiciava pouca experiência naquelas andanças e que se tornaria uma tomada do local com a maior das simplicidades.

E, então pelo meio da noite de 23 para 24, qual não é o espanto do sentinela que se encontrava do lado da estrada que ligava a Guiné à Guiné-Conacri, quando vê aparecer um grupo de guerrilheiros pela estrada acima, descontraidamente a aproximar-se da entrada trazendo uma metralhadora e outros armamentos,  parecendo que passeavam. 

Essa sentinela chegou a estar confundido sem saber se devia atacar ou esperar julgando que eles se vinham entregar às nossas forças.

Entretanto quando eles se encontravam a cerca de vinte metros do arame, a sentinela que se encontrava dentro do granadeiro,  reagiu e fez uma rajada que despoletou um ataque feroz, à volta da aquartelamento. 


Parece ser uma metralhadora pesada,
 de calibre 12.7
de origem soviética,
a Degtyarev (DShK) m/938,
com tripé
Havia mais duas metralhadoras iguais à que aquele grupo transportava, cuja foto envio, e várias outras armas mais ligeiras, aquelas "costureirinhas" que quase todos conhecemos.

As nossas tropas reagiram e o tal grupo procurou uma elevação no terreno e instalaram-se para fazer fogo sobre nós, mas como os nossos carros tinham um grande poder de fogo, depressa o anulámos, isto com a ajuda do comandante da milícia, visto que a certa altura devido à proximidade do IN não se sabia muito bem de quem eram os tiros,  se das nossas tropas se do IN. 

Depois de anulado esse grupo cuja maioria ficou lá assim com o respectivo armamento, que se encontra no museu militar, todo o ataque foi sendo anulado e o IN retirou em debandada.

Ao raiar da aurora fomos então fazer o reconhecimento, e do grupo que fora avistado estavam seis mortos, a metralhadora, pistolas-metralhadoras e pistolas e um rolo de corda. 

Depois de examinados os outros locais de onde vieram os piores ataques, restavam montes de invólucros e os vestígios das metralhadoras terem sido arrastadas no final do ataque, pelo que se deduziu que o cordão encontrado seria exactamente para atar ao suporte da metralhadora para que um dos intervenientes recuasse para local seguro e puxasse a metralhadora no final do ataque, caso este corresse mal como foi o caso, só que neste caso não houve tempo para a execução dessa operação.

Passada esta primeira confusão, permanecemos em Sangonhá até 23 de junho  [de 1964 ], continuando a manter as devidas precauções e a segurança das tropas aí instaladas, até que eles atingissem a maturidade para se defenderem a si próprios.

Depois de Sangonhá, seguiu-se Cacoca (...) (**)

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

2. Comentário do editor LG:

Há uma divergència de datas entre o texto acima reproduzido e a versão da CECA.  O Armando Fonseca queria dizer "maio" e não "março", aliás de acordo com o final  do poste anterior: "Permanecemos em Ganturé até 20 de maio. No dia seguinte fomos para Sangonhá (...) (**).

Excerto do livro da CECA (2014, pág. 250);

(...) Em 10Mai, forças das CArt 494 e 495 e Pel Rec Fox 42, com auxiliares Fulas, na região de Bomane, avistaram um grupo ln que e deslocava em direcção à fronteira. Montada uma emboscada e aberto fogo quando os guerrilheiros estavam a 5 metros, as nossas tropas provocaram 4 mortos ao ln e capturaram 1 prisioneiro e material diversificado.

No dia 21, conforme planeamento para controlar a fronteira sul, realizou-se a operação "Jacaré" com vista á ocupação de Sangonhá, em zona de intensa actividade inimiga.

Em 24, um grupo ln atacou, de todas as direcções, o estacionamento da CArt 494    [ou CART 640 ?, a CART 494, comandada pelo cap art Coutinho e Lima, estava em Gadamael, mas participou na Op Jacaré em Sangonhá, causando dois feridos; a reacção pronta das NT causou 5 mortos, 1 prisioneiro e ainda baixas não estimadas; capturada 1 metralhadora pesada e levantada 1 mina A/C "TM-46" na estrada para Gadamael Porto, além de numeroso material de guerra. (...)

Fonte:  Excerto de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2014),  pág. 250.

Observ -  Sabemos, pela ficha de unidade, que a CART 640:

(i) chegou a Bissau em 3 de março de 1964;

(ii) após um curto período de permanência em Bissau,  onde fez a IAO, destacou dois pelotões
para a realização de operações na região de Cuntima, a partir de 24Mar64, em
reforço do BCaç 512;

(iii) em 08Abr64, foi deslocada para Farim para actuação em operações nas regiões de
Jumbembém, Cuntima e Jabicó, em reforço temporário do BCaç 512 e depois do
BCav 490; 

(iv) em 11Mai64, foi substituída pela CCav 487 e recolheu a Bissau até 20Mai64;

(v) em 21Mai64, um pelotão tomou parte na Op Jacaré para ocupação e instalação em Sangonhá, para onde a subunidade se deslocou, por fracções, entre 25Mai e 22Jun64, tendo repelido um forte ataque desencadeado em 24Mai64 e causado pesadas baixas ao inimigo;

(vi)  em 25Jun64, na sequência da Op Veloz, ocupou também com dois pelotões, a localidade de Cacoca, ficando integrada no dispositivo e manobra do BCaç 513 e depois do BCaç 1861.

(vii) pelo armamento e munições capturadas e baixas causadas ao inimigo, destaca-
-se a Op Gira  na região de Bantael Silá e um golpe de mão efectuado à tabanca de Mareia em 24Ju165, entre outras;

(viii) em 08 e 14Jan66, foi rendida no subsector de Sangonhá, por troca, pela CCaç 1477 (...)

____________

Notas do editor LG:


(*) Vd. poste de 22 de dezembro de 2017 > Guiné 61/74 - P18125: Tabanca Grande (455): José Parente Dacosta, ou 'José Jacinto', ex-1º cabo cripto, CCAÇ 1477 (Sangonha e Guileje, 1965/67)... Natural da Covilhã, vive em Dijon, França... Passa a ser o nosso grã-tabanqueiro nº 764.


domingo, 26 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27354: Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã (Joaquim Costa, ex-Furriel mil arm pes inf, CCAV 8351, 1972/74) - Parte XXVIII: nem todas as histórias têm um final feliz: a fábula da cabra Joana de Nhacobá e do cão rafeiro Tigre do Cumbijã

Guiné > Zona Sul > Região de Cumbijã > Cumbijã > BCAV 8531, 1972/74) > O destacamento (ou melhor..."acampamento") do Cumbijã.
Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > CCAV 8531 (Cumbijã, 1972/74) > Tabanca de Nhacobá, até então considerada "área libertada do PAIGC", ocupada num “golpe de mão” pela CCAV 8351 no dia 17 de maio 1973 no decurso da operação Balanço Final (17 a 23 maio 1973). Na foto, o Joaquim Costa. A cabra Joana era natural daqui, foi um dos "despojos de guerra", levados para o Cumbijã. A aldeia foi arrasada pelos "bulldozers" da engenharia militar e a população realojada num reordenamento.



Gondomar > Biblioteca Municipal > 9 de novembro de 2024 > Sessão de apresentação do livro "Crónicas de Paz e Guerra" ( Rio Tinto, Lugar da Palavra Editora, 2024, 221 pp.)

Três Tigres do Cumbijã: oo centro, o Joaquim Costa; à esquerda, o João Melo, ex-1º cabo cripto, das CCAV 8351 (Cumbijá, 1973/74); à direita, o Mendes (que veio de propósito da zona onde vive, na Serra da Estrela); um quarto Tigre, o Gouveia, não ficou nesta foto...


Fotos (e legendas) © Joaquim Costa (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


*
O "Tigre" Joaquim Costa
1. O Joaquim Costa Joaquim Costa, minhoto de V. N. Famalicão, conterrâneo da nossa senhora enfermeira pqdt Rosa Serra,  vive em Fânzeres, Gondamar, perto da Tabanca dos Melros. É engenheiro técnico reformado.

 Foi também professor do ensino secundário (os últimos 20 anos em Gondomar, como diretor escolar). Na outra "incarnação" foi Fur Mil Armas Pesadas de Inf da CCAV 8351/72, "Tigres do Cumbijã" (Cumbijã, 1972/74). 

É autor da notável série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã" (que, em grande parte, já saiu em dois  livros com a suas memorias, um em 2022 e outro em 2024).

A história da cabra Joana já foi aqui publicada no nosso blogue. Deu origem até a vários "passatempos de verão", com o pessoal  escrever sobre esta "fábula" ( que, segundo o dicionário, é uma composição literária, em verso ou em prosa, geralmente com personagens de animais, com características humanas, e em que se narra um facto cuja verdade moral se oculta sob o véu da ficção).

A fábula da cabra Joana e do cão rafeiro Tigre do Cumbijá é afinal uma metáfora sobre aquela "drôle de guerre", uma expressão francessa intraduzível (a não ser com muitas explicações...), que a foi a nossa, que afinal não foi bem a nossa: 

  • Portugal não estava oficialmente em guerra contra nenhum outro Estado soberano ou potência estrangeira;
  • não cortou relações diplomáticas com ninguém (nem com Cuba que mandou cubanos poara a Guiné para dar uma "ajudinha internacionalista" ao senhor engenheiro!);
  • uns diziam que lutávamos contra o "terrorismo", outros proclamavam que estávamos ali a "defender a civilização cristã e ocidental";
  • outros ainda, mais cínicos e calculistas, desvalorizavam aquela "drôle de guerre", chamando-a "guerra de baixa intensidade...

 Para mim, que também a fiz, foi uma "merda de guerra", em que no fim todos perderam: voltando à fábula, não houve vencedores nem vencidos, mas perdedores, incluindo a cabra Joana e o cão rafeiro chamado Tigre do Cumbijã...

Saiu, entretanto, uma nova versão da história da cabra Joana, da autoria do Joaquim Costa, agora, inserida numa coletânea de poemas e contos "Anjos da Prosa e da Poesia: Volume V (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2025).

O autor mandou-ma em 4/10/2025, com a seguinte mensagem: "Porque hoje é dia do animal, resolvi lembrar a cabra Joana nascida e criada em Nhacobá e levada compulsivamente para Cumbijã. Este conto foi publicado numa coletânea sobre prosa e poesia."

Recorde-se o contexto: a cabra Joana de Nhacobá foi apanhada pelo pessoal da CCAV 8351, justamente em Nhacobá, tabanca até então controlada pelo PAIGC, no "corredor de Guileje", no decurso da Op Balanço Final (17-23 de maio de 1973). Nhacobá era um lugar de importância estratégica para ambos os contendores. Foi levada, a Joana, para Cumbijã, sendo obrigada a coexistir, pacificamente, com o cão rafeiro, o Tigre de Cumbijã, mascote do pessoal. 

Estive hesitante em publicar esta versão na série "Humor de Caserna", mas achei, por fim, que ficaria melhor  a dar continuidade  à série "Paz & Guerra: memórias de um Tigre do Cumbijã", do Joaquim Costa...



Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 > O encontro, não muito amistoso, da cabra Joana que trouxemos de Nhacobá no dia da operação Balanço Final, com o “rei” do destacamento do Cumbijã,  o cão rafeiro Tigre... Com o tempo lá foram partilhando o protagonismo. Foto: cortesia do Carlos Machado.


Foto (e legenda): © Joaquim Costa (2021). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

A cabra Joana

por Joaquim Costa


Era uma vez duas famílias que viviam numa terra distante, de uma beleza que se entranhava no corpo e na alma como o pó vermelho das suas picadas.

Aqui viviam, desavindas, ao que parece, por causa de uma bandeira.

Uma era a família IN, que vivia numa bonita bolanha, nas margens de um bucólico rio, com grandes plantações de arroz e lindas palmeiras, de seu nome Nhacobá.

A outra era a família Tigre, que vivia todos os dias com os olhos e a alma bem longe dali, que habitava uma aldeia próxima, que ela própria construiu, de seu nome Cumbijã, que odiou e... quase amou.

Os arrufos entre estas duas famílias eram constantes, com investidas ousadas a casa uns do outros, tentando a sua expulsão da região.

Entretidos nestes arrufos, os senhores da guerra (especialistas do pionés no mapa), decidiram (sem consultar ninguém, ) que os Tigres investiriam em força sobre a família IN, impondo a sua lei.

Assim foi, mas com perdas irreparáveis e inocentes de um lado e do outro.

Como era habitual, nas operações de alto risco, quase todos os soldados beijavam, à saída, o seu amuleto da sorte (o seu Anjo da Guarda): a foto da namorada ou dos pais, da(s) madrinha(s) de guerra, um santo devoto, uma folha arrancada à revista inglesa Penthouse e outros o seu inseparável mapa (mapa operações pontos de artilharia), que guardavam num dos bolsos do camuflado mais perto do coração.

Como é comum, desde os primórdios, quem vence tem direito aos despojos, neste caso: arroz, cigarros, fósforos cubanos e livros escolares (impressos na Suécia) com mensagens estilo Estado Novo (mas cujos heróis eram outros) e... uma cabra que chamou a atenção pela coragem demonstrada na defesa da sua aldeia, levantando as suas patas aos invasores e  mostrando assim a sua indignação.

Esta irredutível cabra, como passou a fazer parte do despojos, acompanhou os Tigres de volta a casa.

Aqui quem reinava era o cão rafeiro Tigre, pelo que, no dia da chegada a cabra foi apresentada ao rei. Não foi um encontro fácil e só não se chegou a vias de facto dada a pronta atuação da guarda pretoriana.

Esta irredutível cabra, pela sua coragem e ousadia, ganhou a simpatia de toda a população, ou quase, já que em todo o rebanho há sempre a sua ovelha ronhosa!

Tinha esta irreverente cabra, a quem foi dado o nome de Joana, cinco predadores na aldeia:

  • o rei Tigre que nunca aceitou partilhar o protagonismo com este estranho animal, contudo, neste caso, não se sabia quem era o predador de quem;
  • o vagomestre, que tratava dos comes & bebes, que fitava a Joana com os olhos vermelhos de quem já a está a ver a ser esfolada e transformada em estilhaços de carne (coisa rara na aldeia) para o arroz;
  • os três agricultores improváveis do Cumbijã que, fartos de ração de combate, construíram hortinhas em pleno teatro de guerra. 

A cabra Joana, tal como a burra no Alentejo, não resistia às viçosas alfaces, saltando a cerca das três hortinhas, lambuzando-se com a frescura das mesmas, com a compreensível indignação dos proprietários das plantações.

Na defesa da Joana passou a haver, 24 sobre 24 horas, um guarda-costas, armado de G3 com bala na câmara.

Só assim é que a mesma resistiu até ao dia em que os Tigres abandonaram a sua casa, no Cumbijã, a caminho do Bissau, para apanhar o avião que os levaria finalmente à sua terra de origem. 

Todos, sem exceção, verteram uma lágrima, já com saudades da cabra Joana e do cão Tigre. Comove-me saber que uma e outro, provavelmente, também deixaram cair uma lágrima... salgada!

De um momento para o outro, sem que ninguém o decretasse, cessaram as hostilidades e as duas famílias promoverem festas conjuntas trocando prendas e abraços. Parecia que da noite para o dia o mundo tinha virado do avesso. Prova que a guerra não é solução para nada. Se quem a decreta fosse obrigado a combater nas linhas da frente, o mundo viveria eternamente em paz.

Estas maravilhosas criaturas, sempre que um grupo saía para o mato saltavam alegres e divertidas como desejando boa sorte. No regresso logo corriam para o cavalo de frisa (a porta de entrada) entusiasmadas com a sua chegada.

No dia em que definitivamente os Tigres abandonaram o Cumbijã, assistiram em silêncio a todo o seu frenesim e entusiasmo, como pressentindo o que estava para acontecer. Ao saírem do cavalo de frisa (agora porta de saída)  em grande algazarra, estas ficaram imóveis, com o cão Tigre produzindo um ruído que parecia de choro e a cabra Joana  levantando ligeiramente uma pata, vendo-nos desaparecer por entre a nuvem de pó vermelho da picada, como que dizendo: "E nós?"...

Não se sabe o que aconteceu depois, mas teme-se que esta história, pelos relatos que foram chegando, não teve um final feliz...

Ao que parece, nem os macacos se salvaram!..

In: Anjos da prosa e da poesia. Vol. V / Adelina Santos... [et al.] ; coord. Ana Maria Bessa, João Carlos Brito. - 1ª ed. - Rio Tinto : Lugar da Palavra, 2025. - 144 p. ; 23 cm. - ISBN 978-989-731-226-7, pág. 100.

(Revisão / fixação de texto: LG)





 Guiné-Bissau > Região de Tombali > Cumbijã > Maio de 2025 > Três vistas aéreas da atual tabanca 


Fotos (e legenda) © João de Melo  (2025). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné 61/74 - P27353: S(C)em Comentários (80): o "Toca-choro" entre os mancanhas de Bula e Có




Guiné- Bissau > Bissau > 15 de junho de 2025 > Jovens balantas de Encheia à porta da sede da Impar Lda, na Av Domingos Ramos, 43 D, Bissau, CP 489


Foto (e legenda): © Patrício Ribeiro (2025). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Excerto do poste P26948 (*):

Esccreveu o Patrício Ribeiro:

(...) Estes 3 jovens que estão na foto, informaram que fazem parte da “cultura balanta”, vieram das tabancas balantas da região de Bissorã, estes 3 são de Encheia.

Nesta época, final da campanha de caju, os camponeses têm algum dinheiro, para poderem fazer as suas cerimónias.

Há muitos “choros”, são precisas muitas vacas e porcos, as pessoas ficam com dívidas para pagar durante muito tempo, porque o dinheiro não chega e as festas são grandes, para não ficarem atrás das cerimónias dos amigos. (...)


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Guiné > Zona Leste > Regiáo de Bafatá > Sector L1 > Bambadinca > Destacamento e reordenamento de Nhabijões > 1970 > O furriel miliciano Henriques, da CCAÇ 12, junto a um dos locais de culto dos irãs (espíritos da floresta), conhecidos por "baloubas".. A população era maioritariamente balanta, animista. Era conhecida a sua colaboração com o PAIGG, sobretudo com as populações e os guerrilheiros de Madina/Belel, no limite do Cuor, a Noroeste de Missirá.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2007). Todos os direitos reservados [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
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2. Nota do editor LG sobre o "Toca-choro" (***)

Escreveu o Aua Silá (**)

(...) A realização do Toca-Choro para os Mancanhas supõe a crença na imortalidade da alma e a ideia de valorização da solidariedade com os nossos ancestrais, pois o Toca-Choro nos permite manter esse laço de convivência simbólica entre o mundo dos vivos e dos mortos. 

Por outro lado, (...) se o ritual do Toca-Choro não for feito, a alma da pessoa morta vagueia, pode voltar ao mundo dos vivos para fazer mal a família.

A cerimônia de Toca-Choro realiza-se logo após a morte e sepultamento de um falecido, por vezes, acontece um ano depois ou mais, depende das condições da família em conseguir os recursos necessários para a realização da cerimônia, de modo que, neste ritual,  são sacrificados vários animais para comunhão  (...). 

(...)  O Toca-choro é realizado através da cotização (abota) feito por parentes do falecido para ajudar na realização da cerimônia, de modo que se verifica a predominância de várias comidas e bebidas. Nesta cerimônia são sacrificados muitos animais, a exemplo de: vacas, porcos e cabras. 

Normalmente, este ritual acontece durante três dias:
  • O primeiro dia se inicia com o toque de bombolom para comunicar o resto da família para participar na mesma cerimónia.
  • No segundo dia se começa com cântico e dança no momento de sacrificar os animais (karmusa).
  • O terceiro ou o último dia é marcado pela manifestação (festa) em que predomina a “música moderna”. 
Também, se verifica carnes em quantidade e bebidas; tudo isso é criado por diferentes grupos participantes (mandjuandadi) (... ) no ritual. 

Esse é um dia de muita animação em que são consumidas bebidas alcoólicas (carni ku binho mangadel), muita carne e vinho, isso em homenagem aos que já partiram. 

Na prática de Toca-Chora existe sempre um indivíduo responsável pela realização da cerimônia de um falecido. Essa pessoa tem a função de fazer de tudo em colaboração com o restante dos familiares para realizar essa cerimónia, para poder garantir com que a sua cerimonia seja feita após a sua morte também e assim sucessivamente.(...)

Acrescenta o editor LG:


(...) Que me lembre, assisti numa tabanca balanta, nos arredores de Bambadinca, a um "choro"... Alguém tinha morrido umas horas ou um dia antes... 

Havia já um grande ajuntamento de pessoas à volta da morança. E manifestações de dor, como em qualquer parte do mundo. Mas o que retive na memória foi o espetáculo, macabro, de um bando de "jagudis" (abutres), poisados na cobertura de colmo da morança...O "jagudi" sente o cheiro da morte à distância...

segunda-feira, 23 de junho de 2025 às 08:51:00 WEST 

(...) Outro espetáculo macabro: num operação do outro lado do rio Geba (margem esquerda), entre o Enxalé e Portogole, num trilho, mas protegido por densa vegetação, encontrámos o cadáver de um guerrilheiro morto : já não era cadáver em decomposição, era um simples esqueleto, vestido de caqui amarelo (!)....

A morte teria ocorrido há uma semana, na opinião dos meus soldados... Mas já não havia um pedaço sequer de pele... As formigas e outros predadores limparam, literalmente, o cadáver... Na natureza nada se perde.. Mas este desgraçado não teve ninguém que lhe fizesse o "choro"...

.segunda-feira, 23 de junho de 2025 às 09:01:00 WEST 

(...) A propósito do "choro" na Guiné-Bissau...Lembro-me, há muitos anos, um médico guineense, meu aluno (mancanha ou brame), me dizer que tinha de ir à terra fazer o "choro" (a cerimónia do luto) da mãe...Já se tinham passado dois anos depois da morte da mãe...  Nesses dois anos andou a trabalhar em Portugal para juntar dinheiro...

E quando lhe perguntei o número de pessoas que ia convidar para o "choro", lembro-me de ter ficado surpreendido: 200 pessoas numa "festa" de muitos dias...

segunda-feira, 23 de junho de 2025 às 09:39:00 WEST
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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 22 de junho de 2025 > Guiné 61/74 - P26948: Bom dia desde Bissau (Patrício Ribeiro) (57): jovens balantas de Encheia à porta da Impar Lda... e um mergulho na piscina do antigo Clube Militar de Oficiais

(**) SILÁ, Aua. O povo Brame ou Mancanha da Guiné-Bissau: um estudo sobre ritual fúnebre Toca-Choro (Toka Tchur). 2019. 28 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Humanidades) - Instituto de Humanidades e Letras, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, São Francisco do Conde, Disponível em formato pdf em: https://repositorio.unilab.edu.br/jspui/bitstream/123456789/1482/1/2019_proj_auasila.pdf

(***) Último poste da série > 23 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27343: S(C)em Comentários (79): Das "Vinhas de Ira" às "sopas de cavalo cansado", passando pelos verdes que me faziam azia... Tudo isto para dizer que prefiro...os maduros (Virgílio Teixeira, Vila do Conde)

sábado, 25 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27352: Os nossos seres, saberes e lazeres (706): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (227): Do Alto Tâmega até Pedrógão Grande, acabou-se a semana de férias – 6 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Não escondo que saímos da Galiza de monco caído, aquela sensação que mais uns dias de vadiagem na região nos poria o astral em cima, mas levantou-nos o ânimo saber que havia uma paragem numa belíssima cidade no Alto Tâmega, Chaves, falei da presença romana e de uma ponte chamada de Trajano, como não há outra igual em Portugal, e das fortificações, porque os flavienses tiveram muito que penar, logo o Rei de Leão que quis abocanhar este território; pelas minhas contas, não vinha a Chaves há quase meio século, com que prazer fiz a sua famosa Rua Direita, toda ela cheia de história, os vestígios medievais, barrocos, as prosperidades oitocentistas e novecentistas - e o resultado da gestão autárquica em democracia. Foi tudo a correr, pretende-se chegar a Pedrógão Grande, um estirão, ainda com luz do dia. Férias magníficas, temperaturas mais do que amenas, a canícula veio na semana seguinte. E, moral da história, vimos a Lousã, o sul da Galiza e Pedrógão Grande antes da devastação dos fogos. Amarga coincidência, findámos o roteiro desta viagem junto ao monumento das vítimas do grande incêndio do Pedrógão Grande de 2017. Nem nos passava pela cabeça que outros fogos vinham a caminho, poucas semanas depois.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (227):
Do Alto Tâmega até Pedrógão Grande, acabou-se a semana de férias – 6


Mário Beja Santos

Era ponto assente que quando regressássemos do sul da Galiza havia uma paragem na cidade de Chaves, mais do que aqui amesendar os concelebrados pastéis e bom fumeiro que a região oferece tinha saudades de regressar a Aquae Flaviae, se a memória não me falha andei por aqui nos tempos em que fiz programas de televisão, isto entre as décadas de 1970 e 1980, estava mortinho de curiosidade de ver a diferença de quase meio século. E ganhei muito com a surpresa. Arrumado o carro, seguimos para a ponte romana, concluída no tempo do Imperador Trajano, entre o fim do século I e o princípio do século II d.C. Nos preparativos da viagem, folheei umas resmas de papel sobre Chaves, recordar a história faz sempre bem. Até porque há vestígios da Pré-História, a presença romana foi muito significativa, seguiram-se suevos e godos, muçulmanos, veio a Reconquista Cristã, foi um não mais parar de acontecimentos desde que a Póvoa de Chaves surgiu por iniciativa de D. Afonso III. Num livro de Paulo Dordio intitulado Chaves e as suas Fortificações andei a ver desenhos dos tempos medievais, da vila renascentista, das estruturas de fortificação e baluartes, tudo fruto da posição de Chaves, que foi muito apetecida por Leão, que se preparou para os embates da Guerra da Restauração.

Também pedi ajuda ao Google, para saber o que havia de mais significativo para admirar: a Torre de Menagem e o que resta do Castelo, há uns panos de muralha dispersos; a Igreja Matriz; não perdera a ocasião de mirar a meio da ponte os dois documentos epigráficos que falam do tributo das gentes flavienses e dos dez povos que ajudaram na sua construção; no meio daquela informação recordei as minas de volfrâmio, as águas minerais Campilho e Vidago, lembro-me perfeitamente de as ver em cafés e restaurantes; quer no Google quer na papelada lida recordava-se os Paços do Duque de Bragança, que aqui morrera e tem túmulo o primeiro Duque, D. Afonso, no Convento de S. Francisco; recordava-se também que se deveria visitar a Igreja da Misericórdia em estilo barroco, revestida de azulejos. Ponto final, começamos a atravessar a ponte de Trajano, à cautela, numa tentativa de dar a dimensão da ponte sobre o Tâmega, tirei a imagem à distância.

É uma obra notável de engenharia com cerca de 150 metros de cumprimento. Os doze arcos visíveis são de volta perfeita e formados por enormes e robustas aduelas de granito. Há pelo menos mais seis arcos soterrados pelas construções, de um lado e do outro do rio.
Um dos dois belos exemplares epigráficos vindos de outras proveniências. Recorde-se que por aqui passava a Via de Augusto.
Igreja Matriz, de raiz medieval, desse período conservou a imponente torre, rasgada por duas sineiras; tem portal românico. As transformações que ocorreram no século XVI são particularmente visíveis nos portais. O templo estava fechado, não pude contemplar os belos painéis de azulejos, ficará para a próxima.
Igreja da Misericórdia, construída no século XVII, portanto barroca. A fachada do templo granítica, antecedida de uma escadaria também de pedra, está pormenorizada e cuidadosamente decorada por pilastras e janelas. Pelo que me foi a ler, tem o interior de uma só nave, paredes inteiramente revestidas de azulejos. A fachada posterior do edifício tem a particularidade de assentar e aproveitar o paramento externo da cerca urbana medieval.
Câmara Municipal, começou por ser palacete para residência de António de Souza Pereira Coutinho, morgado de Vilar de Perdizes. Foi adquirido pela Câmara. Do seu corpo central sobressai o portal principal, ladeado por dois óculos ovalados, e no topo o frontão triangular com brasão no tímpano, encimado por relógio. Ainda fui espreitar a entrada da Câmara, a sua imponente escadaria em granito e os azulejos azuis com cenas campestres.
Há reminiscências da Chaves medieval. Reza um dos documentos que consultei que nesse tempo a população alojava-se em edifícios estreitos com dois ou três andares, onde predominavam varandas estreitas no primeiro andar e no segundo e terceiro andar varandas suspensas. As varandas avançadas para a rua eram a forma de rentabilizar o espaço intramuros. Hoje, as ruas conservam o velho aspeto medieval, exibindo da tipologia das suas casas elementos da construção dessa época. As varandas coloridas, em madeira de castanho ou pinheiro subsistem, ainda, por toda a cidade velha.
Esta é a Torre de Menagem. Mostro-vos a informação que encontrei ali perto, achei-a bem esclarecedora, é, sem margem para dúvida, de uma grande beleza este ponto de referência do que foi o Castelo de S. Estevão.
Condicionado pelo tempo, ainda calcorreámos a Rua Direita, era inevitável ver a fachada dos Paços do Duque de Bragança e o belo pelourinho. Porquê o Duque de Bragança em Chaves? Pela simples razão de que o senhorio foi doado a Nuno Álvares Pereira que o cedeu ao genro, o Conde de Barcelos, entrando assim na Casa de Bragança.
Tenho de voltar, e com alguma presteza. Esta sede de concelho, com uma área total de cerca de 591Km2, esta cidade de Chaves que é cidade desde 1929, tem monumentos nacionais relevantes, bem me apeteceu entrar na magnificente biblioteca, mas não me podia esquecer que íamos pernoitar a Pedrógão Grande, para uma outra romagem de saudade. Logo que possa, manda a curiosidade, hei de ler qualquer coisa sobre Chaves na Guerra de Restauração e como foram os combates de Chaves entre as forças de Paiva Couceiro e as do Governo Republicano.
Agora vamos amesendar e segue-se um estirão de viagem, ala morena que se faz tarde, fechei provisoriamente o livro flaviense e já começo a recordar os anos que passei em Pedrógão Grande e Pedrógão Pequeno, temos passado férias com um tempo magnífico, a canícula vem para a semana, e era impensável imaginarmos, quando fomos contemplar o monumento desenhado por Souto Moura em homenagem aos mortos do incêndio devastador de 2017 que estava para breve uma nova tempestade de fumo em 2025.

Não vou causticar o leitor repisando imagens desta região chamada Pinhal Interior, já mostrei as belezas do Cabril, uma região que fascinou o pintor Alfredo Keil, dizem que tirou elementos para a coreografia da sua ópera A Serrana, vinha acompanhado por Giuseppe Cinatti, cenógrafo do Teatro de São Carlos, por pudor não mostro as paredes incendiadas de uma casa recuperada no meio da floresta, mas não escondo o júbilo de mostrar a praia fluvial de Mosteiro, aprazível, na memória de familiares e amigos que fizerem vilegiatura em Pedrógão Grande ou Pedrógão Pequeno, a região tem belíssimas praias fluviais, esta está na memória de todos.
Antes de partirmos para Lisboa, viemos recordar os mortos daquele abominável incêndio de 2017, perto da estrada onde tanta gente morreu ergue-se uma fonte de vida, obra traçada pelo arquiteto Souto Moura, ao fundo, como se fossem lápides, estão esculpidos os nomes dos falecidos. Ensimesmados com tal tão dolorosa recordação, entramos no carro, é o regresso a Lisboa. E na conversa começamos a idealizar a próxima viagem, fala-se muito no Planalto Mirandês, há quem alvitre o início da primavera, há para ali um parque natural, de nome Montesinho, que se cobre de tapetes de flores. Porque a viagem nunca acaba, e aqui dentro do carro estão viajantes impenitentes. Até à próxima!
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Nota do editor

Último post da série de 18 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27331: Os nossos seres, saberes e lazeres (705): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (226): Em S. Estevão de Ribas de Sil, no passeio termal de Ourense – 5 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27351: Humor de caserna (216): BA 12, Bissalanca: os tomates... da horta do capelão: uma história pícara que mete a nossa querida enfermeira pqdt Giselda e o seu "olheiro" na BA 12, o ex-ten pilav Miguel Pessoa... Um pequena homenagem póstuma ao major capelão Abel Gonçalves (1931-2019), que foi chefe do serviço de assistência religiosa da FAP.




Padre Abel Gonçalves (Cinfáes, 1931 - Porto, 2019),
major capelão reformado. Fez duas comissões na Guiné 
(BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete, 1967/69). 
E depois na BA 12, Bissalanca (1970/74).



O capelão Abel Gonçalves, na Guiné, vestido com um traje tradicional masculino, o "bubu".
Fonte: cortesia de Bártolo Paiva Pereira - "O capelão militar na guerra colonial"
(Edição de autor, Vila do Conde, 2025), pág. 54.

Escreveu o padre Bártolo Paiva Pereira, seu superior hierárquico, que o capelão Abel não era "um militar rígido, sisudo"...  Era "uma capelão disponível, com 'cara de homem'. Foi assim que o conheci e com ele partilhei uma comissão de serviço na Guiné" (pág. 54)...E mais: "Não é no quadro da guerra  que o padre Abel se purifica. Mas no convívio solto e amigo com as  populações da Guiné,  que faz a sua catarse. Confessa que também aprendeu muito no convívio com os seus militares, a quem rende justa homenagem" (pág. 53).

 

Guiné> Bissalanca > BA 12 > s/d (c. 1972/74) > Uma enfermeira paraquedista, colhendo limões diretamente do limoeiro. Foto gentilmente cedida por Miguel Pessoa.. [Ele próprio acabou, em comentário ao poste P4065 (*) por identificar a enfermeira, que de resto é uma das protagonistas da história que se conta a seguir: a Giselda, Antunes, de solteira, Pessoa, de casada]

Foto (e legenda): © Miguel Pessoa (2009). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
 


1. Mensagem,  a seguir, do Miguel Pessoa (ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, hoje cor pilav ref, casado com a Giselda (nenhum deles precisa de apresentações, porque são justamente o casal mais mediático da guerra da Guiné e, mais do que isso, o casal mais "strelado" do mundo: se vivessem nos EUA e tivessem feito a guerra do Vietname, já estariam há  muito no Guiness):


Data - 21 mar 2009

Luís:

(...) envio-te este texto ligeirinho, um pouco "revisteiro",  que, na minha ótica, embora não sendo escrito por nenhuma delas, me foi contado por uma das intervenientes, pelo que penso que talvez possas incluí-lo na série "As Nossas Queridas Enfermeiras Paraquedistas". 

(...) Embora eu goste de escolher os títulos dos meus textos, deixo ao teu critério a escolha do título para este trabalho, por recear que possa ser mal aceite aquele que eu escolhi.(,,,) (*)


Humor de caserna >  BA 12, Bissalanca: Os tomates... da horta do capelão

por Miguel Pessoa


No meu tempo na Guiné, os tomates do capelão da BA12 eram muito cobiçados, muito por culpa das nossas enfermeiras paraquedistas que, sempre que podiam, faziam uma colheita na horta que o padre A... mantinha junto à igreja da Base.

Era generalizada a opinião, entre quem deles se servia, de que os tomates do nosso capelão, embora pequenos, eram sumarentos e saborosos e enriqueciam qualquer salada. E sabe-se o gosto que o pessoal tinha por tudo o que lhe lembrasse a metrópole. E era vê-los a "deitar abaixo" uma saladinha feita com tomates fresquinhos, acabadinhos de apanhar...

É claro que o padre A... calculava perfeitamente quem eram os malandros (neste caso as malandras...) que lhe andavam a "derreter" a fruta, mas pactuava simpaticamente com a situação, dado ser por uma boa causa.

Mas não se ficava pelos tomates a razia que as enfermeiras paraquedistas faziam na fruta da base. Para além da fruta que iam comprando ao responsável pela horta da Base, lá iam marchando de vez em quando uns limões, uma papaia, que o pessoal a alimentar era muito e de bom apetite.

Nem o cajueiro do Comandante escapava (do Comandante é um modo de dizer, que estava junto ao comando da Base), sendo que, um dia, havendo uma escada à mão, duas enfermeiras (de que não vou referir os nomes...) resolveram atacar o dito cujo. 

Estavam elas neste preparo, penduradas nos ramos altos, quando passa o Comandante da Base, com o seu séquito.

O facto é que o Comandante não reconheceu "as intrusas", pois se viam apenas as calças do camuflado, pelo que invectivou energicamente as duas "delinquentes", julgando que eram soldados da Polícia Aérea; e as duas no topo da árvore também não reconheceram a voz do Comandante, pelo que reagiram verbalmente em termos que não vou reproduzir aqui...

Tendo as partes procedido à identificação mútua, o incidente acabou por ficar sanado, pese embora o Comandante tenha prosseguido a sua viagem resmungando contra a lata daquele pessoal, sublinhado por um sorriso complacente dos militares que o acompanhavam.

Miguel Pessoa


2. Comentário do editor LG:

Miguel:  esta tua historieta pícara já "tem barbas", foi publicada por nós há 16 anos (!) (*)...

Como eu  te disse na altura ao telefone,  nada como o humor de caserna, coisa que é muito própria, específica, única, como a própria expressão indica, da malta da tropa...(**)

O humor (talvez mais do que a sorte) é que protege os audazes... Que me perdoem os nossos camaradas dos comandos, se lhes estou a glosar a divisa Audaces fortuna juvat [A sorte protege os audazes]...

O humor (temperado q.b.) era, na Guiné, na BA 12 ou em Bambadinca, o nosso talismã, a nossa mezinha, o nosso amuleto mágico, o nosso cinto de segurança, o nosso cordão detonante, a nossa "droga"... contra as balas de amigos e inimigos, contra a costureirinha, contra a Kalash, contra o RPG, contra o Strela (ainda não o havia no meu tempo, sou mais velhinho do que tu...), contra o tédio, contra o desânimo, contra o medo, contra a desesperança dos dias, contra as abelhas, contra os mosquitos, contra o cozinheiro, contra o vagomestre, contra o sargento, contra o RDM, contra o capitão, contra o comandante, contra o Com-Chefe, contra Deus e o Diabo...

O género, que tu cultivas tão bem, neste e noutros teus textos bem humoarados, não é fácil, é preciso muito talento para não se cair na grosseria, na boçalidade, na alarvice, registos com que muitas vezes, mas injustamente, se confunde o humor de caserna...

Em suma, não é para todos, o humor de casetna enquanto género literário, é para ti, é para o Alberto Branquinho, é para o José Ferreira da Silva, era para o "alfero Cabral", e poucos mais...

De facto, grande cultivador deste género era  o nosso saudoso Jorge Cabral (1943-2021) a quem nunca, por nunca, ouvi dizer um palavrão, tanto lá como cá.  

Tudo isto para te dizer que os tomates da horta do capelão, surripiados pelas nossas queridas enfermeiras paraquedistas, continuam a ser  uma história de cinco estrelas, que merece ser republicada (os "periquitos" nunca a leram...) e  figurar numa próxima antologia do nosso humor de caserna...

 Obrigado, a ti e à tua transmontana.

Um pretexto também para a sua reedição é o facto de eu ter  identificado o teu/vosso capelão: na época era o Abel Gonçalves. 

De facto, esteve 4 anos na BA 12 (de agosto de 1970 a agosto de 1974). Fez duas comissões no CTIG como capelão (a primeira no exército, em 1967/69). Publicou o  livro "Catarase" (edição de autor, 2007). Tem meia dúzia de referèncias no nosso blogue.  

Diz dele o nosso crítico literário, Beja Santos:     

"O então alferes capelão Abel Gonçalves gosta do pícaro, e não esconde certos embaraços por que passou. O caso do banho, nuzinho diante de todos, ele que estava marcado pelo seminário, onde não podiam tirar as calças, senão debaixo da roupa da cama.

Um dos alferes comete a brejeirice, diz-lhe: "Sabes o que estavam os soldados a dizer? Que viram os limões ao capelão!”.

Não ficou sem resposta: “É para que fiquem a saber que os capelães também têm dessa fruta!”. (...)



Infelizmente o Pe. Abel Gonçalbes já morreu, em 1 de abril de 2019, aos 87 anos. Era natural de Pias, conselho de Cinfães, distrito de Viseu. nasceu no dia 1 de novembro de 1931 e foi ordenado Padre no dia 15 de agosto de 1958.

Foi capelão do Exército, acabando por ser transferido para a Força Aérea Portuguesa em 24 de novembro de 1969. Era major, esteve na Chefia do Serviço de Assistência Religiosa da FAP. passou à reforma em 14 de agosto de 1981 (Fonte: Ordinariato Castrense).

Miguel e Giselda, não sei se o padre Abel Gonçalves chegou a ler esta história. Ele devia conhecer o nosso blogue, através do Beja Santos. De qualquer, a sua republicação é também uma homenagem a ele e  a todos os nossos capelães que passaram pelo CTIG: 113 no total, 102 no exército, 7 na FAP e 4 na Marinha.

Que Deus, Alá e os bons irãs o tenham em bom descanso, lá o assento etéreo para onde vão as nossas almas, dizem os crentes.
(**) Último poste da série > 12 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27311: Humor de caserna (215): A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz (José Teixeira, CCAÇ 2381, ex-1º cabo aux enf, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá , Empada, 1968/70)