terça-feira, 25 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2129: Quero depositar um ramo de flores em Gandembel (José Teixeira)



Guiné > Região de Quínara > Buba > José Teixeira com o seu conterrâneo Mário Pinto (da CCAÇ 2317, Gandembel , 1968/69). Na primeira foto, o obus 10,5 e ao fundo o rio (... Bafatá).


Edição: CV

1. O Post 2117 - Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (10) - O terror das Colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje) (1), inspirou um trabalho do nosso camarada José Teixeira, ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada , (1968/70).

Fotos: © José Teixeira (2007). Direitos reservados

Mensagem de 24 de Setembro de 2007

Camaradas editores:

Sáude, paz e felicidade

O Idálio Reis continua a sua estória sobre Gandembel (1). É impressionante a forma como descreve a sua odiseia. Creio que ninguém ficou indiferente.

Junto mais um pequeno texto. Foi esta a forma que encontrei para lhe testemunhar a minha admiração e gratidão.

Para ele um grande abraço.

Junto também uma foto tirada em Buba em que estou eu e o meu conterrâneo Mário Pinto, cujo nome está mencionado no texto.

Fraternal abraço do
J.Teixeira



2. Quero voltar a Gandembel. Quero depositar um ramo de flores em Gandembel.
por Zé Teixeira

Ao ler o último texto do querido amigo Idálio Reis sobre a odisseia Gandembel (1), quero curvar-me em profunda homenagem aos camaradas, dele especialmente e nossos também, que regaram com o seu sangue aquela terra vermelha e inóspita à altura, e que hoje tão bem nos recebe. Os que deixaram lá a sua jovem vida e os que sofreram na carne as agruras do sofrimento na pele e no espírito, e que ainda hoje, possivelmente, não se conseguiram libertar das marcas que lhe ficaram.

Quero felicitá-lo pela coragem de passar ao papel para a história futura, num português profundo de fácil leitura e compreensão, a verdadeira história da odisseia que a CCAÇ 2317 e tantas outras que com ela partilharam mais directa ou indirectamente a aventura, onde eu ouso incluir-me também, perdoem-me a imodéstia (2).

Recordações

O meu espírito vagueou teimosamente pelas picadas que vão de Buba a Gandembel, passando pela bolanha dos passarinhos, a terrível bolanha , ponto de encontro com o IN. Tão verdejante e linda que era, mas tão temida.

Mesmo ali ao lado estava Sare Tuto, (soube-o em 2005 quando lá voltei) base inimiga, de onde partiam os guerrilheiros que gostavam de nos dar as boas-vindas à sua maneira.

Seguia-se Nhala, pequena tabanca que nos servia de apoio e possibilitava uma pausa para descanso, outras tabancas perdidas no mapa, abandonadas e ou destruídas como Samba Sábali e Uane, até se chegar a Mampatá Forreá.

Para tentar enganar o IN, por vezes desviávamos caminho por Sinchâ Cherno e Bolola, voltando de novo este local magnifico (Mampatá), com uma população maravilhosa e acolhedora onde passei os seis melhores meses da minha história de guerra, no centro da guerra.

Quer de um caminho (picada) quer do outro, vêm-me à memória, tristes recordações de emboscadas, minas e mortes, sobretudo as mortes de um lado e do outro. Afloram-me dois momentos terríveis:

O camarada da Companhia dos Lenços Azuis que vi morrer, porque teve o azar de estar na 5ª viatura da coluna, quando esta pisou uma [mina] A/C. Estava a comunicar via rádio (era a viatura do rádio e ele o rádiotelegrafista) para Buba a informar que tínhamos passado a bolanha antes de Sinchã Cherno, onde se teve de montar uma ponte, que nos acompanhava sempre, para, como em Changue Laia, ultrapassarmos um rio, que em época de chuvas nos impedia o caminho. Até aquele momento não tinha havido azar, a não ser um ataque de abelhas. Foi aquele o primeiro terrível momento que nos levou uma vida jovem, que eu e os companheiros de jornada não conseguimos salvar por falta de assistência hospitalar. Teve uma hemorragia interna que lhe roubou a vida em poucas horas. Outros momentos de azar se seguiram nesta coluna, que fez cerca de trinta quilómetros em 36 horas, com minas e emboscadas, mortos e feridos, onde eu definitivamente me zanguei com a D.G3ertrudes.

O amargo olhar para o milícia que ao regressar de uma outra coluna, pela mesma picada, trazia como troféu, as orelhas dos inimigos que abatera num combate feroz, em que nos valeu a coragem e determinação do seu grupo, ao avançar de peito erguido na direcção do IN, que flagelava a coluna violentamente.

De Mampatá até Aldeia Formosa, respirava-se fundo. O medo era esbatido pela segurança de duas pequenas tabancas, Afia e Bakar Dado, perdidas na estrada que lhe davam vida e espantavam o Inimigo, até ao dia em que esta última é visitada, queimada e destruída pelo IN.

Um ou dois dias depois partia-se de novo a caminho de Gandembel. Os mesmos homens, as mesmas viaturas que nem chegavam a descarregar. Até Mampatá, apesar de tudo, era caminho de esperança. Depois seguia-se por Chamarra, Changue Laia, Ponte Balana. Por fim, Gandembel das morteiradas que normalmente vinham logo de seguida, ou pelo menos uns tiritos de costureirinha, como forma de o IN nos lembrar que estavam por perto, mesmo quando estrategicamente não nos esperava pelo caminho ou não nos montava as terríveis armadilhas.

Eu estive lá. Eu vivi de perto. Eu sofri muitos destes momentos dramáticos. Eu tropecei nos buracos dos fornilhos onde caíram os camaradas. Onde iam caindo uns, logo outros se levantavam de dentes cerrados a lutar pela vida que lhes restava. O espanto da minha gente ao ver os buracos onde cabiam GMCs.

Ao chegar a Gandembel pela primeira vez, avistei um colega da escola primária e grande amigo – o Mário Pinto. Corri para ele pela Parada fora. Estranhei gestos e gritos de camaradas que não conhecia:
- Sai daí, encosta-te a um abrigo!

A justificação veio pouco depois. Ninguém atravessava a Parada em linha recta, mas sim a coberto da protecção dos abrigos colocados estrategicamente. O IN tinha por hábito fazer tiro ao alvo, algures do lado de lá da fronteira, empoleirado em árvores ou então enviava de vez em quando umas morteiradas, como aconteceu momentos depois.

Martela-me a memória com a mensagem arrepiante de rádio, depois de largos momentos angustiantes para mim, ao ouvir em Mampatá o fogo cerrado, indicativo de que uma das colunas tinha caído numa emboscada. Não sabia se era a coluna oriunda de Aldeia Formosa se a de Gandembel que estava a beber pela medida grande .
Não me tocara a má sorte de acompanhar esta coluna. Acompanhei-a à distância.

De Mampatá ouvi, via rádio, a mensagem desesperante, a qual foi como que uma ordem de retirada para a minha Companhia, que avançava com a coluna de mantimentos.
-Retirem ! Retirem! Voltem para trás, senão ficamos cá todos. Nós vamos retirar. Temos 4 mortos e manga de feridos. Retirem!(*)

A retirada foi a sorte dos meus camaradas, estavam lá semeadas 68 minas A/P que foram levantadas quinze dias depois.

Diz o Idálio que estranhamente houve um hiato nas colunas, começando o abastecimento a fazer- se por via aérea.Tal aconteceu de facto, mas houve razões concretas que ele naturalmente desconhece.

Como é sabido, o Spínola tinha poderes para nomear os comandantes dos Sub-Sectores, cabendo a Lisboa nomear os comandantes de Sector. Buba era um Sector, Aldeia Formosa um Sub-Sector, comandado pelo seu homem de confiança, Major Azeredo Leme.


Por que acabaram as colunas no tempo das chuvas

Dá-se uma coluna de Aldeia para Buba, em plena época das chuvas, com a estrada intragável. O comandante da coluna faz saber ao Comandante do Sector de Buba que não havia condições para a coluna de regresso se fazer, face ao estado do terreno.
Perante a ordem de seguir em frente, enviou um rádio ao Major Azeredo Leme, contando-lhe a realidade e a decisão superior que teria de cumprir. Este comunicou para o homem grande. O resultado foi aparecer em Buba uma ordem para a coluna se fazer, devendo o Comandante de Sector seguir na mesma para constatar a realidade do terreno.

Ao fim da tarde, lá chegou a coluna de regresso a Mampatá, onde eu estava. Com ela vinha um sujeito gorducho e cansado, era o Coronel Comandante, cuja primeira atitude, ao chegar Aldeia Formosa, foi decretar que até ao fim das chuvas não haveria mais colunas.

Quantas vidas se pouparam ? Não sei. Sei sim que a região acalmou um pouco e não foram só os Páras que contribuíram, sem lhe querer tirar o mérito, pois foram na realidade, com a sua acção, um factor dissuasivo e um travão à acção do inimigo.

Creio que os camaradas que viveram esta terrível odisseia, os que lá deixaram a vida e todos os outros, mesmo os que regressaram incólumes, merecem bem que seja colocado em Gandembel um ramo de flores em sua memória e na memória de todos os que de um lado ou do outro sofreram por Gandembel.

Em Fevereiro do próximo ano conto voltar lá, agora em paz, à procura da minha paz interior. Quero depositar um ramo de flores em Gandembel que reflicta a vida e a esperança de um punhado de jovens que, só e apenas, sonhavam em regressar a casa sãos e salvos, e a vida e esperança de um povo que lutava pela liberdade e felicidade a que tinham direito, mas que passados tantos anos, ainda se encontram tão longe de serem alcançadas.

José Teixeira

(*) Afinal foram 5 mortos. Um foi localizado quinze dias depois, por um camarada meu na célebre coluna apoiada pelos Páras, onde levantámos 68 minas A/P.

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Notas de CV:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007>Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(2) Vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2128: Bibliografia de uma guerra (18): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte II)




Uma imagem repetida vezes sem conta.
Da CArt 3492. Álvaro Basto

BARCAS NOVAS

Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de armas
Lisboa tem barcas novas
agora lavradas de homens
Barcas novas
levam guerra
As armas não lavram terra
São de guerra as barcas novas
ao mar mandadas com homens
Barcas novas são mandadas sobre o mar
Não lavram terra com armas
os homens
Nelas mandaram meter
os homens com sua guerra
Ao mar mandaram as barcas
novas lavradas de armas
em Lisboa sobre o mar
armas novas são mandadas

Fiama, 1966
__________

Porquê tantas vidas, em tantas naus, durante tantos anos?

"Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países". Aristides Pereira (1).

As primeiras denúncias internacionais sobre o colonialismo na Guiné, os caminhos de Amílcar Cabral e dos seus companheiros em direcção à independência, os esforços, independentemente do que se possa dizer, de Rafael Barbosa e Fernando Fortes (*) pela emancipação dos seus povos, o espectro do Pindjiguiti sempre a pairar, a luta pela unidade, a proliferação de partidos, uniões e grupos, e a projecção que o PAIGC alcançou internacionalmente, é o resumo do que hoje tratamos.

A Aristides Pereira e à Editorial Notícias, a vénia que é devida. E o agradecimento, que lhes é devido também (**), pela oportunidade que nos dão de melhor compreendermos as Histórias de três países.

V. Briote, co-editor
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A luta clandestina na Guiné

As primeiras denúncias internacionais sobre o colonialismo português, surgiram em 1959/60, e foram feitas em Londres por Basil Davidson (1) e Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral.

Amílcar Cabral, logo após o regresso à Guiné em 1952, tentou criar um clube desportivo e cultural com a colaboração de alguns elementos da pequena burguesia (2), movimentação que despertou suspeitas nas autoridades coloniais e levou à sua interdição de permanecer no território, movimentação essa que, parece, ter estado na origem da instalação de um posto da PIDE em Bissau.

Após a fundação do PAI (Partido Africano para a Independência), em Setembro de 1956, as primeiras células foram criadas em Bissau, Bolama e Bafatá, recorrendo a alguns elementos da pequena burguesia aí instalados. Para apalpar o terreno, começaram por apresentar pequenas reivindicações de ordem social, e foram difundindo o sentimento nacionalista entre os assalariados e os trabalhadores dos transportes fluviais.

A independência do Gana em 1957 e as perspectivas da Guiné-Conacri e do Senegal se tornarem a breve prazo independentes, “adubou” o terreno e chegou a pensar-se que, à semelhança do que estava a acontecer com os vizinhos, também a Guiné-Bissau se iria tornar independente sem necessidade do recurso à luta armada.

Amílcar Cabral e Rafael Barbosa nos fins dos anos 50

A partir de 1958, numerosos jovens guineenses foram para o Senegal e para a Guiné-Conacri, em busca de melhores condições de vida.
Numa primeira fase, em Conacri, o médico são-tomense Hugo Azancot de Menezes acolheu-os e enquadrou-os.
Com o acordo das autoridades de Conacri, Azancot funda o Movimento de Libertação dos Territórios sob a Dominação Portuguesa em 1959. Mais tarde, essa autorização viria a ser-lhe retirada, com o argumento, pensa-se, de manter uma estratégia errática.

Logo nesse mesmo ano, a Rádio Nacional da Guiné-Conacri pôs ao dispor do Movimento uma hora semanal de emissão. O programa emitido em crioulo e em algumas línguas locais, para além do português, ganhou rápida audiência. Era um programa cujo conteúdo se baseava em informações que provinham do próprio território da Guiné, transmitidas principalmente por Rafael Barbosa a Domingos Pina Araújo, na altura residente em Koldá (Senegal), que as fazia chegar a Conacri.
Entretanto, em Bissau, movidos pela expectativa do acesso a uma rápida independência, Rafael Barbosa e Epifânio Amado transformaram o MLG em MLCG (Movimento de Libertação da Guiné e Cabo Verde), a que aderiram Inácio Semedo, Fernando Fortes a outros elementos já pertencentes ao MLG.
Os incidentes do Pindjiguiti acabaram por reforçar o sentimento nacionalista. Aproveitando esse acontecimento, Amílcar Cabral passou uns dias em Bissau, entre 14 e 21 de Setembro, tendo acordado com Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa e João da Silva Rosa, que largaria tudo e seguiria para a República da Guiné, de onde enviaria directrizes.

A unidade foi difícil desde o início. Os primeiros sinais de desconfiança do hegemonismo dos cabo-verdianos na luta de emancipação, traduziram-se na ruptura entre o PAI e o MLGC protagonizada por José Francisco Gomes “Maneta”, na altura principal dirigente do MLGC, que interditou as actividades de Rafael Barbosa, acusando-o de vender a Guiné aos Cabo-Verdianos.

Nessa altura, o cruzamento de informações falsas é impressionante.
Aristides Pereira escreve: “Na altura, Maneta chegou a abdicar das funções de presidente em favor de Fernando Fortes, tendo novamente chamado a si a presidência quando se deu conta de que Rafael Barbosa e Fernando Fortes estavam sintonizados. (…) Maneta foi informado por carta da ida de Rafael Barbosa a Dacar e dos contactos que aí manteve com Amílcar. Nessa mesma carta, Vicente Có informa falsamente Maneta que o PAIGC já tinha formado um governo só de cabo-verdianos para mandarem numa Guiné independente…”

Entre 1958 e 1961, alguns dirigentes do MLG e do PAI partilharam o mesmo espaço político e alguns acreditavam mesmo que, a curto prazo, as negociações para a independência iriam ter lugar. No entanto vários acontecimentos levaram a uma onda de repressão por parte das autoridades coloniais: a mobilização crescente no interior da Guiné, as mensagens ao governo português exigindo o início das conversações, as primeiras acções armadas do MLG de François Mendy no norte da Guiné e o assalto às prisões de Luanda por nacionalistas angolanos.

As detenções efectuadas pela PIDE em 1961 e 1962 obrigaram o PAI à clandestinidade e ao desmantelamento do MLG em Bissau, levando à dispersão de alguns destacados dirigentes, que se fixaram no Senegal e na República da Guiné.

Entretanto, em Conacri, Amílcar estruturava o PAI e fazia-o crescer. Criou o Lar dos Combatentes (3) para receber os jovens enviados de Bissau por Rafael Barbosa, que depressa ficou sobrelotado.

Depois de alguns esforços de elementos do MLG, nomeadamente por parte do “Maneta”, tentando desacreditar Amílcar Cabral junto das autoridades da República da Guiné-Conacri, tarefa que se revelou infrutífera, o PAIGC acabou por convencer Sekou Touré da seriedade da sua luta.

“Maneta”, impedido de regressar a Bissau, acabou por se estabelecer em Dacar, juntando-se aos elementos do MLG aí residentes, continuando a combater mais o PAIGC que o colonialismo português.

Em Abril de 1961, deu-se a primeira grande onda de prisões feita pela PIDE. José Lacerda, João da Silva Rosa, Paulo Fernandes, Tomás Cabral de Almada, Alfredo d’Alva, Elisée Turpin, Paulo Gomes Fernandes, Nicandro Barreto, Epifânio Souto Amado, Ladislau Justado, Fernando Fortes, entre outros, foram detidos.

Rafael Barbosa entrou na clandestinidade, vindo a ser preso em Fevereiro de 1962, juntamente com outros, durante um assalto da PIDE à sede clandestina do PAIGC, para os lados de Bissalanca, ficando desmantelada a rede clandestina do partido, tendo ainda sido apreendidos numerosos documentos e algumas armas.

Uma segunda vaga de prisões atingiu Momo Turé, Jorge Monteiro, Constantino Lopes da Costa e outros. Alguns foram desterrados para o Tarrafal. Ao Rafael Barbosa, a troco de colaboração, ao que se diz, foi-lhe fixada residência em Bissau, com a obrigatoriedade de se apresentar diariamente à polícia.
Em 1964, Arnaldo Shultz, desaconselhou a restituição à liberdade dos arguidos, acabando por lhes serem fixadas residência em colónias penais durante quatro anos, uns na Ilha das Galinhas, outros em Mocâmedes, Angola, no campo de S. Nicolau.

Em 3 de Agosto, é criada a FLING, enquanto Amílcar Cabral prosseguia a tarefa de consolidação do PAIGC em Conacri, ganhando dia a dia a confiança das autoridades da República da Guiné.

Em 1962, sob a influência de César Alvarenga, é formada a UNPG (União dos Povos da Guiné). Enquanto o PAIGC se decide pela acção armada no sul da Guiné, interrompendo estradas e cortando os fios telefónicos, a UNPG dirigiu uma carta ao governo colonial, pedindo autonomia e soberania.
O Presidente do Conselho Português recebeu em Lisboa, em 1963, Benjamim Pinto Bull, como dirigente da UNPG.


Benjamim Pinto Bull

Salazar, de início disponível para o diálogo, acabou, posteriormente, por o inviabilizar. Assim, enquanto a UNPG perdia credibilidade, o PAIGC, interna e externamente via reafirmada a sua.

Lendo Aristides Pereira fica-se com uma ideia bem mais clara desse conturbado período, em busca da unidade da luta pela independência do território sob dominação portuguesa:
“ (…) é difícil, senão mesmo impossível, a reconstituição do ambiente em que se moviam, na década de 60, os movimentos de libertação tanto na República da Guiné como no Senegal, na medida em que, por ali pulularam inúmeros partidos e movimentos que a pretexto de tudo e de nada eram fundados e refundidos. Ainda mais difícil é a análise do verdadeiro alcance das acções desses movimentos, devido ao seu elevado número e à sua divisão em “raças” ou “religiões”. Acresce ainda o facto de que vários dirigentes desses agrupamentos aparecerem referenciados em várias formações políticas ao mesmo tempo e às vezes até em formações políticas rivais.

Esse ambiente de desorientação foi agravado quando, em face do avanço da luta, a 29 de Setembro de 1964, as autoridades de Senegal reconheceram o PAIGC como o único movimento representante do povo da Guiné, dando-lhe a facilidade de desenvolver actividades políticas no Senegal, proibindo, no entanto, terminantemente o trânsito e a permanência de material de guerra no seu território”.

Numerosos foram os elementos recrutados, que pela influência de Rafael Barbosa, em muito influenciaram o trabalho de mobilização do PAIGC, permitindo alargar a rede clandestina a outros pontos do território.
Grande parte desta gente acabou, no entanto, por ser presa, formando o primeiro grupo de nacionalistas a ser enviado para a Ilha das Galinhas.
Gerações posteriores de combatentes tiveram sempre por detrás a mão de Rafael Barbosa, afirma Aristides Pereira.

Assim aconteceu com o grupo de jovens do grupo musical “Cobiana Djazz” (4) (José Carlos Schwartz, Aliu Bari, Duco Castro Fernandes, Isaac Dias Ferreira, Firmino Cabral, Januário Sano e João Saul de Carvalho Neves), que, de forma subtil, foi consciencializando as populações através das suas criações musicais.

A afirmação internacional do PAIGC

Em Dezembro de 1960, realizou-se em Londres uma conferência na qual participaram pela primeira vez as organizações anti-colonialistas – MPLA, PAI e Goa League – representadas por Mário de Andrade, Viriato Cruz, Américo Boa Vida, João Cabral e Aristides Pereira.

Após a extinção do Movimento para a Independência dos Territórios sob Dominação Portuguesa, Amílcar Cabral com outros camaradas criou em Conacri o MLGCV (5).

No Lar dos Combatentes, em Conacri, finda a formação ideológica e política, os voluntários eram enviados para o interior da Guiné, com o objectivo de mobilizar os camponeses.

Foi sob a responsabilidade de Malan Sanhá que entraram no território a quase totalidade das armas que o PAIGC fez sair clandestinamente do porto de Conacri, as mesmas que serviram para o ataque ao quartel de Tite em 23 de Janeiro de 1963. Diz Aristides Pereira, que nesta transferência de armas, houve baixas de importantes responsáveis do PAIGC, como foi o caso de Vitorino Costa, que “encontrando-se cercado pelo exército colonial e na tentativa heróica de salvar os camaradas que com ele agiam na região de Quinara, sucumbiu perante as balas inimigas” (Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta,…pág. 148).
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Fotos e notas de rodapé extraídas ou resumidas do "Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países", de Aristides Pereira, Editorial Notícias

(*) Fernando Fortes, ao que se sabe, envolveu-se em tudo o que fosse partido ou movimento contra a presença portuguesa na Guiné.

(**) Destaque para o trabalho que Leopoldo Amado tem vindo a desenvolver como historiador da Guiné e de Cabo Verde, em especial sobre os anos recentes.

(1) Escritor e africanista inglês

(2) Martinho Ramos, Isidoro Ramos, João Vaz, Elisée Turpin, José M. Davyes, Godofredo de Sousa, Crates Nunes e Estêvão da Silva

(3) “Para a luta de libertação, eu enviei mais de 500 pessoas. Quase toda a malta que saiu daqui de Bissau eu é que mandei. Umaro Djaló, Constantino Teixeira, Buscardini, Chico Mendes, Malan Sanha, Rui Djassi, Vitorino Costa, Domingos Ramos, Osvaldo Vieira, Tiago Aleluia Lopes, Juvêncio Gomes, etc….”

(4) José Carlos Schwartz (1949/1977), considerado o pioneiro da música moderna guineense, esteve preso na ilha das Galinhas. Após a independência dirigiu o Departamento de Arte e Cultura do Comissariado da Juventude e Desportos e, mais tarde, foi encarregado de negócios da Guiné-Bissau em Cuba, onde morreu vítima de um acidente de aviação.

(5) “Movimento para a Libertação da Guiné e Cabo Verde”, 1960

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Nota de vb:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - P2114: Bibliografia de uma guerra (17): Guiné-Bissau e Cabo Verde, uma luta, um partido, dois países (Parte I)

Guiné 63/74 - P2127: História de vida (5): Sérgio Neves, meu irmão, um homem bom (Tino Neves)

Moçambique > 1968 > Sargento Miliciano Sérgio Neves (esteve anteriormente na Guiné, na CCAÇ 674, como furriel miliciano (Zona Leste, Fajonquito, 1964). Trabalhou no Arsenal do Alfeite. Morreu em 1997.

Foto: © Tino Neves (2007). Direitos reservados.



1. Texto do Tino Neves, ex-1º Cabo Escriturário, CCS/BCAÇ 2893, Nova Lamego (Gabu), 1969/71). Enviado em 11 de Setembro de 2007:

Camaradas da Tabanca Grande:

Aqui vai mais umas pequenas histórias sobre o meu irmão Sérgio Faustino das Neves, Furriel Miliciano na Guiné (Fajonquito, 1964/66), e 2º. Sargento Miliciano em Moçambique (Lourenço Marques, Mueda, Vila Cabral, Nampula, 1968/70) (1).

Não diria que são histórias, mas sim uns pequenos apontamentos, sobre as suas qualidades como homem.


(A)Começo por pela mais recente, cá em Portugal nos anos 90.


Estava o meu irmão a viver no Algarve, em Luz de Tavira, com os meus pais, e tendo nessa altura muita dificuldade em arranjar trabalho, pois como eu já devo ter dado a entender numa história atrás contada, o meu irmão tinha um grande problema com o álcool, não podia beber sequer um dedal do mesmo, que ficava logo grogue mas quando trabalhava ou estava a fazer alguma coisa com responsabilidade, conseguia aguentar várias semanas ou até meses sem beber.

Em dada altura, surgiu a oportunidade de trabalhar numa conhecida empresa de construções de Abrantes, que estava na construção de estradas naquela zona, e como o meu irmão tinha a carta de condução profissional, para todos os veículos, conseguiu arranjar para andar com um camião de combustíveis para abastecer as máquinas a operar.

Estava a correr tudo bem, estava todo o mundo contente com ele, até que um dia o meu irmão assistiu a uma discussão entre o encarregado das obras, o responsável, (o Big Boss) ou lá quem era, com um preto da Guiné, pois ele tentava-se exprimir através do crioulo da Guiné, que o meu irmão sabia falar muito bem.

E o que ele ouviu, não gostou nada, por isso no final do dia foi procurar saber mais a fundo o que se teria passado, e procurou primeiro junto do Guineense, tendo constatado o seguinte: (i) que era um grupo de cerca de 12 guineenses, (ii) que estavam hospedados nuns contentores sem condições algumas, e (iii) que o Big Boss só lhes pagava aquilo que queria e quando queria, (iv) que era precisamente isso que o guineense estava a pedir, o seu dinheiro, porque estava sem patacão, assim como ele e todos os outros (que na maioria deles não falavam português nem sequer crioulo, e eram todos eles jovens).

O meu irmão, em face disso, resolveu ir pedir explicações ao Sr. Big Boss, e dizer-lhe que ele não podia tratar assim aqueles homens, e que devia pagar todo o dinheiro em falta a todos eles, se não… E como o Sr. Big Boss era o Big Boss, respondeu à letra, e a partir dali gerou-se uma forte discussão em que o meu irmão lhe chamou todos os nomes, menos de Santinho.

Não tenho presente quando, mas passados poucos dias o Sr. Big Boss arranjou um pretexto para despedir o meu irmão.

Conclusão: O meu irmão, mesmo sabendo que poria em risco o seu emprego, não hesitou em defender os pobre guineenses de serem explorados daquela maneira. Quando ele via uma injustiça, ele não pensava duas vezes, para ir em socorro do injustiçado.


(B) O segundo apontamento, foi em Lourenço Marques, no período em que ele deu instrução militar aos mancebos de lá.


Num determinado dia em que esteve de Sargento de Dia, ao passar junto das celas dos presos, ouviu o som de alguém que estava a soluçar (chorar), e foi ver o que se passava. Era um soldado recruta, que tinha recebido um recado a dizer que a mulher estava na Maternidade, para ter o filho, e que ele gostava muito de estar presente nesse momento inesquecível, e não podia por estar preso.

O meu irmão, resolveu o assunto, fazendo um trato com ele, de estar de volta às 00:00 horas (meia noite).

Promessa cumprida e agradecida, mas chegou aos ouvidos de um tenente, que não gostou do que o meu irmão fez, e resolveu fazer queixa do meu irmão.


(C)E por última, numa povoação chamada Meponda, perto de Mueda (julgo eu), onde ele esteve aquartelado.


Perto de Meponda há ou havia uma ponte, que tinha que ser protegida, e iam para lá destacados durante um mês, não sei se um Grupo de Combate ou Secção ou Pelotão, só sei que era a vez dos homens do meu irmão.

Pelo facto de a ponte ficar num sítio isolado, os homens andavam à vontade, de tronco nu, só de calções.

Um determinado dia aparece lá um Major que, ao ver os homens naquele estado, deu logo ordem de prisão ao meu irmão.

Nesse mesmo dia à noite, alguém bate à porta do Sr. Major, e este ao abrir a porta depara com um inesperado espectáculo, à sua frente:

Todo o pessoal fardado à maneira e armado até aos dentes, de tudo o que havia e mais potente, apontando para a porta do Sr. Major, e um dos elementos gritava:
- Solta já o nosso sargento da prisão ou arrasamos já isto tudo!

Escusado será dizer, qual foi a opção escolhida pelo Sr. Major.

Conclusão: Não tenho comentários.

Um Abraço

Tino Neves
Almada

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts de:

6 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2032: Estórias de vida (4): Ainda sobre o meu irmão, o Srgt Mil Sérgio Neves, que foi amigo em Moçambique de Daniel Roxo (Tino Neves)

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1933: Questões politicamente (in)correctas (30): os cordeiros e os lobos de Mueda ou a adrenalina da guerra (Luís Graça)

6 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1928: Estórias de vida (3): Sérgio Neves, meu irmão: em Moçambique, o Mercenário, amigo do lendário Daniel Roxo (Tino Neves)

14 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1367: Concurso O Melhor Bagabaga (3): Fajonquito (1964) (Tino Neves)

Guiné 63/74 - P2126: Documentos (4): PAIGC - Instrução, táctica e logística (2): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (II Parte): Instrução militar (A. Marques Lopes)

Uma das imagens mais conhecidas do pai da nacionalidade guineense e caboverdiana, Amílcar Cabral (1924-1973).

Amílcar Cabral mostrou um empeho muito pessoal e especial na organização de um exército popular que irá iniciar a luta em 1963, não contra os portugueses, mas sim contra o sistema colonialista português, como ele sempre frisou.

Amílcar Cabral conseguiu obter um vasto apoio internacional, político, militar e financeiro, à causa do PAIGC, tanto por parte dos países do bloco soviético e do Terceiro Mundo como de outros países, incluindo ocidentais e europeus (como a Suécia)...

Fotos do Arquivo Amílcar Cabral > Em 1999, a Fundação Mário Soares, com a colaboração da Dra. Iva Cabral, viúva do fundador e dirigente do PAIGC, procedeu à recolha de centenas de fotografias respeitantes a Amílcar Cabral e ao processo de luta de libertação nacional da Guiné-Bissau e Cabo-Verde que se encontravam em iminente perigo de destruição.

Tratava-se de um importante espólio fotográfico que teve de ser objecto de tratamento e reprodução fotográfica e digital, sendo, a partir de 20 de Janeiro de 2003, no 30º aniversário da morte de Amílcar Cabarl (1924-1973), gradualmente disponibilizado na Internet.

Fotos: © Fundação Mário Soares (2007) (com a devida vénia...)
Continuação da publicação de um conjunto de textos que o nosso amigo e camarada, o Coronel DFA, na reforma, A. Marques Lopes, nos começou a enviar, em 13 de Setembro de 2007.

Fonte: SUPINTREP nº 32, um documento distribuído em Junho de 1971 aos Comandos das Unidades do CTIG.


PAIGC > Instrução, táctica e logística > II parte


[Fixação do texto: A.M.L. e editor L.G]

INSTRUÇÃO NO ÂMBITO MILITAR

(1) Recrutamento com vista à frequência dos Campos de Instrução

A fim de suprir às necessidades de recompletamento e aumento das FARP impostas pelo avanço da luta, o PAIGC leva a efeito [ operações de recrutamentono] seio das populações que vivem nas zonas sob o seu controle, nomeadamente: (i) nas áreas de Biambe/Queré, Tiligi e Sara Enxalé Inter-Região Norte; (ii) nos sectores de Gã Formoso, Injassane, Como, Tombali, Cubucaré, Quitafine: (iii) a W da estrada Bambadinca / Xitole na Inter-Região Sul.
Esse recrutamento é extensivo também às populações refugiadas na República do Senegal e na República da Guiné, e incide, principalmente, sobre os elementos com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos.

Os recrutamentos são sempre feitos de modo a aproveitar as características de cada grupo étnico. Assim, verifica-se que os combatentes são na maioria balantas por ser esta etnia a mais destemida e aguerrida de quantas existem na Província, seguindo-se-lhe as etnias mandinga e beafada, também destemidas e resistentes. Os nalús, embora em número mais reduzido, pelo ódio que guardam ao fula, apoiam também o PAIGC.

É pois, e principalmente sobre estas etnias que o PAIGC faz incidir os seus recrutamentos com vista à obtenção de elementos combatentes.

(2) Instrução Militar Geral; Selecção de Quadros

Aos elementos recrutados é-lhes ministrada instrução político-militar e cultural intensiva durante trinta dias, com um total de 180 horas de preparação militar e 60 de preparação cultural.

A preparação militar inclui:

- Preparação táctica;

- Preparação política, ministrada pelo Comissário Político do Campo de Instrução, o qual tem também a seu cargo a administração, os serviços e a disciplina;

- Preparação de tiro;

- Ordem unida;

- Preparação engenheira, que abrange breves noções de organização de terreno e minas;

- Topografia militar, com rudimentos de orientação e levantamentos expeditos.

Além destes conhecimentos ministrados à generalidade dos combatentes, é dada ainda instrução de especialidades aos que a elas se destinam mercê de determinadas aptidões, como por exemplo acontece com os professores, muitos dos quais são escolhidos para ocupar lugares de chefia nas unidades de “artilharia”.

Os elementos que neste campos de instrução melhores provas prestarem, são enviados para campos de instrução no estrangeiro, dos quais estão detectados os seguintes:

- Na Argélia: Campo de Instrução de Colbert (a 19 km da povoação do mesmo nome).

- Na China: Campos de Instrução adstritos às Academias de Ciência Militares de Nanquim e Wuhan e o Campo de Instrução de Pequim.

- Em Cuba: Campo de Instrução de Sierra Maestra, em Mina del Rio.

- Na URSS: Campo de Instrução de Simperopol e Centro de Instrução de Marinha de Guerra em Herson.

A especialização e aperfeiçoamento dos elementos do Exército Popular é de um modo geral, realizada no Campo de Instrução e Preparação militar de Kambera (República da Guiné), sendo ministrada por elementos especializados, nomeadamente cubanos, caboverdeanos e ainda por elementos de comprovada competência e experiência.

Na generalidade, a instrução ministrada aos combatentes do PAIGC no estrangeiro inclui as seguintes matérias, em programas muito semelhantes, embora em países diferentes:

- Preparação física:

Marchas

Desportos

Ginástica de Aplicação Militar

Luta

- Armamento e Tiro

O estudo do armamento visa os seguintes aspectos:

- Modelo

- Características

- Manutenção e limpeza

- Armar e desarmar

- Funcionamento (sumário)

- Incidentes e tiro

De um modo geral é feito tiro de armamento ligeiro por todos os instruendos, e de armamento pesado apenas pelos especialistas destinados a essas armas.

- Granadas de mão

- Minas, explosivos e armadilhas

Estas matérias são ministradas em pormenor e profundidade, procurando dar-se aos instruendos conhecimentos de:

- Minas anticarro;

- Minas antipessoal;

- Armadilhas;

- Implantação e levantamento de engenhos explosivos;

- Dispositivo de lançamento de fogo;

- Tipos de explosivos;

- Destruições.

- Tática

- Instrução individual do combatente;

- Emboscadas

- Sabotagem (ataques a Povoações e Aquartelamentos)

- Defesa anti-aérea

- Organização do terreno

- Transmissões

- Reconhecimento e informação

- Doutrinação política

O que diz respeito à instrução ministrada nos campos de instrução referenciados no interior do TN [território nacional], há notícias de que a mesma apresenta um programa mais reduzido, destinado simplesmente a elementos da Milícia Popular, e que se resume praticamente:

- Preparação física

- Armamento e tiro

- Táctica

- Doutinação política

(3) Instrução táctica

(a) Generalidades


Pretende esta alínea do Supintrep N.º 32 dar a conhecer a importância de que se reveste para o IN a instrução táctica dos seus guerrilheiros, para o que se lançou mão de diversos regulamentos e documentação doutrinária utilizada pelo PAIGC nomeadamente o Manual do Guerrilheiro do PAIGC..., o ABC da Táctica... e um documento intitulado Para o Desenvolvimento da Nossa Luta contra os Helicópteros... Poder-se-á dizer contudo, que a doutrina contida nem sempre corresponderá aos procedimentos a apresentar na parte dedicada à Táctica, o que significa uma evolução nítida nos processos de actuação do IN e uma capacidade de adaptação às diferentes situações que se lhe opõem.

Nas transcrições feitas e esquemas apresentados, é respeitada a forma dos documentos.

[...] (6) Transmissões

Esta especialidade inclui duas espécies de técnicos: os operadores e os rádio-montadores, os primeiros instruídos na Rússia e em Cuba e os segundos na Rússia. Admite-se no entanto que já possa ser ministrada instrução aos operadores na Base de Kambera, não havendo no entanto elementos que o confirmem.

Sempre que o PAIGC recebe novos aparelhos de rádio todos os operadores são sujeitos a estágios de preparação.

Os elementos que se possuem acerca da instrução de transmissões são muito escassos, transcrevendo-se apenas um Plano de Instrução de Transmissões, extraído de documentos capturados.

Programa de Instrução

Planos de Instrução de Transmissões

1.º Plano de Instrução

- Defeitos de alimentação

- Uso das antenas

- Escolha do local para instalação do rádio

- Sintonização

- Chamada dum correspondente

- Trabalho sem indicativos

- Transmissão em cifra e letras

2.º Plano de Instrução

- Aprovado pelo Comandante do Grupo de Comunicações para instruir os soldados da secção telefónica.

Tempo – 2 horas

Lugar – no campo

Abastecimento de material – comutador P293, fio telefónico P215, 10 telefones TAN-43 – colecção de ferramentads para cada aluno.

3.º Plano de Instrução

- Aprovado pelo Capitão Chefe das Comunicações

Tema – Estudo do telefone TAN-43

Finalidade – Estudar comunicações por fios com grupos de sapadores e artilharia.

Tempo – 3 horas

Lugar – Classe

Material – Telefone TAN-43
[...]

(8) Tiro

Por se achar de interesse, incluem-se neste Supintrep as Normas de Segurança a respeitar nas carreiras de tiro do PAIGC, e que constituem o teor dum documento capturado ao IN.

MEDIDAS DE SEGURANÇA QUE DEVEMOS RESPEITAR NO CAMPO DE TIRO

- Antes de disparar no campo de tiro, cada atirador deve estudar a teoria das armas, deve conhecer as regras como disparar e as regras principais como as armas trabalham.

- No campo de tiro devemos respeitar todas as medidas de segurança e trabalhar segundo ordens do Comandante do Grupo.

- Quando há avarias durante o tiro, o atirador logo deve anunciá-las, não mudando a sua posição e não desviando a sua arma. Logo chega o comandante do grupo para ajudar o atirador a reparar a varia da sua arma.

- No campo de tiro é proibido: (i) Utilizar as armas que não são bem preparadas para o tiro; (ii) Permitir o tiro aos atiradores que não conhecem o trabalho das armas e as medidas de segurança durante o tiro; (iii) Carregar a arma sem ordem do Comandante; (iv) Desviar a arma para os lados ou para trás ou para as demais pessoas; (iv) Abandonar ou emprestar a arma carregada; (v) Continuar no tiro depois da ordem Alto.

- Na linha de tiro pode achar-se somente: (i) O grupo dos atiradores; (ii) O comandante do grupo (que dirige o tiro); (iii) O órgão de controle (se necessário um intérprete).

- Na linha de preparação pode estar somente: (i) O grupo seguinte; (ii) O distribuidor das munições; (iii) Um funcionário para registar o resultado do tiro.

- Os atiradores podem abrir fogo somente sob a ordem do comandante: Fogo.

(9) Marinha e Aeronáutica

Relacionando as referências acerca da vinda de elementos especializados em aeronáutica com as existentes sobre a obtenção de meios aéreos e construção de pistas, admite-se que o PAIGC se prepare para a formação de quadros de aeronáutica para, no futuro, os empregar em missões de evacuação e transporte de pessoal e material e, eventualmente, em acções de guerra que não impliquem utilização de meios que o PAIGC logicamente não poderá obter a curto prazo.

Admite-se pois, a hipótese de o PAIGC vir a dispor de meios aéreos (talvez à base de helicópteros), que numa primeira fase poderão ser utilizados em transporte de pessoal e evacuação entre as bases mais importantes do exterior, e numa fase mais avançada que venha a obter e utilizar outros meios aéreos que visem outras actividades nomeadamente acções ofensivas em TN.

A especialização de elementos In em marinhagem serve ao PAIGC para obter os tripulantes e técnicos para equipar os meios fluviais e navais de que já dispõe e virá a obter.

Refere-se também a instrução de unidades de fuzileiros, tropa de assalto ligada à marinha do PAIGC, a qual será também especializada na colocação de engenhos aquáticos e transposição de cursos de água.

[...]
d. Ensino no estrangeiro

Como se referiu já [, anteriormente], a necessidade da obtenção de Quadros para a direcção dos vários sectores da vida do Partido, leva o PAIGC a aceitar as muitas bolsas de estudo oferecidas pelos países que o apoiam, para a frequência dos cursos a que no mesmo capítulo se fez referência.

A actividade da angariação e distribuição destas bolsas de estudo é feita pela Secção de Estudantes no Exterior, órgão que se supõe existir directamente dependente da Direcção dos Serviços de Cultura.

A este órgão compete ainda a ligação do Partido com os estudantes que frequentam os estabelecimentos de ensino no estrangeiro, distribuindo-lhe para o efeito, material informativo.

Os cursos supõe-se que funcionam em regime acelerado de que resulta os futuros técnicos e licenciados, a maior parte das vezes, não atingirem o nível desejado. A este assunto se referiu A. Cabral durante a realização do Seminário de Quadros em Novembro de 1969, estabelecendo um termo de comparação com os cursos tirados em Portugal, em relação aos quais aqueles estariam em nítida desvantagem.

Durante a realização do mesmo Seminário e uma intervenção do próprio Secretário Geral, intitulada “Elevar a consciência Política e a Militância dos Estudantes do Partido”..., Cabral refere-se aos estudantes que frequentam cursos no estrangeiro em termos de notória preocupação acerca das atitudes por eles tomadas no estrangeiro como sejam as ligações com estrangeiras e as fugas para “países aliados de Portugal” ou mesmo Portugal, empreendidas logo após a conclusão dos referidos cursos, fugindo assim às responsabilidades criadas perante o Partido.

Em função disto e diligenciando para que o Partido seja informado das verdadeiras intenções desses estudantes, são preconizadas medidas de controle dos estudantes pelos próprios estudantes, recorrendo à denúncia como meio de eliminar todos aqueles que não mereçam confiança.

(Continua)
__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 22 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte) (A. Marques Lopes)

domingo, 23 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2125: Blogpoesia (4) : A morte do pássaro de areia (Luís Graça)




Lourinhã > Praia de Vale de Frades > 8 de Junho de 2007 > É um pássaro, diz ela. De areia. Ferido de morte.

Foto: © Luís Graça (2007). Direitos reservados.

Para o Idálio Reis e os bravos da CCAÇ 2317 (Gandembel/Ponte Balana, 1968/69), com um Alfa Bravo (abraço) (1) (*):

É um pássaro.
De areia.
Diz ela.
Ferido de morte.
Uma jurássica ave de arribação
que te veio anunciar a peste.

Peste branca. Preta. Vermelha.
Vírus do Nilo.
Dengue.
Al Qaeda.
Febre hemorrágica.
Sida.
Terror nuclear.
Pandemia. Amarela.
Bílis negra.
Os neutrões.
O vírus influenza
dos gansos selvagens.
A implosão dos neurónios.
O buraco do ozono.
As metástases pancreátricas.
O pão transgénico.
As setas pragas do Egipto.

A estátua jazente de um deus alado
que morreu nas dunas.
Diz ele.
Por fadiga. Burn-out. Desidratação.
O irã que largou o poilão
e morreu de infinita tristeza.
Vidrado.
Varado por um tiro de Kalash.
Ou um náufrago da costa de ouro, marfim e prata.
A escassos metros da meta.
À entrada do paraíso.
Da reserva ecológica.
Dos abrigos à prova de canhão sem recuo
da Europa imaginada.
Blindada.

Terá atravessado os campos de golfe magnéticos
que eram verdes,
diz ela.
Na rota das Canárias e do Saará,
segue sempre em frente
e encontrarás o paraíso.
Já.
Ou encontravas.
Diz ele.
Aqui jaz.
Agora.
Na areia da praia.
O soldado.
Desconhecido.
Número tal.
Que terá vindo de Gandembel,
sobrevoando Ponte Balana.
Sem senha
nem contra-senha
nem ração de combate.
Nem requisição de transporte.
Nem visto
ou simples carta de chamada
da Pátria.
Nem sequer muda de roupa
para o além.
Simplesmente morto por uma roquetada.

O puro terror dos fornilhos,
diz ele.
A cilada.
A emboscada.
As pirogas à deriva.
A guerra elevada à categoria de arte
do predador.
Generalíssimo.
As tripas de fora
de um deus-menino.
O pássaro.
De fogo.
Desintegrado.

Oh! Gandembel das morteiradas,
dos abrigos de madeira
onde nós, pobres soldados,
imitamos a toupeira.
-diz ele.
In memoriam.
A morte, sem legenda,
a asfixia, sem escape,
a exaustão, sem honra,
os nervos de aço esfrangalhados
do soldado-toupeira,
o envenenamento das fontes de água
que corria doce e triste,
o triste rio Balana,
triste como todos os rios da Guiné,
o céu trespassado por setas envenenadas,
o napalm,
o RPG-Sete.

O pássaro de areia, diz ela.
- Quem vem lá ?
Cala-se o dari (2) no Cantanhez.
E as gazelas na orla das bolanhas da zona leste.
Para se poder ouvir o tiro tenso do voo
da ave mortal da madrugada.

*Publicado originalmente em Luís Graça > Blogue-Fora-Nada... e Vão Dois > 16 de Setembro de 2007 > Blogantologia(s) II - (51): A morte do pássaro de areia

__________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

(2) Chimpanzé

sábado, 22 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2124: PAIGC - Instrução, táctica e logística (1): Supintrep nº 32, Junho de 1971 (I Parte): Formação e treino (A. Marques Lopes)

Guiné > PAIGC > 1970 > Algures, numa zona libertada. Guerrilheiros e população. A guerra de libertação teve muito pouco de romântico. Os militares portugueses que combateram o PAIGC na Guiné, sabem quão duras eram as condições de vida, tanto dos seus combatentes como da população sob o seu controlo, nas regiões libertadas, ou seja, dentro das fronteiras do território da antiga província portuguesa da Guiné (TN - território nacional, reclamavam as autoridades portugueses)... A foto é do húngaro Bara István (n. 1942). Foto: Foto Bara (com a devida vénia...) Foto: © Fundação Mário Soares (2007) (com a devida vénia...) Continua ainda hoje a ser muito difícil encontrar, disponível na Net, documentação fotográfica sobre Amílcar Cabral, a sua vida e a sua luta, o PAIGC e a sua organização política e militar, a luta de guerrilha no interior da Guiné-Bissau, etc. Na Fundação Mário Soares pode ser consultado o importante Arquivo Amílcar Cabral. Infelizmente, essa documentação não é do domínio público, estando sujeita às leis do copyright. É de reconhecer, no entanto, o excelente trabalho que está a ser feita por esta fundação em cooperação com a Fundação Amílcar Cabral. No sítio da Fundação Mário Soares, pode ler-se a seguinte apresentação do Arquivo Amílcar Cabral: O acesso público ao Arquivo Amílcar Cabral, disponibilizado em Bissau, na Cidade da Praia e em Lisboa, constitui um passo decisivo na conservação e transmissão da nossa memória colectiva recente, o que foi viabilizado pelo recurso às novas tecnologias de informação. Ainda falta muito trabalho, que se prevê concluir no prazo aproximado de um ano. Mas o que já foi feito representa uma experiência pioneira de cooperação internacional em matéria de preservação e tratamento de arquivos. Considera-se ainda que o Arquivo Amílcar Cabral pode, e deve, receber outros acervos documentais que o enriqueçam e completem, ao mesmo tempo que importa incentivar o estudo, a investigação e a edição, com referência aos Documentos Amílcar Cabral. Prosseguindo este caminho, a cooperação entre a Fundação Mário Soares e a Fundação Amílcar Cabral contribuirá, seguramente, para o melhor conhecimento da nossa História comum, estreitando laços e construindo projectos de interesse mútuo. 
 ___________________ 

 Primeira parte de um conjunto de textos que o nosso amigo e camarada, o Coronel DFA, na reforma, A. Marques Lopes, nos começou a enviar, em 13 de Setembro de 2007: Caros camaradas: Envio-vos um primeiro texto que é o começo de uma explanação sobre a instrução ministrada pelo PAIGC aos seus militantes e guerrilheiros, sobre a forma como accionava as suas forças no terreno e sobre todo o esquema logístico que apoiava a sua acção. Este, e os que farei chegar ao vosso conhecimento depois, foram extraídos do SUPINTREP nº 32 (1), um documento distribuído em Junho de 1971 aos Comandos das unidades do CTIG. É, pois, uma visão que se tinha, menos de três anos antes do 25 de Abril, do tipo de guerra em que andávamos envolvidos e das perspectivas da sua evolução. Nessa altura e nos anos seguintes estavam na Guiné muitos dos principais intervenientes na preparação e no desenlace do 25 de Abril de 1974. Talvez por isso, porque começaram a ter uma visão mais clara da situação. Os textos (não na totalidade, por haver aspectos que considero de pouco interesse, e dada a sua grande extensão) são transcritos ipsis verbis, limitando-me eu, num caso ou noutro, a fazer um comentário pessoal (devidamente assinalado como tal). PAIGC > Instrução, táctica e logística > I parte [Fixação do texto: A.M.L. e editor L.G] SITUAÇÃO GERAL [...] Considera-se vital para a vida do PAIGC o substancial apoio que tem disfrutado quer da parte dos países limítrofes, quer da maior parte das potências de ideologia comunista, bem como das Organizações Internacionais, apoio esse que, considerado nos mais diferentes aspectos, lhe é indispensável para a manutenção do seu esforço de guerra. Assim, nos países limítrofes da República da Guiné e da República do Senegal, mercê das facilidades concedidas, montou o PAIGC toda uma “máquina de apoio” às forças que no interior do TN [território nacional] e junto à linha de fronteira, mantêm e incrementam luta armada. Dos restantes países e organizações internacionais, o apoio concedido e já referido, materializa-se por: - Instrução de quadros, quer políticos quer militares, na Rússia, China Popular, Argélia e Cuba; - Fornecimento de material de guerra da parte da Rússia, China Ppular e Cuba; - Instrutores e Conselheiros Militares de Cuba [,além de médicos, L.G.]; - Fornecimento de bolsas de estudo com vista à formação de técnicos, médicos, advogados, engenheiros agrónomos, civis e de máquinas bem como outras licenciaturas na Rússia, China Popular, Alemanha de Leste e Bulgária; - Auxílios em dinheiro quer dos países já referidos, quer da Suécia e numerosas Organizações Internacionais. Para esta situação, tal como se definiu, nada permite antever qualquer alteração no que respeita aos países do bloco comunista. Quanto aos países limítrofes há a considerar para já a diferença entre o apoio incondicional e o apoio com determinadas restrições concedidos respectivamente pelos governos da República da Guiné e República do Senegal, os quais, aliás, mantêm entre si acentuado antagonismo. Assim, só uma mudança do actual regime político da República da Guiné, não previsível mormente os graves problemas de política interna com que se debate, conduziria a uma quebra que se adivinha muito significativa no apoio que este país concede ao PAIGC e que levaria muito provavelmente o governo senegalês, tradicionalmente mais moderado, a impor um maior número de restrições à liberdade de acção de que o PAIGC goza em todo o Casamance. [Expressa-se aqui uma certa mágoa pelo falhanço da Operação Mar Verde, em Novembro de 1970 - A.M.L.] GENERALIDADES No quadro da organização geral do PAIGC, ressalta a absoluta necessidade da criação de elites para enquadramento dos diferentes sectores da vida do Partido, já que, face ao avanço da luta, se torna necessária a obtenção de dirigentes qualificados. Em função dessa necessidade e aproveitando as numerosas bolsas de estudo obtidas dentro do quadro geral de apoio que pelos países do bloco comunista é concedido ao PAIGC, o Partido tem enviado com regularidade elementos seus para o estrangeiro a fim de se especializarem nos diferentes ramos de actividade da Guerra de Guerrilhas e para a frequência de cursos superiores e técnicos. Assim, tem sido referenciada a ida de “bolseiros” do PAIGC para a Rússia, Checoslováquia, Alemanha de Leste, Bulgária, China Popular, Cuba, Marrocos, Argélia, Ghana, Argélia, Senegal e Guiné, países estes onde está referenciada a frequência dos seguintes cursos e especializações: (1) Cursos e especializações de Carácter Militar e Político (a) Os cursos e especializações de Aeronáutica são ministrados na Rússia; (b) Os de Marinhagem e Fuzileiros (tropas de assalto) estes últimos a incluir a especialização de minas aquáticas e transposição de cursos de água, são ministrados na Rússia; (c) As especializações de Política e Guerra Subversiva são obtidas na China (Instituto Popular de Política Estrangeira, em Pequim, e na Universidade Política Militar, em Nanquim) e ainda na Rússia; (d) A preparação militar dos futuros quadros do Exército Popular é ministrada na Rússai, China Popular, Argélia, Marrocos e CubaA. (2). Cursos e especializações civis (a) Na Rússia são ministrados: Cursos de Medicina e Agronomia (Universidade Patrice Lumumba, em Moscovo); Direito Internacional (Moscovo); Medicina e Enfermagem (Kiev) [Kiev é a capital da Ucrânia, que pertenceu à União Soviética, a Rússia, como se lhe chamava. A.M.L.]; Geologia, Pedagogia, Sindicalismo, Cursos Comerciais e Mecânica Auto (Kiev); (b) Na Checoslováqui os alunos do PAIGC cursam Engenharia d Minas, Máquinas e Civil; Medicina e Sindicalismo (controle dos bens do Estado); Espionagem, Higiene e Profilaxia Social; (c) Na Alemanha do Leste, Electricidade e Máquinas; (d) Enfermagem e Sindicalismo na China Popular; (e) Na Bulgária, Agronomia e Medicina, Medicina Veterinária, Enfermagem, Pesca e Indústria Conserveira; (f) Na Hungria, Engenharia e Minas e Economia; (g). Transmissões e Enfermagem em Cuba; (h). Serviços de Vacinação no Senegal; (i). Sindicalismo na República da Guiné. É possível que, além destes cursos e especializações cuja duração vai dos três meses aos cinco anos, existam outros funcionando nestes ou noutros países, o que de momento se desconhece. A instrução militar geral e a instrução literária é também ministrada nas bases de instrução que o IN mantém nos países limítrofes e nas escolas do Partido[...]. INSTRUÇÃO POLÍTICA Os elementos que assumem responsabilidades no âmbito da organização do Partido, são, na sua maioria, recrutados entre caboverdeanos e nas etnias mancanha e papel em virtude de serem estas as que apresentam um maior grau de evolução. Uma vez seleccionados, os futuros quadros políticos vão para o estrangeiro nomeadamente Rússia e China Popular, sendo conhecidos neste último país, o Instituto de Política Estrangeira, em Pequim, e a Universidade Político-Militar de Nanquim, estabelecimentos estes já frequentados por inúmeros quadros do PAIGC. Estes, após o regresso, são submetidos de tempos a tempos a estágios de aperfeiçoamento, denominados Seminários de Quadros, tendo-se conhecimento que o último foi realizado em Conakry, de 19 a 24 de Novembro de 1969. Os quadros inferiores e combatentes treinados nos campos de instrução dos países limítrofes, recebem também educação política a qual consiste em conhecimentos elementares sobre a história da Guiné, sobre os dirigentes do Partido, o Partido e seus programas, situação política e económica da Guiné e Portugal, aprendendo ainda como fazer a propaganda da luta de Libertação Nacional entre as populações. Igualmente as populações são educadas politicamente, função esta principalmente a cargo dos Comissários Políticos dos diferentes escalões da estrutura político-administrativa, o mesmo acontecendo com os alunos das escolas do Partido [...]. (Continua) ___________ Nota de L.G.: (1) SUPINTREP: Do inglês, Supplementary Intelligence Report, ou seja, Relatório de Informação Suplementar.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Guiné 63/74 - P2123: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (2): Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Messe e instalações dos oficiais > O Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52 (1968/70). Irá casar-se em Abril de 1970 com Cristina Allen.

Guiné > Bissau > Abril de 1970 > "A Cristina chegou a 18 de Abril e praticamente nunca saiu de Bissau a não ser umas curtas visitas a Safim, Nhacra e Quinhamel. Não podíamos, evidentemente, ir passear a quaisquer teatros de operações. Durante os praticamente 20 dias que ela aqui viveu, visitámos as amizades feitas em Bambadinca e Bissau e fomos recebidos regularmente pelo David Payne, Emílio Rosa e mulheres. Não resistíamos à curiosidade de andar pelos mercados, ver artesanato e pequenas festas locais. Muitas vezes, o Cherno acompanhou-nos, insistia que não havia pausas no seu papel de guarda-costas" (BS).


Lisboa > Julho de 2007 > Finalmente o Queta Baldé deixou-se apanhar pelo fotógrafo... Ei-lo aqui com o seu antigo comandante Beja Santos. Tem sido um precioso "auxiliar de memória" do nosso camarada, autor de Na Terra dos Soncó, Diário de Guerra (1968/69), a editar proximamente pelo Círculo de Leitores.

Fotos: © Beja Santos (2007). Direitos reservados


Texto enviado em 25 de Julho último pelo Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):


Caro Luís, aqui vai o episódio nº 2 da nova série. Tudo farei para te deixar em stock quatro textos para Agosto. Um abraço, Mário



Operação Macaréu à Vista - Parte II

Texto nº 2 - Não te esqueças de me avisar que já sou teu marido
por Beja Santos (2)


(i) Muitas lembranças de Finete e as memórias do Queta

O Queta apresentou-se ao princípio da manhã, diz que a alvorada é muito boa para manter as recordações que traz do sono, sai depois da Praça do Saldanha e ruma para o Rossio para ir comunicar com a sociedade guineense que se reúne ali para o Largo de S. Domingos. Propus uma agenda farta para a nossa reunião de hoje: quem vivia em Finete?; a sua versão das duas operações Pato Rufia, que se realizaram na última semana de Agosto e na primeira de Setembro, de 1969, na região do Xime; como era Missirá em 1967, quando lá chegou o Pel Caç Nat 52.

O mais glorioso dos artistas do batuque, agora septuagenário, que percorreu a palmo Enxalé, Cuor, Mansomine, Joladu, Oio, Badora e Cossé, para além de toda a região entre Xime e Bambadinca, mantém a sua memória praticamente intocável. A prova disso, veio de um mail recentemente enviado pelo Matos Francisco, o primeiro comandante do nosso pelotão. Sentado diante da imagem posta à sua apreciação, o Queta olhou-me com um sorriso e esclareceu sem uma hesitação:
- Trata-se do Capitão Amna Nonça, que vivia em Porto Gole e era régulo de Enxalé. Comandava a polícia administrativa e morreu em 1967, em Bissá, de uma roquetada que o matou mais seis homens. Era um homem justo, que acreditou na bandeira portuguesa.

Não me deu tempo a fazer-lhe perguntas sobre Finete, ele hoje queria contar-me mais um episódio da sua vida. Começara na milícia em 1964 no pelotão de Bazilo Soncó, na Ponta do Inglês:
- Já naquele tempo o Bazilo vivia para a fatiota: roupa sempre engomada, as divisas a brilhar, o pingalim que ele agitava como se fosse um grande senhor, levando os dedos ao bigode lustroso. O Bazilo era o homem mais vaidoso do mundo. Vaidoso e medroso.

Depois de três meses na Ponta do Inglês, aquele pelotão de milícias foi deslocado para Finete, pois o régulo Malã Soncó, seu irmão mais velho, pedira a Bafatá que houvesse protecção para o população civil que cultivava a extensa bolanha de Finete:
- Há poucas terras mais ricas, nosso alfero. Todos aqueles quilómetros de Malandim até Ponta Nova, subindo de Finete até Boa Esperança e à volta de Gã Joaquim, até Aldeia de Cuor, dá arroz com fartura. A população de Finete fugira para o mato no princípio da guerra. O régulo vivia em Missirá mas deslocou muita gente para Finete, e depois da vinda da milícia, veio também mais povo ali viver, originário de Canturé, Chicri, Sansão e Aldeia de Cuor. Havia ali muitas lojas de comércio, brancos e cabo-verdianos, que vinham buscar a mancarra, o arroz e o coconote. Todas essas lojas desapareceram com a guerra. Fiquei em Finete até 1966, altura em que fui tirar a recruta em Bolama. Nunca disse a nosso alfero mas em Finete havia gente que informava os familiares em Madina, o que fazíamos, o que construíamos, o armamento que tínhamos. Esta noite estive a pensar muito tempo sobre a pergunta que me fez sobre as razões por que é que eles não nos atacavam em Mato de Cão. Não nos atacavam por que nosso alfero ia lá a toda a hora. E se começassem a atacar Finete, certamente que haveria mais emboscadas mortais como a de 3 de Agosto. Madina queria que as colunas de reabastecimento não tivessem problemas. Em Setembro, lembro-me bem, Missirá e Finete voltaram a ser atacadas, aqueles ataques pareciam brincadeira, umas morteiradas e roquetadas e nada mais.

Eu também estava convencido que Madina vivia desorientada com as nossas permanentes andanças pela mata e não queria aumentar a tensão à volta de Finete, aquele corredor estratégico devia permanecer despercebido.

Já de pé, o Queta que hoje vai tirar uma fotografia comigo, não me deixa de dar informação útil:
- Nosso alfero, Finete tinha duas fileiras de arame farpado, foi graças a si que se fizeram cinco novos postos de vigia e que as Mauser foram substituídas por G3. Não tínhamos morteiro. Já em 64 usávamos granadas defensivas. E lembro-me de uma história. Uma das primeiras vezes que o nosso alfero atravessou a bolanha a pé ficou alertado para os barulhos de rebentamentos dentro dos arrozais. Explicámos que eram os meninos a apanhar peixe. Nosso alfero proibiu que os meninos usassem granadas. Não gostámos, mas nosso alfero fez bem.

(ii) A Operação Pato Rufia

A ideia desta operação nasceu no dia em que foi capturado um guerrilheiro pelos pára-quedistas, na região de Mansambo (3). Interrogado, confessou vir de um acampamento situado na estrada entre Xime e Ponta do Inglês, dizendo que havia lá quarenta homens armados com um grupo especial de apontadores de RPG2 que tinham a missão de atacar a navegação no Geba.

A 24, a meio da tarde, na sala de operações de Bambadinca, o Major Sampaio explicou aos oficiais presentes que haveria dois destacamentos que trabalhariam conjugadamente com os pára-quedistas. Sairíamos pela meia noite do Xime com dois guias e o prisioneiro. Eu comandaria metade do 52, fazendo parte do destacamento que ficava à espera que os guerrilheiros fugissem no rescaldo no ataque às casas de mato.

O Queta lembrava-se muito bem daquele calvário. Saímos de uma noite escura, amanhecia e ainda andávamos às voltas, com os guias desorientados:
- Quando amanheceu, vi perfeitamente que estávamos ao pé da Ponta do Inglês, ora nosso alfero tenha falado em Ponta Varela e Gundagué Beafada, qualquer coisa como quatro quilómetros atrás. Amanheceu cheio de nevoeiro, ninguém via nada.

De facto, assim foi. E a aviação não pôde largar os pára-quedistas, pelo que a meio da manhã se iniciou uma retirada, e é já a caminho de Madina Coelho que o prisioneiro reconheceu os trilhos de acesso, numa altura em que tudo desaconselhava o golpe de mão. Foi um regresso muito difícil até ao Xime, pois os picadores detectaram anti-pessoal, certamente ali metidas desde que os pára-quedistas tinham aprisionado o nosso informador. Assim terminara, com muita canseira e sem nenhuma glória, a primeira Pato Rufia, que se irá repetir a 7 de Setembro. Nessa segunda versão, como veremos, haverá três destacamentos de tropa do exército, e ficaremos com os pelotões 53 e 63.

(iii) Um casamento por procuração que é quase um trabalho sem esperança

Nunca visitei tanto Bafatá como nas últimas semanas. Os papéis para o casamento por procuração estão sempre engatados: pedem-me um bilhete de identidade que ardeu em Missirá, bem como outras certidões; dizem-me que não me posso casar sem a morada do sogro e que só pedi a convenção antenupcial mas que me esqueci de falar na separação de bens. Haverá um momento em que o administrador me pôs a mão no ombro e me felicitou pois por ali eu já estava casado. Mas na semana seguinte recebi a indicação de voltar lá com urgência. Ali chegado, o administrador pediu-me para ir buscar duas testemunhas que confirmassem a minha identidade. Não aceitou nenhum dos meus acompanhantes, avançou mesmo a sugestão que o nome de dois superiores resolveriam a questão de vez. Enquanto conversamos, entra o Coronel Hélio Felgas que, para minha surpresa, avança sorridente para mim, dizendo ter ouvido que eu ia casar e precisava de uma assinatura de um superior.

Naquela sala que parecia uma estufa, com população acocorada à espera de vez, oiço-o transido dizer-me que tem muito apreço pelo meu desempenho militar e que me quer no Agrupamento de Bafatá. E falou mais alto para toda a gente ouvir:
-Faça a rapariga feliz, vou louvá-lo, é pena que tenha havido aquele contratempo, espero vê-los em Lisboa.

Volto a sair de Bafatá aturdido e desorientado, na certidão correspondente ao meu casamento por procuração faço representar-me pelo Ruy Cinatti, fica esclarecida a separação de bens, assinei a convenção antenupcial. Em Bambadinca, um pouco antes de partir para Missirá, escrevo à Cristina:
- Não te esqueças de me avisar quando for teu marido.

Recebera uma carta do meu amigo José Manuel Nogueira Ramos, de quem a Cristina gostava muito, a informar-me do preocupante estado de saúde da mãe e peço à Cristina para visitar a Dnª. Raquel no Campo Pequeno, 11, 2º Esq., telefone 775204. Despeço-me fingindo que estou cheio de saúde, sem deixar de referir que as picadas estão de novo intransitáveis, que voltou a faltar o arroz e que morreu a mulher de um soldado milícia de Missirá.

Capa do romance de Gustave Flaubert, Madame Bovary. Lisboa: Estúdios Cor. 1960. (Ed. orig. em fr., 1857). Trad. de João Pedro de Andrade.

Foto: © Luís Graça & Camaradas da Guiné (2007). Direitos reservados


(iv) Madame Bovary sou eu!

A semana de leituras trouxe-me à vida. Em primeiro lugar, li um assombroso romance policial, Maigret e o seu morto, de Simenon. Assombroso na estrutura, na inovação formal, na narrativa trepidante. Enquanto entrevista uma alucinada no seu escritório, vão sucedendo-se telefonemas de um homem que se apresenta como marido da Nina, dizendo-se perseguido. Os telefonemas caem. Maigret vai para a rua, procura refazer o itinerário do perseguido. Ele vai aparecer morto em pleno centro de Paris. O inquérito mobiliza tudo e todos, até se descobrir que uma quadrilha de carniceiros checos o liquidou por ele saber a sua identidade.

A tradução de Lima Freitas é um primor e a capa do Cândido da Costa Pinto não lhe fica atrás. Simenon usa na plenitude todos os seus recursos imaginativos: o suspense da caçada, um agente da polícia que se transforma em taberneiro, Madame Maigret a fazer telefonemas profissionais, Maigret a receber patifes em casa e a enfiar um murro no verdadeiro chefe da quadrilha. Para quem desvaloriza a literatura policial, recomendo que leia e releia este Simenon, e depois conversamos.

Li também na colecção Miniatura os contos Biombo Chinês por Somerset Maugham. As histórias dos Mares do Sul de Maugham são um encanto. Agora é a China e estas pequenas pinturas, águas-fortes de sentimentos, olhares, vivências. Maugham guardou tudo num diário da viagem que fez em 1920. Refez as suas observações nestas obras-primas da pequena história que consigo ler em todos os bocadinhos que tenho disponíveis. Mas o grande tiro de artilharia que li esta semana foi Madame Bovary, de Flaubert.

Dizem os estudiosos que Madame Bovary é o primeiro grande livro realista da literatura mundial. O que está em causa nas minhas noite de Missirá, na primorosa tradução de João Pedro de Andrade, é o arranque de uma toada da emancipação feminina, o fim do silêncio sobre o adultério, a passagem da mulher do meio puramente rural para o sonho cosmopolita. Carlos Bovary, o marido de Ema, é um homem monótono e pouco arrebatado. Ema, pelo contrário, sonha com a paixão, lê Balzac, quer emoções. Terá amantes e profundas decepções. A tragédia irá desenvolver-se em torno desses arrebatamentos e dessas amarguras até chegar à sua morte, a que se seguirá a de Carlos. O dinheiro vai desaparecendo, a filha de ambos, Berta, ficará na miséria.

Leio entusiasmado estas centenas de páginas, tendo em conta que a obra-prima data de 1857. A edição é linda, corresponde a um período glorioso de Estúdios Cor, de quem tive muitos livros, lembro uma edição ilustrada por Júlio Pomar para o Gargantua de Rabelais. Madame Bovary é a modernidade, percebe-se facilmente a barafunda que causou, envolvendo tribunais, a igreja, os colegas de Flaubert. Os acessos românticos e a grande amorosa, os amores transviados, o ilícito amoroso ganharam nova expressão com Flaubert.

Este é um mês com muitas dores à minha espera: a nova Pato Rufia e um morto transportado em padiola improvisada, uma cena digna de um drama wagneriano; novos tiros sobre Missirá; as peripécias de um casamento ainda não realizado; os camaradas que partem e chegam com notícias da Cristina; Finete flagelada, felizmente só houve feridos ligeiros; mais uns tiroteios em Chicri; até recebi um louvor dado pelo Felgas e depois pelo Comandante Militar da Guiné. A acabar o mês, imprevistamente como um tufão, o colapso nervoso do Casanova foi horrível de presenciar. Mas o mais horrível foi a solidão que me deixou a partida em evacuação Y do meu mais precioso auxiliar.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 30 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1329: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (22): A memória de elefante do 126, o Queta Baldé

(2) Vd. post de 13 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2102: Operação Macaréu à Vista - Parte II (Beja Santos) (1): Mamadu Camará, a onça vigilante

(3) Vd. posts de:

1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1011: A galeria dos meus heróis (4): o infortunado 'turra' Malan Mané (Luís Graça)

25 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)

30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo I (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

Mafra > Escola Prática de Infantaria (EPI) > 1968 > Cerimónia do Juramento de Bandeira > Desfile dos novos militares, frente ao Convento de Mafra, no grupo dos quais se integrava o Paulo Raposo, que viria a ser mobilizado para a Guiné, como alferes miliciano da CCAÇ 2405 (Galomaro e Dulombi, 1968/69).

Foto: © Paulo Raposo (2006). Direitos reservados.

1. Mensagem do Torcato Mendonça, de 1 de Setembro de 2007:

Estimáveis Camaradas:

Segue um anexo com 48 páginas [Estórias do José - Parte I] (1). As fotos são das Foto Falantes que tem o nosso Camarada Luís Graça. Paro um bocado, por isso o envio triplo. Estas estórias já tinham sido enviadas, em parte. Acrescentei outras e índice.

Chegado Setembro, espero voar seguindo o voo das aves e rumar a Sul… espero ser capaz. A idade e não só… Façam dessas palavras juntas o que entenderem.

Boa saúde, bom trabalho e recebam um forte abraço do,
Torcato Mendonça

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(...) "Conheço o José há tanto tempo que não sei, ao certo, nem onde nem quando o encontrei pela primeira vez. Fizemos ambos a tropa e estivemos na Guiné. Muito pouco falamos nisso. Talvez o tenhamos feito, uma ou outra vez porque não podíamos fugir ao tema" (...) (TM)

MILITAR, NÃO! por Torcato Mendonça (1)

Olhem para mim com ódio… cabeça levantada… bate o pé com força… força… levanta os joelhos… isso… mais, mais… braço à altura do ombro… mão fechada… o punho. porra…encosta a arma ao peito… isso, isso… está fria… não está… não há frio…!

E marcha e marcham os Cadetes, ainda não autómatos mas a serem torneados, despersonalizados, humilhados. Marcham na ordem unida. Batem os pés com força no chão e, com força redobrada, à voz de olhar, à direita ou à esquerda, para encarar o Capitão-Comando. Com ódio, com desprezo ou indiferença? Ainda conseguem achá-lo um ser deformado. Um Capitão de camuflado, emblemas no peito - Comandos – preso no ombro… olhar vesgo… ou tique nervoso?

Certo é que quer, ou querem, levar aqueles jovens ao desespero e à ausência de vontade própria! Certo é que quer, ou querem, transformá-los em autómatos, em máquinas, em hipotéticos condutores de homens para, no futuro, servirem numa qualquer Colónia, onde serão cabeça de grupo de carne para canhão.

Que raio de instrução e de especialidade. Atirador de Artilharia. Logo no primeiro dia de instrução, a caminhada, a sede, a fome, a noite fria, de Janeiro, em pleno Alentejo. Urinar nas mãos aquece e fê-lo.

Noite longa, não dormida e por fim o alvor na madrugada gelada. O Comandante de instrução, tronco nu, fazia a barba. Louco!? Os Cadetes olhavam e sorriam. É o Capitão. Baixo, calças de camuflado, tronco seco de carnes. Seminu ficava mais pequeno. Os emblemas e crachás, no peito e ombro e o dólmen camuflado, tornavam-no mais alto.

A dureza de uma instrução diferente tinha começado. Equipas de cinco, sentido com punhos cerrados, descansar com pernas direitas, olhar para o alto e mãos atrás das costas, marcha com arma cruzada no peito. Mas que é isto? Não há horas para nada. Só para estar pronto – já!

Aos poucos foram amolecendo, perdendo a vontade de resistir e simultaneamente aumentando os índices na aplicação, no empenho da instrução. Aos poucos, o Capitão e alguns instrutores iam conseguindo atingir o objectivo. Temos autómatos!

Marchem… olhem para mim com ódio… bate o pé com força… salta… rasteja...rabo em baixo… rápido… cambalhota… a arma… não larga… faz parte do corpo… corre… corre no pórtico… salta o galho… fácil… não doi…desce a corda… as mãos estão boas…!

Eram talvez sessenta. Terminaram cinquenta? Tantos!?

Espalharam-se Aspirantes por vários Quartéis do País e a vida militar continuou…

Um dia, mais de trinta anos depois voltou a ver o Capitão Comando. Vestia à civil, o mesmo tique na cara, olhar baço e amarrotado… Subira na hierarquia militar, tinha o posto de General e era Presidente da Liga de Combatentes.

Como sócio da Liga convidaram-no a vir a este encontro. Missa, visita ao melhorado talhão dos Combatentes e almoço de trabalho. O habitual. Foi. Entrou no Largo, viu aquele ajuntamento, certamente de antigos Combatentes. No meio o General, a conversar… mas tinha o mesmo tique…ou era vesgo?

De repente deixou de o ver. Já não era civil nem General e ele já não estava no Largo da Igreja. De repente sentiu-se na Parada de Vendas Novas. Lá estava o Capitão Comando: - Olha para mim com ódio… salta… força…

Sentiu marteladas na cabeça. Olhou e disse:
- Safa! Voltou as costas e rapidamente afastou-se. Não! MILITAR, NÃO!

Não é ficção. É realidade. Em Janeiro de 66, um grupo de cerca de noventa Cadetes e cerca de duzentos a trezentos Instruendos do Curso de Sargentos Milicianos, entraram na Escola Prática de Artilharia – Vendas Novas, para tirarem as especialidades de atirador, IOL e PCT.

O Comandante de Instrução era Capitão Comando, mais direccionado para os atiradores. Hoje é General, certamente na reforma, e foi Presidente da Liga de Combatentes.

Apesar da dureza da instrução ou talvez por isso, quase todos os graduados da minha Companhia passaram por lá, acho-a determinante no desempenho que tivemos na Guiné.

Este texto, com as devidas adaptações, passou como Crónica numa Rádio. Terminava, como todas as minhas crónicas:
- Bom dia e façam o favor de ser felizes.

Pretendia ser, uma resposta a pseudo debate havido nessa rádio, onde os antigos Combatentes não eram correctamente tratados.Quando da gravação pediram-me o escrito e ofereci-o. Por isso, este texto foi escrito recorrendo à memória e tentando reproduzir essa crónica.

Olha, salto um pouco no tempo e digo-te: a guerra pode deixar-nos também, indirectamente, marcas.

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Nota de L.G.:

(1) Vd. posts anteriores:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...