O 1º cabo Paulo Ribeiro Semedo, cabo-verdiano de origem, pertenceu ao Pel Caç Nat 52, ao tempo que se refere esta crónica, tendo sido gravemente ferido pelo rebentamento de um dilagrama, no decurso da operação aqui relatada (e que curiosamente não consta da História do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70, unidade a que estava adido o Pel Caç Nat 52, desde finais de Setembro de 1968.
Texto e foto: ©
Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Texto recebido em 24 de Novembro de 2006. Post nº 25 da série Operação Macaréu à Vista, da autoria de Mário Beja Santos, ex-comandante do
Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).
Caro Luís, aqui vai, com fervor e muita amizade por ti e por todos, o meu débito semanal que andei a adiar como a pior das extracções de dentes. Talvez valha a pena avisar os nossos camaradas que eu já tinha escrito, noutras circunstâncias e com outros objectivos, um continho intitulado
O Presépio de Chicri, que aqui publicaste quando nos conhecemos (2).
Recordo-te que tens aí à mão a fotografia do Paulo Ribeiro Semedo, ainda não completamente cego e depois da cirurgia estética. Infelizmente, para a semana não poderei colaborar, tenho um curso de três dias em Bruxelas, não há problema pois tu tens um
stock de três textos.
Seguir-se-à o meu testemunho sobre o Natal em Missirá em 1968, pungente mas muito belo e a recordar-me sempre o Natal de 67, passado nos Arrifes (Ilha de S. Miguel) com soldados marienses.
Vou aproveitar as férias do Natal para organizar toda a minha memória do que aqui se vai contar sobre 1969. Como te disse, tu tens aí um textinho sobre as minhas primeiras impressões de Bissau, quando cheguei em Julho. Se a saga de depoimentos continuar, tu farias o favor de o publicar, pois a seguir tenho uma história tremenda passada no HM241.
Informo-te que estou a ler uma obra interessantíssima
A Guiné do século XVII ao século XIX de que mais tarde falarei aos nossos associados. Peço-te que não te esqueças que gostava muito de te visitar no dia 5, terça feira pelas 13horas. Antes dos Natais convencionais terei a maior satisfação em passar o nosso Natal de ex-soldados. Recebe um abraço do Mário.
O Presépio de Chicri
por Beja Santos
São duas da madrugada, estamos a formar na parada, feita a revista grito, em sinal de despedida
Culatra à retaguarda!, pois aprendi com a morte do Brandão que bala na câmara é um convite ao mais estúpido dos acidentes.
Enfim, saímos, o grupo de 30 homens vai atarantado e curioso, já que ao anoitecer fretei seis carregadores para levarem uma carga suplementar de granadas de bazuca e morteiro, cantis a duplicar, ração para dois dias. Não seguirão nesta patrulha nem o Saiegh nem o Domingos Ferreira que amanhã regressam às suas famílias, a sua comissão terminou.
A preparação do Natal de 1968, em Missirá
O Casanova fica a tomar conta de Missirá com a incumbência de se informar junto do Rebelo das transmissões o que se venha a passar na minha incursão pelas regiões de Chicri até Sinchâ Corubal. Noite calma, muito orvalhada por uma geada que seguramente irá garantir um dia tórrido.
Deito contas à vida sobre o deve e haver da semana. Ontem, achámos um sóbrio crucifixo de níquel nas escavações para um novo abrigo: seria de um soldado açoreano que aqui passou, estarei a receber algum aviso? O crucifixo está limpo, trago-o ao pescoço.
O Pimbas perguntou-me como seria possível travarmos as incursões do PAIGC em Mero. Dei a sugestão de se fazer o recenseamento de toda a população em Santa Helena e Mero, advertindo-o que mais tarde ou mais cedo vai haver tiroteios com os fornecedores e viajantes de ambos os lados.
Na CCS em Bambadinca tive que reivindicar mais bidões de petróleo, não sem ter recebido primeiro a acusação de que sou perdulário... Gostaria que esta malta funcionasse com os petromaxes para ter luz toda a noite. O
burrinho voltou a adoecer com uma doença de êmbolos. Veio cá o 1º cabo desampanador Alexandre que avisou que não passa noites em Missirá, terra de má fama.
Chegou há dias carta de Jolá Indjai, um soldado de quem ainda não vos falei. Exactamente na altura em que eu chegava a Missirá, o soldado Jolá era evacuado para Lisboa, vítima da tuberculose. Soubemos onde estava internado e a minha irmã visitava-o regularmente. Dava sinal de vida e anunciava a sua recuperação.
Em
Bafatá fiz as compras para os entes queridos e tudo já seguiu para Lisboa: tecidos bordados, roncos, lenços, pequenas esculturas. As aulas continuam com entusiasmo, temos um forno pronto, haverá cabrito assado no dia de Natal. Lisboa está a ser bombardeada diariamente com pedidos de guloseimas para o dia 25. Ninguém sai da Bambadinca para a metrópole sem missões distribuídas. Há almas generosas que irão mandar directamente broas castelares e de milho pagando pequenas fortunas dos portes.
Na parada, temos a linhas de um campo de futebol. E, aqui vai mais uma confissão íntima: o meu joelho direito tem horas que me faz a vida num calvário. O David Payne diagnosticou uma exostóse e exige que vá fazer rapidamente exames a Bissau (assim acontecerá em Fevereiro e serei operado em meados de Março). O meu entendimento com Lânsana é perfeito: passei-lhe o Antigo Testamento e ele deu-me a ler a
Surata do Coágulo, que tem o tema correspondente ao nosso Génesis. E mergulhei deslumbrado na leitura de
O Inverno do Nosso Descontentamento, de John Steinbeck (4).
Chichri: As apreensões do picador e guia Quebá Soncó
Conversei antes com Quebá Soncó, o nosso picador. Ter-lhe-ei dito algo como isto:
- Quebá, em Chicri há sinais evidentes de percursos usados pela gente de Madina [,base do PAIGC, a noroeste de Missirá]. Você e eu seguiremos à frente, com dois apontadores de dilagrama e o bazuqueiro. Não estou interessado em ir a Madina só com 30 homens e sem apoio aéreo. Mas iremos verificar a direcção dos trilhos, se vão directamente para Sinchá Corubal , se a velha picada de Saliquinhé ainda é usada, se há caminhos que passam à volta do rio de Biassa e se internam em direcção a
Quebá Jilã. Só quando descobrirmos estas direcções é que vale a pena emboscar à noite. Conto que o Quebá vai ser muito leal comigo, explica-me todos os sinais que vir no chão, qual a regularidade da presença humana. E agora vamos descansar até sairmos de madrugada.
Ao amanhecer, depois de ter flanqueado a estrada principal entre
Canturé e Gambana, atravessámos o rio e regressámos a Chicri. Era manifestamente uma terra próspera, uma imensa tabanca que mostrava restos de madeira como se gritasse pelo seu abandono. Era uma progressão lenta até chegar a um vasto terraço onde se via o refulgente Geba a serpentear em direcção a Bambadinca. Tínhamos detectado na última emboscada, entre estacas calcinadas, habilmente disfarçado por lajes de pedra um trilho batido que passava ao lado das ruínas de uma destilaria. De facto, Chicri tinha sido uma imponente tabanca onde fulas e mandingas cultivavam cereais e levavam o seu comércio de amendoim e óleo de palma até
S. Belchior e a norte, a Geba.
Procuro concentrar-me mas um fio do meu pensamento dispara permanentemente em direcção aos festejos do Natal. Em Bafatá, com a ajuda do Paulo Semedo e do Domingos Silva, tinha comprado as peças do presépio, tudo em barro simples, como ainda hoje se encontra nas feiras. Éramos meia dúzia de cristãos, a nossa festa seria partilhada com a comunidade muçulmana, haveria almoço no dia de Natal, troca de cumprimentos, o próprio régulo sugeria uma oração na mesquita.
Pois bem, pelas 7 da manhã cortei este fio ao pensamento, o dia já tinha despontado, subia a poalha luminosa entre os palmeirais, envolvendo a ampla clareira circundante de tons ígneos. Os indícios eram bem claros: restos de comida, a marca bem desenhada de sandálias de plástico, bagos de arroz. A incursão avançou para dentro de uma floresta galeria, a luz directa extinguiu-se, o silêncio esmagava a marcha. Quebá, eu, José Jamanca, Mamadu Djau, Paulo e Cibo formamos a vanguarda.
- Quebá, para onde vamos?. - Vejo medo, resistência no olhar de Quebá e ele responde:
- Parece que vamos para Sinchã Corubal.
Alferes, dá-me um tiro para acabarmos com tudo (Semedo)
O silêncio é atabafante, a claridade difusa, o trilho um verdadeiro meandro como, propositadamente, nos aconselhasse a desistir. Dos minutos chegámos às horas e um sol brutal anuncia-se nas nossas fardas suadas, nos nossos lábios secos. Pressinto que corremos o risco de um calcorrear sonâmbulo que nos poderá fazer perder a atenção e afrouxar a vigilância. Registo o último olhar súplice de Quebá como se pedisse que regressássemos prontamente. Eu sinto um aperto, pois não se ouve o piar das aves nem o restolhar dos animais. O Paulo Semedo pede um cigarro, avançamos um pouco mais e abruptamente, numa curva apertada da picada, Quebá e José Jamanca atiram-se para o chão e fico frente a frente, a pouco mais de 5 metros de um homem fardado de uma sarja amarela, um chapéu de
cowboy preso por atilhos. Olho-o nos seus olhos estuporados, pois ele está tão confuso como eu. Num segundo, a G3 aparece na frente do meu peito puxo a bala e ouvem-se dois tiros num só eco.
Aquele homem que eu nunca vira, rodopia com uma mão que segura o ombro, a outra larga a arma, o grito é dominado pela garganta. Eu continuei a disparar enquanto alguém o puxa para fora da picada. Segue-se um tiroteio caótico que eu não consigo controlar, e sou ultrapassado pelo bazuqueiro e os dois apontadores de dilagrama. É um fragor brutal, as folhas desabam, os ramos partem-se elevam-se vozes numa cacofonia acentuada. Vejo que os guerrilheiros retiram e grito para que comece a caçada , imponho ordem e a tropa parte em linha de batida.
Enquanto eu avaliava os estragos e apanhava uma arma abandonada, ouve-se um urro medonho, Mamadu Djau larga imprecante a bazuca e vejo Paulo Ribeiro Semedo, exímio apontador de dilagrama, numa rodilha de carne dilacerada, com os mais desencontrados veios de sangue, da cabeça aos pés. Alguém me sussurra ao ouvido:
- Enganou-se, meteu bala real na câmara, podia ter morrido logo.
Havia que sair daquela floresta e chamar um helicóptero bendito. As instruções foram sumárias: o Teixeira das transmissões retiraria com uma secção imediatamente até Chicri, nós seguiríamos mais lentamente com o ferido, atentos igualmente a uma possível perseguição da gente de Madina. Quando me ajoelho e lhe pego na cabeça, o Paulo bolsa o pedido entre os fios de sangue que lhes escorrem abundantes:
- Alferes, dá-me um tiro para acabarmos com tudo.
Afasto a arma, tiro-lhe as granadas, com auxílio de Mamadu Silá rasga-se o dólman esburacado, retiram-se os restos das botas. É um ferido muito grave, o braço esquerdo está todo rasgado, há buracos no peito, estilhaços nas pernas, no meio daquele mar de sangue lanço a água do cantil para o rosto do Paulo, uma das pálpebras desapareceu, julguei que estava completamente cego. O meu ferido agoniza num campo juncado de comida, panos, esteiras, granadas, cartucheiras, tudo o que os guerrilheiros abandonaram e a nossa tropa largou no meio do pânico.
Não pego em cabo-verdianos (Silá)
Pela primeira vez, eu vou sentir o que são os problemas tribais, aqueles que o próprio Saiegh me pedira para estar atento à sua evolução em Missirá e eu rejeitara. Ninguém quis pegar em Paulo Semedo. Como se fosse hoje, o gigante Mamadu Silá com a sua voz infantil disse-me claramente: - Não pego em cabo-verdianos.
Então, puxado por uma força que nunca possuí peguei-te e pus-te nas minhas costas enquanto tu insistias:
- Dá-me um tiro na cabeça, estou perdido, não quero ficar partido toda a vida.
Esta cena ser-me-à contada por muitos outros ao longo desta guerra: quem sente que vai morrer, pede que lhe abrevie o sofrimento. Assim é quando se vêm os intestinos a jorrar ou as pernas esfareladas depois da explosão de uma mina. Quem me vai ajudar nessa caminhada que ainda hoje guardo no corpo vão ser Mamadu Djau e Gibrilo Embaló.
Mamadu empurrava-te para não caíres enquanto eu te segurava o braço rasgado nos meus dentes, e Gibrilo prendia-te as pernas. Não sei quanto tempo demorámos até regressar ao anfiteatro de Chicri. No termo desta viagem alucinante depositei-o no chão e beijei-lhe a testa. Não me consigo mexer com as dores, a minha camisa está colada a muito sangue coagulado. O Teixeira grita para o rádio que permanece inerte. O sol é o do meio dia, abrasa no seu zénite. Tomo uma decisão de ir até Missirá buscar uma viatura e reforços, parto com seis homens enquanto a restante coluna leva o ferido transportado numa padiola.
Nunca mais farei este percurso tão rapidamente, cerca de 10 km em pouco mais de uma hora, avisto ofegante os cajueiros e entro a correr pelo arame farpado de Missirá. Anos depois, recordando estes momentos, e sabendo sempre que estas analogias são perigosas e até podem ser interpretadas como uma jactância teatral, tudo aquilo me parecia uma tragédia grega: acorri a gente de todos os lados, a viatura e a disponibilidade do Setúbal foram imediatas. Apareceram garrafões cheios de água, um colchão, medicamentos.
Pai, obrigado pela força que me deste (oração do comandante)
Enquanto escrevo este texto estou a ver Malã a avançar para mim e a segurar-me pelos ombros como se quisesse injectar coragem ou rezássemos juntos. E em minutos a viatura atirou-se em direcção a Canturé, enquanto o pedido de uma evacuação Y foi acusada por Bissau. Tu estás desmaiado quando és erguido para dentro da viatura e depositado num colchão. É nestes momentos de dor que somos assaltados por pensamento paradoxais. Enquanto te limpo o rosto e avalio a dimensão do teu corpo crucificado que não me sai da cabeça as figurinhas de barro de um presépio que tu compraste a meu lado e que não vais partilhar connosco.
Regressamos e quase em sintonia tu és levado para a salvação. Serás salvo a um preço medonho: o teu corpo ficará mutilado, ninguém saberá nunca a dimensão do teu sofrimento quando se olha a tua fotografia, ninguém dirá que ficaste irremediavelmente cego. À porta da minha morança, tal como farei depois dos acontecimentos de Março de 69, inclino a testa no adobe da entrada e rezo a Deus:
- Pai magnânimo, obrigado pela força que me deste nestes duros momentos. Permite que Te peça que dês a vida ao Paulo.
Cherno aparece e ajuda-me a retirar a camisa sanguinolenta. Tomo banho, deito-me na cama e choro lágrimas quentes enquanto o meu novo guarda costas me olha embaraçado. O nosso jantar vai ser muito amargo e feito de silêncios. Saio da messe, olho a noite estrelada e continuo a rezar. Como se fosse hoje, os sons do
Requiem de Mozart sobem os ares como se percebessem que a minha dor não tinha fim. Ao meu lado, um livrinho com poemas de Natal. As mãos folheiam o livro sem destino e súbito os olhos imobilizam-se num poema de Tomaz Kim, nome literário de um professor de Germânicas da Faculdade de Letras de Lisboa, Monteiro Grilo (5):
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites:
Tumba de carne viva em ódio amortalhada,
Anunciando sangue e pranto e morte.
Não seja esta noite, agora e sempre,
Igual às outras noites.
Amanhã, cheio de coragem, vamos continuar os preparativos para o Natal. O presépio será montado e o menino Deus louvado. Voltarei a Chicri em Janeiro, e mais sangue será derramado. Mas agora toda a minha energia e festividade estão polarizadas no Natal de Missirá. Eu vou contar.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post de 13 de Dezembro de 2006 >
Guiné 63/74 - P1365: Operação Macaréu à Vista (24): Discutindo os destinos do Cuor com o Coronel Hélio Felgas
(2) Vd. post de 21 de Junho de 2006 >
Guiné 63/74 - P888: Antologia (44): O presépio de Chicri (Beja Santos)
(3) Chicri: Vd.
carta de Bambadinca. Chicri fica(va) acima do Mato Cão, na margem direita do Rio Ganbana, afluente do Rio Geba.
(4)
John Steinbeck (1902-1968): escritor norte-americano, Prémio Nobel da Literatura em 1962. Nasceu na Califórnia, em Salinas. Morreu em Nova Iorque. O seu romance mais conhecid,
As Vinhas da Ira, é de 1939.
O Inverno do Nosso Descontentamento data de 1961. Considerado um escritor de esquerda, foi amigo de John Kennedy. Em 1967, foi repórter no Vietname. Causou polémica, ao defender a participação norte-americana numa guerra em que estiveram envolvidos os seus dois filhos...
(5) Vd.
Enciclopédia Universal da Literatura Portuguesa >
"Escritor português, natural do Lobito, Angola. Tomaz Kim, nome literário de Joaquim Fernandes Tomás Monteiro-Grillo, licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde leccionou.
"Viveu vários anos em Londres, mantendo um prolongado contacto com a cultura inglesa, experiência essa que influenciou a sua poesia. Como poeta escreveu os livros
Em Cada Dia Se Morre (1939),
Para a Nossa Iniciação (1940),
Os Quatro Cavaleiros [do Apocalipse] (1943),
Dia da Promissão (1945),
Flora e Fauna (1958) e
Exercícios Temporais (1966). A consciência social visível em muitos dos seus poemas alia-se, por vezes, a um sentimento de inquietação religiosa.
Dirigiu, juntamente com
José Blanc de Portugal e
Ruy Cinatti, a primeira série da revista
Cadernos de Poesia, publicada entre 1940 e 1942. Como
ensaísta publicou vários estudos e ensaios literários, além de ter traduzido diversos poetas e ficcionistas anglo-saxónicos, entre os quais T. S. Elliot".