Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969 > Passeio de piroga junto à ponte de madeira de Contuboel, sobre o Rio Geba. Furriéis milicianos Luís Manuel da Graça Henriques (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11, Cuntuboel e Piche; Xime e Enxalé, 1969):
Foto: © Luís Graça (2005)
Foto: © António Levezinho (2005)
Primeira parte de uma série de pequenas estórias - que intitulei estórias de Contuboel, em vez de eterno retorno (menos prosaico, menos bloguista, mais filosófico, mais metafórico), como vinha no mail que me foi enviado pelo meu amigo Renato Monteiro, o já famoso homem da piroga (1)...
RECEPÇÃO DOS INSTRUENDOS
São uma porrada deles. Para cima de centena e meia, perfilados na parada. Número excessivo mas justificável uma vez que, finda a instrução, serão repartidos por uma outra companhia, ainda na Lisboa (2), constituída tal como nós, apenas por quadros metropolitanos.
Vindos de Galomaro e de Gabu, que ainda não localizei no mapa; do Xime, de Bafatá e de Bambadinca por onde passamos sem que me ocorresse bater uma única chapa, e ainda das tabancas que povoam a região de Contuboel.
Mais fulas do que mandingas, perfilhando todos a crença em Alá, mas também o princípio que consagra para todo o sempre um Portugal daquém e além mar uno e indivisível, coisa para mim demasiado estranha ao dar conta dos raros falantes da nossa língua e dos muitos que a entendem menos do que a Segunda, a minha lavadeira.
Acaso não houvesse entre eles um Carlos, fula, de Bafatá, único cristão e com nome português, excepcionalmente dotado na comunicação com as línguas nativas, incluindo o crioulo - o esperanto da Guiné - para transmitir-lhes as nossas ordens, recomendações e outras tretas, bem poderíamos enterrar as palavras no bolso até às calendas, ir pregar para o deserto ou aos peixinhos do António Vieira.
Sequer a ordem de marchar (acaso fossem capazes de tal acrobática proeza) a partir da parada até uma área arborizada próxima do aquartelamento, utilizada para futura aplicação dos exercícios militares, é compreendida pela generalidade dos nossos instruendos.
Coubesse o mar num concha cavada na areia que, por certo, seria igualmente possível olhar para estes homens e reconhecê-los como nossos compatrícios.
E coubesse em mim próprio este sentimento absurdo, maior do que eu, que tanto me leva à rejeição deste mundo como, no instante seguinte, ao desejo de nele me confundir.
Como se coexistissem em mim, duas entidades antagónicas numa só. Sem a santíssima trindade em que não acredito. E nunca, espero bem, vir a pirar dos cornos.
Renato Monteiro
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Notas de L.G.
(1) Vd. posts de
23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)
23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P898: Saudades do meu amigo Renato Monteiro (CART 2479/CART 11, Contuboel, Maio/Junho de 1969)
(2) CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12 (Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971). O Renato deu a recruta aos meus futuros soldados. Nós demos-lhes apenas a instrução de especialidade e treino operacional: vd. posts de
28 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969)
31 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXI: As grandes operações de limpeza (Op Lança Afiada, Março de 1969)
(...) "Capri, c’est fini!... Ainda te lembras da velha canção do verão de há três anos, em Lisboa ? Pois é, estão a chegar ao fim as férias de Contuboel, o dolce far niente da tropa tropical... Cheguei à Guiné há mês mês e meio. E ainda não vi, não senti nem cheirei a guerra (a não ser talvez no percurso, em LDG, no Rio Geba, a caminho do Xime e depois no troço Xime-Bambadinca, no dia da nossa partida de Bissau para Contuboel: confesso que havia alguma tensão nos rotos dos periquitos...).
(...) "Acabámos os exercícios finais da instrução de especialidade, que decorreram entre 6 e 12 de Julho, a 10 km a norte de Contuboel. Recebemos a visita do homem grande de Bissau. Consta que já nos deu destino, a nós e aos nossos queridos nharros.
"Acabaram-se os passeios tranquilos pelo Rio Geba, de piroga. As conversas, ao fim da tarde, debaixo do poilão, com os djubis, as bajudas e as mulheres grandes e os homens grandes. As conversas intelectuais com o meu amigo Monteiro. Os meus vizinhos aldeões com quem gostava de conversar. As pacatas idas às hortas das proximidades para comprar bananas e abacaxis...
"Vou ter saudades de Contuboel, das frondosas margens do Geba, da paisagem luxuriante, das amáveis lavadeiras mandingas, de mama firme, que encontrávamos pelo caminho. Mas, como diz a canção, é muito pouco provável cá um dia voltar. Em contrapartida não penso neste momento em Lisboa nem no meu regresso. Contuboel acabou: há agora muitos milhares de quilómetros para palmilhar, numa prova que é, para mim, para todos nós, o grande teste de resistência... e de sobrevivência" (...).
21 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXXV: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia)
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