quinta-feira, 23 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4240: Histórias da CCAV 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia (1): Era uma vez... (José Afonso)

1. Mensagem de José Afonso, ex-Fur Mil da CCAV 3420, comandada pelo Capitão Salgueiro Maia, com data de 22 de Abril de 2009: 

 Pois, amigo Luís, há muito que não dava notícias sobre a minha passagem pela Guiné, de Julho de 1971 a Outubro de 1973, relatando alguns episódios passados com a CCav 3420, de Salgueiro Maia. 

 Assim envio-te alguns excertos dum trabalho que estou fazendo sobre a História da 3420, valendo-me de documentos da Companhia, do conhecimento dos factos por em muitos deles ter sido interveniente.

 Estou tentando ilustrar essa história com fotos dos vários locais por onde passámos. Sobre Salgueiro Maia (vd. foto a seguir), que dizer mais além de tudo quanto foi dito? Vale neste momento lembrar a resposta à entrevista dada ao Centro de Documentação da Universidade de Coimbra, entrevista transmitida após a sua morte e que a uma pergunta que lhe foi feita sobre se nunca havia sido convidado para desempenhar nenhum cargo politico, ele soube dizer que sim, mas que para aceitar teria de fazer outro 25 de Abril, pois que os nossos políticos tinham mais preocupação em ser bem reformados a ser bem formados. 

 Nos anexos que envio, junto a cópia do cartão que me enviou em resposta a um telegrama que lhe enviei a felicitá-lo pela intervenção no 25 de Abril.

 
ERA UMA VEZ … 


 Assim começam todas as histórias e a minha também, para não fugir à tradição. Certamente estão a pensar que vão ter uma história de Natal, mas enganam-se: esta história é um sumário de muitas histórias, começadas em Março de 1971 em Santa Margarida, e continuada em Bula, Mansoa, Cacheu, Capunga; Pete e Ponta Consolação. 

 A minha história refere a existência de uma colecção de cracks, são eles “OS MAIS…” dos PROGRESSISTAS

 A abrir, o camarada “BIGODES”, assim chamado por ter possuído em tempos um farfalhudo bigode, estilo Gengis Khan, e ter uma maneira de viver que o faz andar sempre de pelos eriçados; não é mau tipo apesar de não topar o Lino nem os turras; nas horas vagas faz versos que até costumam rimar. 

 Vem depois o "VELHINHO", a instituição mais respeitável de Capunga City; é sapateiro remendão, mata vacas, esfola porcos etc. Tem um ar de Golias de trazer por casa, usa os calções mais Pop em todo Teatro de Operações. Há tempos por causa de um macaco; bem, ia sendo o fim da macacada.

 A seguir temos o “CAJADO”, rapaz esbelto, guerrilheiro de todas as panelas, usa faca na liga, que já fez manga de ”mortos”. Passa a vida a refilar com todo o mundo, nunca se sabe bem porquê. 

 Continuemos com o “MOUCO” que em tempos o foi, até um certo dia! Bem não falemos de coisas tristes. Pois o Mouco é homem que trabalha com o morteiro 81, a arma mais técnica que a Companhia possui; é só olhar para o seu aspecto de homem conhecedor de mort. 81, por não se impressionar com o barulho das granadas a sair do tubo. O Mouco é um homem desiludido: passou 17 meses a convencer o pessoal de que é Mouco e ninguém acreditou. 

 Temos a seguir o “TERRINAS”, o homem mais trabalhador da Companhia, e o mais comedor, também conhecido por “RUÇO”; será por isso que é o homem mais procurado pelas bajudas de Pete? É um trabalhador nato, domina todos os ofícios mas considera-se com pouco valor comparado com o da sua noiva. É um homem feliz. 

 Temos ainda o clarim “MATA”, não toca a lavar mas quase. Há 17 meses que toca o clarim que faz uivar todos os cães das redondezas, e não consegui ainda deixar de nos mimosear com as suas fífias. É um homem calmo no tipo dos barmam dos bares do Texas, talvez por isso seja “o homem do tosco”. É especialista em convencer os “gaseados”, para não arranjarem problemas. 

 Vem agora o “RATO” o homem que não gosta de andar de Jeep e que está perto de lerpar o cabelo, porque não fez ainda o “Menino Jesus” para o presépio de Pete. Gosta pouco de beber e é sem dúvida o mais crava da Companhia. Passa o mês a cravar, no fim deste, paga a quem deve e, como fica sem dinheiro volta ao princípio. Bem esperamos que com o 13.º mês o rapaz acerte a escrita. 

 Ao falar do Rato temos que falar no “BARBEIRO”, a alma gémea do Rato, que é o único no género, pois só corta cabelos quando está sem patacão. É o protótipo do soldado do futuro, pequeno para criar pouco alvo; com um capacete onde ele cabe quase todo, cheio de granadas à volta do corpo parece o homem dos pneus Michelin. Com o dinheiro ganho a cortar os cabelos já poderia ter ido à Metrópole, mas como é possuidor das maiores sedes do CTIG, só foi à cerveja; passa a vida a dizer para lhe darem ferramenta nova, pois não tem dinheiro para a comprar. 

 Temos agora o “BARTOLO”, especialista em sopa de nabos, e que afina quando lhe dizem que é triste 
que deixem entrar miúdos para a tropa, ou que ele vai fazer de Menino Jesus no Presépio. 

 Já me esquecia do “GRÁCIO”. Este é o das mil e umas maneiras para conseguir ir a Bula, ou jogar futebol. É sempre voluntário quando a coisa dá para o torto, mas fora disso anda sempre a tentar desenfiar-se. 

 Estes são “OS MAIS”, e por hoje ficamos por aqui, mas, há muitos mais, desconhecidos de que daremos público conhecimento oportunamente. Esta foi a prenda de NATAL publicitária para os crack

Aos simples mortais desejamos um BOM NATAL e um MELHOR ANO NOVO. Em resumo: QUE A COMISSÃO NÃO NOS PESE

. __________ 
UM PROGRESSISTA, 

CAPITÃO SALGUEIRO MAIA 

JORNAL DE 24 de DEZEMBRO DE 1972.

COMENTÁRIO 

 Os Progressistas assistiram estupefactos aos acontecimentos no campo do Sporting num dos últimos domingos. Era visível em todos a consternação e incredulidade. Seria possível? Um árbitro a comer no toutiço ainda por cima daquela maneira? Fizeram-se mesas para comentar o caso e a opinião foi unânime, aqui no campo dos PROGRESSISTAS nunca sucedeu nem pode suceder tal coisa. E, no entanto, todos nós somos profissionais e desejamos ganhar o nosso campeonato. Mas entre nós cada jogador para além do elevado grau de tecnicismo que possui, dispõe também de uma correcção impecável. 

 Mas concretizemos para ver que não falamos de cor: antes de entrarmos em campo, uma das equipes, formada por oficiais e sargentos do QP já vai a ganhar entre 3 a 5 bolas à outra, a dos furriéis. Ora desta maneira já não há aquela ansiedade que estraga e destrói o verdadeiro desporto. Uma equipe ganha e a outra já sabe que perde até porque quando por qualquer motivo imprevisto começa a reduzir a diferença, o nosso Capitão acaba logo com o jogo porque entretanto já se está a fazer noite e a qualidade dos jogadores perde-se. 

 E há exemplos admiráveis de jogadores natos de correcção estrema: é o Monteiro fazendo triangulações e passo dobles; é o Almeida, autêntica locomotiva em ataques furiosos e que terminam algumas vezes no chão por placagem sempre serena do nosso Capitão; é o 1.º Beliz guarda-redes magnífico que com alguns empurrões e muita ciência acaba por dominar a situação; o sargento Pascoal sempre à frente, à espera da bola e nunca consegue terminar nenhuma avançada e, sou eu cuja importância é tão grande no desenrolar do jogo que noutro dia o nosso capitão até me disse: - Saia daí que você está a atrapalhar tudo! 

 Temos ainda o sargento Carreteiro muito bom em discussões futebolísticas mas, uma negação na defesa; o furriel Sancho “el ninho d’ouro”, o máximo que se pode exigir em técnica, pena que ande constantemente com os calções a cair-lhe, não fosse isso, o rapaz daria que falar; também o que nos vale é não haver por estes lados uma “liga dos costumes”. 

 Bem ainda não falamos do “Seringa” que quer que os golos dos furriéis sejam golos quando o nosso capitão considera que, como ninguém pediu autorização para marcar, o golo seja anulado! 

 Depois temos o alferes Mendonça “El Olívia Palito” que cada vez que entra no jogo, arranja um paludismo para os dias seguintes. Esclareço que cada falta ao prélio é paga com um garrafão de verde. 

 Pois é assim. Cá os PROGRESSISTAS não vão em agressões ao árbitro. E, para mostrarem bem que isso nunca sucedeu nem poderá suceder, continuarão a fazer como até aqui. Jogar com delicadeza e quanto a árbitro, “Cá Tem”. 

 Se quer praticar bom brutibol, se quer desenvolver as nódoas negras e os joelhos descascados, se enfim quer ser um homem, então frequente às terças, quintas e domingos, no extraordinário complexo desportivo do estádio “ERVA” em Pete. (BIGODES) 9 de Novembro de 1972 

__________ 

  O TEMA É CRITICA 


 Antes de mais quero dizer a quantos lêem o Jornal dos PROGRESSISTAS que não sou crítico de rádio ou televisão. Sou crítico em exclusivo deste jornal, de que é propriedade a CCav 3420, comandada pelo Capitão de Cavalaria: Fernando José Salgueiro Maia 

 A crítica que vou fazer é sobre a nossa equipa de futebol, já que no último jornal se falou muito de futebol, mas ao que parece o autor do artigo não falou daquilo que devia falar. 

 Falando no valor individual de cada elemento, começo já pelo guarda-redes, o nosso sargento Carreteiro, sem dúvida, bem constituído e com grande poder de elevação mas, pareceu-me que é altura de ser substituído e, o melhor substituto é o Bartolo do depósito de género ou o Paulo, o cozinheiro. A defesa central tem um elemento com longa experiência adquirida ao longo de 4 comissões que já fez no ultramar. 

Trata-se do 1.º sargento Beliz que, quanto a mim parece ter uns quilos a mais mas, como o campeonato está ainda em princípio parece-me ter possibilidades de recuperação. 

Quanto ao sargento Pascoal, é pedra base na equipe, porque consegue estar os 90 minutos no mesmo sítio à espera que a bola lhe venha ter aos pés. Dos furriéis, Sancho e Moreira, prefiro nem falar. 

Quanto ao furriel Gomes consegue ser superior em todos, mas em bigode; temos ainda os furriéis Monteiro, Almeida e Marques. O primeiro em vez de pensar no futebol anda mas é a pensar como pode acontecer faltar o frango aos domingos. 

Estou mesmo a ver que qualquer dia o Santos cozinheiro fica sem os seus frangos que parecem andar a mais cá no destacamento. O segundo é um elemento também muito habilidoso mas muito rafeiro, entrando sempre em falta, mas suponho eu, que um jogador com a sua classe não precisa de fazer tantas faltas sobre o adversário. 

 Temos ainda o Marques, o jogador mais disciplinado que entra em campo, é bom também em técnicas Resta apenas falar no trio da avançada que é composto pelos jogadores: Alferes Simões, Alferes Mendonça e Capitão Maia e, ao que me parece ser este ultimo, o capitão da equipe porque para além de dar ordem para terminar o jogo quando está a perder, está constantemente a dizer aos espectadores para que saiam para fora do arame farpado. 

 Quanto ao alferes Mendonça que nem mesmo a tomar leite em pó com flocos de cereais, não consegue dar um pontapé certeiro. O alferes Simões, é um jogador de cabeça e que joga sempre à vontade, talvez por daqui a uns meses ir no “gosse” para a Metrópole. O capitão Salgueiro Maia, parece-me ter medo da disputa de bolas de cabeça. Talvez seja derivado, a trazer sempre o cabelo curto, não deixa, no entanto de ser um bom extremo esquerdo e cheio de dinamismo e iniciativas que, por vezes são perigosas para o guarda-redes. 

 Resumindo e fazendo um balanço colectivo, parece-me que toda a equipa precisa de preparação física adequada e, essa preparação podia ser dada da seguinte maneira: Juntar todos os jogadores em grupos de 4 e fazerem talvez uns blocos de cimento pelo menos, sempre contribuíam para o bem estar de todos e, ainda para uma “GUINÉ MELHOR” 

 Eu peço desculpa quanto à crítica. Não foi feita para prejudicar ninguém mas sim, para que o jornal em vez de 4 folhas comece a ter 6, se possível. Para isso, precisamos de mais colaboradores. (SOLDADO JOÃO RIBEIRO) SETEMBRO de 1972

 __________ 

Guiné 63/74 - P4239: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (9): Eu, a FAP, o BCP 12 e a emboscada de 18 de Maio (João Seabra)

1. Mensagem de João Seabra, ex-Alf Mil da CCAV 8350, Piratas de Guileje (Guileje, 1972/73), com data de 18 de Fevereiro de 2009:

Caro Luís,

Pedindo desculpa por o fazer tão tardiamente, volto à vexata quaestio de Guileje/Gadamael.

Já tinha dado a entender que a minha colaboração não seria muito fluente, por razões que expliquei: os nossos amigos do QP (Coutinho e Lima, Miguel Pessoa, Martins de Matos, Nuno Rubim) estão na reserva – e eu não sei o que me estará ainda reservado.

Nunca gostei da expressão "cerco de Guileje" (se bem que, em certo sentido, possa ser apropriada) e – em texto de 2005 publicado no P63/74 de 27/1 – exprimo-me assim "Guileje foi isolado mediante a interdição dos seus acessos rodoviários a Gadamael e à água potável …". E, acima, refiro que Guileje era um destacamento "dependente, para o seu aprovisionamento de complicadas colunas rodoviárias múltiplas, de e para Gadamael, com uma pontualidade que poderia servir de exemplo à CP…".

Convém que estas afirmações sejam melhor explicitadas – nomeadamente no que se refere às colunas Guileje/Gadamael/Guileje aproveitando, para expressar uma sincera homenagem a duas unidades da FAP que muito admiro: a BA 12 (especialmente aos pilotos de Fiat G-91) e o BCP 12 e para fazer alguns comentários à última mensagem de António Matos Martins (*).

Numa próxima oportunidade enviarei uma mensagem, a qual – para alívio geral – será, espero, a última sobre este tema.

Em anexo, vai então um ficheiro, cujo interesse para publicação – de uma vez só ou fraccionadamente – deixo ao teu critério: é o Pastelão II, o qual, como é da praxe, é maior e mais temível do que o primeiro.

Abraço
João Seabra


Força Aérea, o BCP12 e a Coluna Guileje/Gadamael/Guileje (*)


A. Eu e a Força Aérea na Guiné


Refere António Martins de Matos, numa das suas mensagens, que a FAP na Guiné é (foi) muitas vezes esquecida e injustiçada.

Mas não por mim, certamente.

Sempre tive o maior respeito por este Ramo, por todas as suas acções de apoio, de projecção de forças helitransportadas, etc., desempenhadas, muitas vezes, em situações-limite, e com meios insuficientes.

Mas ao respeito acresce uma genuína e profunda admiração – que não é de agora – quando se trata de voo de combate.

E à admiração junta-se alguma inveja da minha parte, quando leio os textos do Miguel Pessoa e do Sr. Tenente-Coronel J. Pinto Ferreira: que capacidade para transmitir, clara e concisamente, tanta informação relevante, pontuando aspectos técnicos e acontecimentos trágicos com notas do mais fino humor!

Tal admiração que já vinha do antecedente, torna-se agora superlativa, ao tomar conhecimento cabal do esforço e da perícia exigidas aos 6 (seis!) técnicos pilotos de Fiat G-91 existentes na Guiné nos meses de Abril, Maio e Junho de 1973.

O que fica dito é evidentemente extensivo ao António Martins de Matos, apesar das nossas divergências em relação às concretas questões de que agora se trata.

E é justamente ao António Martins de Matos que eu peço para – em relação ao seu propósito de não escrever mais sobre este tema – abrir a seguinte excepção:
- Escreve-se no P3737 de 14/1/2009 (1) que "o ataque a Gadamael foi sustido depois de se ter bombardeado Kandiafara",

- Interessa-me (e interessará a muita gente) saber em que dia (ou dias) se verificou tal bombardeamento, quais os meios e armas utilizados, e, supondo que o respectivo resultado não foi fotografado ou filmado, quais as notícias que há a tal respeito, de que fontes, se foram observadas explosões secundárias, por quem e em que circunstâncias.

Se o António Martins de Matos não quiser (ou não puder) satisfazer a nossa curiosidade, servindo-se da sua Caderneta de Serviço Aéreo, ou de outros elementos, apelo para o Miguel Pessoa nos mesmos termos e para os mesmos efeitos.

B. Factos, argumentos, especulações, opiniões, interpretações e juízos de valor

Ao ler o P3872 (2) de António Martins de Matos (AMM), lembrei-me do último de uma série de e-mails que enviei, no ano passado, ao Nuno Rubim, que estava de partida para o Simpósio sobre o Guileje, prestando-lhe uma série de informações que ele me pediu, e lá encontrei o seguinte trecho:

"Não dê como bom tudo o que lhe conto, sem exame crítico e confronto com outras fontes".

Neste aspecto o trabalho do historiador tem certas semelhanças com o tratamento de informações militares.

No meu caso especial – além de eventuais falhas de memória e lapsos de percepção – há dois factores que podem afectar o meu discernimento:

- a minha lealdade ao Coronel Coutinho e Lima;
- a minha admiração sem limites pelo BCP 12.

Aliás, do lado do PAIGC também avultam certas, por assim dizer, liberdades poéticas, como, por exemplo, a do assalto a Guileje.

Vendo recentemente o filme “As Duas Faces da Guerra”, ouvi o Sr. Presidente da República de Cabo Verde dizer que uma coluna de Guileje para Gadamael tinha sido esmagada.

Portanto, este vosso amigo, a bem dizer, deveria ter contemplado todas estas peripécias – não do alto, como AMM – mas junto do Altíssimo.

Além disso, há também aqui uma motivação pessoal muito importante: se, na altura própria não discordei da decisão do Coronel Coutinho e Lima, seria asqueroso que agora o fizesse.

Não há, no que antecede, qualquer honestidade especial ou probidade intelectual a louvar. Aliás, na minha primeira intervenção, e antes de a tal ter sido perguntado, “aos costumes disse logo que me considero amigo do Coronel Coutinho e Lima”.

Dito isto, entendo que se se procura o registo do que efectivamente aconteceu – prescindindo do testemunho dos que estiveram em Guileje (de um lado e do outro) em Maio de 73 – o melhor é desistir já.

Os depoimentos de quem tem interesses especiais nas questões a resolver, não podem, nem devem, ser postos de parte. Devem, isso sim, ser ponderados com especiais cautelas, em função da sua consistência interna, e do confronto com outros elementos de prova.

Dirá AMM que não foi isso que disse. Mas é isso que vai pressuposto ou sugerido quando afirma que “devem ser os que não estiveram em Guileje que podem fazer uma análise crítica dos acontecimentos, pela simples razão que poderão fazer esse estudo com a cabeça e não como coração”.

Vai aqui implícito – mas não demonstrado – que quem não esteve em Guileje, por esse simples facto, está isento de “paixões demagógicas e de ideias pré-concebidas” (não gosto da expressão, mas é certo que está consagrada).

E, à cautela, ainda considera, dentro da vasta classe dos que “não estiveram em Guileje”, uma categoria residual: a dos que não pensam, porque se pensassem, pensariam como ele (AMM).

Sucede que é virtualmente impossível que alguém tenha estado na Guiné em 1973 não tenha qualquer ideia pré-concebida sobre os acontecimentos de Guileje.

Mais que não seja, porque a retirada, não autorizada pelo Comandante-Chefe, de uma guarnição de um destacamento, cria logo uma fortíssima aparência desfavorável, propícia a toda a espécie de pré-conceitos, pré-juízos, ou mesmo juízos sumários (que são naturais e não têm nada de censurável).

Veja-se, a este propósito, o Post 3881 de 12 Fevereiro (3), pelo Vasco da Gama, que afirma com toda a franqueza, que teve receio pela vinda da CCAV 8350 para o Cumbijã, achando melhor falar previamente com os seus homens a tal respeito.

Se se tratasse de submeter, agora, o sucedido em Guileje a qualquer tipo de julgamento – nem que fosse o célebre julgamento da história - aceitaria de bom grado a minha exclusão do júri, em nome da necessária distinção entre parte e julgador (mas teria sempre o direito de ser ouvido).

Mas como, segundo AMM, “não se trata de encontrar culpados ou inocentes”, não me considero desqualificado para o debate.

Dito isto, reconheço as minhas limitações, e não só aceito como agradeço a quem me quiser corrigir.

Afinal, corrigir os ignorantes é uma das obras de misericórdia espirituais (suponho até que vem logo a seguir a consolar os aflitos).

Àcerca da célebre distinção entre facto e opinião, diria que é muito mais árdua do que parece.

Aliás, diria mesmo que, em se tratando de condutas humanas – mesmo as mais triviais (bola na mão ou mão na bola, quem é que promoveu o contacto, etc.) – há sempre um vasto campo para a opinião.

Ensina-me até a minha experiência profissional, que é muito raro que duas, ou mais, pessoas que presenciaram o mesmo acontecimento o descrevam da mesma maneira (e, se o fizerem, é melhor desconfiar).

Ademais os factos são estabelecidos mediante provas, e no exame crítico das provas avultam sempre juízos de valor (portanto matéria de opinião), mais que não seja sobre o respectivo valor de convicção ou valor probatório.

Aliás, basta ligar a televisão para perceber que é muito frequente que as pessoas que mais estridentemente protestam, reportar-se só a factos, (por oposição a opiniões) terem a irresistível tendência para enunciarem, principalmente, conclusões destituídas de premissas ou fórmulas passe partout.

Finalmente, gostaria de acentuar o óbvio: os factos precisam de ser interpretados, só assim se apura o seu sentido e alcance ou, se quiserem, o seu significado.

Já em matéria de alcance de armas, pode-se aplicar a velha máxima, segundo a qual o material tem sempre razão (salvo avaria ou deterioração das munições).

No livro a Retirada do Guileje, há várias alusões a um canhão 85mm, a armas novas, a projécteis muito rápidos, a situações em que o lapso de tempo entre a saída e o impacto é de 3 ou 4 a 5 segundos, ou mesmo em que há o impacto primeiro e só depois se ouve a saída.

Confortavelmente instalado, e 36 anos depois, resolvi fazer uma busca apressada pelo WordWide Equipement, e lá encontrei as seguintes armas de artilharia de campanha:

a. O canhão (ou peça) soviético de 85 mm D44 (fotografia em anexo)

- Alcance em tiro indirecto: 15,65 Km
- Velocidade do projéctil à saída do cano: 1030 m/s
- Peso da granada: 10 Kg.
- Não é um canhão sem recuo. Tem um recuperador hidráulico.
- Foi produzido entre 1945 e 1953.

b. A peça de 130 mm M-46 modelo 1954, soviética (fotografia em anexo)

- Alcance em tiro indirecto c/projéctil Frag-HE OF-44: 22,5 Km
- Velocidade do projéctil à saída do cano: 930 m/s
- Peso da munição completa: 33 Kg

É hoje minha convicção que estas armas terão sido intensivamente utilizadas contra a nossa posição de Guileje, uma delas (a peça 85 mm) muito mais frequentemente do que a outra, e muito plausivelmente faziam fogo a partir da Guiné-Conacri. Suponho até que uma parte muito substancial do fogo IN teria essa origem.

A distância de Guileje ao ponto mais próximo da fronteira é de 7,5 Km; de Guileje a Kandiafara, em linha recta, é de 17,4 Km; e de Kandiafara a Gadamael, também em linha recta, 21,8 Km (Google Earth).

Mas lá está: é preciso mudar de armas.

Quer isto dizer que eu concordo com a tese de AMM? Não concordo.

Por um lado não atribuo o relevo que ele dá à questão de saber se o fogo de artilharia do IN vinha de dentro do nosso território ou da fronteira. Pelo contrário: acho que é uma questão relativamente secundária – por motivos que explicarei numa próxima oportunidade.

Por outro lado, entendo que houve fogo de outras armas:

- morteiro pesado 120 mm, se bem que utilizado de noite e em muito menor grau do que se verificou em Gadamael;

- canhão sem recuo B10 de 82 mm, arma muito portátil (no fundo tem certas semelhanças, de princípios de funcionamento, com alguns LGF, mas mais pesado e com maior alcance);

- morteiro 82 mm, o qual fazia parte da dotação dos bigrupos do IN.

Todas estas armas faziam, obrigatoriamente, fogo do lado de cá da fronteira.
As peças de artilharia de campanha são mais difíceis de regular do que os morteiros. As acima referidas estavam perfeitamente reguladas para Guileje: ao contrário do que sucedia em flagelações anteriores, a percentagem de impactos dentro do perímetro do aquartelamento excedia os 90%, melhorando de dia para dia.

Já em Gadamael o IN nunca conseguiu regular capazmente o tiro destas peças: ao fim de 24 horas de experiência, já sabia que os projécteis supersónicos caíam, na sua maior parte, na margem oposta do braço do rio Cacine que por lá passava, ou, quando muito, junto ao arame, pelo lado poente.

Já o morteiro pesado 120mm aí (em Gadamael) foi utilizado com grande intensidade e precisão, seguindo todas as movimentações mais significativas de pessoal dentro do quartel.

Não me pareceu que o GRAD 122 mm (Katiusha) tenha sido utilizado contra Guileje.

Foi-o todavia em Gadamael com uma certa precisão. Como é que sei? Vi restos dos respectivos projécteis, designadamente numa enorme cratera na parte inferior da pista.

Evidentemente que valem sempre – para o que antecede como para o que se segue – as prevenções anteriormente feitas para os meus eventuais lapsos de memória e erros de percepção.

Quem assim o entender, poderá conjecturar que a operação sobre Guileje foi cuidadosamente planeada, e que Gadamael terá sido um, por assim dizer, alvo de oportunidade, para o qual se aproveitou um poderoso dispositivo já reunido.

Também se poderá fazer suposições sobre o que ainda sobrava para Guileje, senão ocorresse a retirada: entre 31 de Maio e 2 de Junho houve tantos impactos dentro de Gadamael, como em Guileje durante quatro dias.

Em Gadamael, fiz uma observação muito mais aprofundada do tiro de armas pesadas do IN e dos seus efeitos do eu em Guileje.

Aliás em Guileje adquiri uma aversão especial e duas coisas: abrigos (preferi valas bem feitas e visão desimpedida para as orientações do fogo IN, e clara percepção dos seus efeitos acústicos) e itinerários obrigatórios.

Escusado será dizer que valas bem feitas (bons parapeitos, estreitas e profundas, em linha quebrada com um homem em cada segmento), era coisa que não existia em Guileje. E muito menos em Gadamael, onde, inicialmente, as valas, que não chegavam para toda a gente, eram largas e com cerca de 50cm de profundidade (quando muito), em segmentos de linha recta de grande extensão, de tal modo que, cada granada que lá caísse, enfiava logo três ou quatro pessoas.

C. O BCP 12

Quando a CCP 122 (transportada pelo rio Cacine) chegou a Gadamael, vindo da península do Catanhez (no dia 2JUN73 e não no dia 3, como saiu por lapso em meu escrito anterior), trazia consigo um conhecido meu: o Alferes Miliciano Pára Afonso, que andou no Liceu D. João de Castro com um dos meus irmãos.

Fomos conversando, e ele apresentou-me ao Comandante da sua Companhia, o Capitão Pára Terras Marques e, posteriormente, ao Comandante da CCP 123 Capitão Pára Cordeiro (morto estupidamente num acidente ocorrido num salto de grande altitude).

Se bem me recordo, a CCP 122 tomou posição ao longo do lado poente da Tabanca, paralelamente à pista. A sensação que eu tive, nos primeiros contactos, foi a de que aquela tropa já tinha sido puxada até aos limites, principalmente na complexa ocupação da península do Catanhez e, eventualmente, em outras operações.

No primeiro dia, constatei que a CCP 122 levava, talvez, vinte minutos a tentar sair do aquartelamento: a qualidade do fogo inimigo era tal, que dirigiam flagelações para os pontos onde se tentavam as saídas, orientados por um posto de observação avançada, situado (como se veio a descobrir) num local imediatamente a sul do braço do rio Cacine que passava por Gadamael, e numa quota relativamente mais alta, porque o quartel desenvolvia-se em declive suave até ao rio.

Muitas vezes, os bigrupos e as Companhias só se conseguiam agrupar já fora do arame. Notei que as tropas - pára-quedistas – devido ao seu treino e mentalidade eminentemente ofensivos – reagiam, às vezes, um pouco temperamentalmente ao facto de se verem batidas passivamente, no aquartelamento, pelo fogo das armas pesadas do IN.

De qualquer modo, diria que passavam muito mais tempo fora do que dentro do aquartelamento, tendo sempre em Cacine, em recuperação, uma das Companhias.

Pois bem: o dispositivo do IN em torno de Gadamael foi, ao longo de três ou quatro semanas de operações, literalmente empurrado pelo BCP 12, desde o arame de Gadamael até bem para lá da fronteira com a Guiné-Conacri.

O fogo do IN foi perdendo não só intensidade como, sobretudo, qualidade (à medida que lhe era negada a observação avançada), e as, por assim dizer, bases de fogos que tivesse a veleidade de manter, dentro do alcance de Gadamael, seriam inevitavelmente cercadas e aniquiladas.

Evidentemente que a FAP desempenhou aqui um importante papel: o seu apoio de fogo às operações do BCP 12 foi intensíssimo.

Contra ela o IN reagia com tudo o que tinha disponível, além do Strela (sobre cujo uso só posso conjecturar), recordo-me distintamente de ouvir insistente fogo de anti-aérea convencional, provavelmente de quádruplas.

Efectivamente os Fiat G91 estavam, nessa altura, pintados de cinzento metálico. Julgo até recordar-me de um dos seus indicativos rádio: "Níquel" (mas também posso estar a divagar).

Suponho que havia todo um histórico de colaboração profissional entre o BCP 12 e os pilotos de Fiat-G91, que tornava a combinação muito eficiente.

A este propósito, o António Martins de Matos tem toda a razão: o apoio de fogo pela FAP tem toda a sua eficácia muito condicionada à colaboração das forças terrestres, e compreendo a exasperação de um piloto que só obtém indicações vagas.

Em 21 de Junho de 73, a CCP 121, comandada pelo então Tenente (hoje Major General) Hugo Borges, aproveitando o barulho da chuva torrencial, conseguiu cercar um importante acampamento do IN 8 Km a sudeste de Gadamael – tendo conseguido entrar dentro das valas deles e aberto fogo a partir daí.

Não consigo descrever os metros cúbicos de armamento e munições capturados, parte dele transportado em Zebro do DFE n.º 22 para Cacine, e o restante, por terra, para Gadamael.

Foi esta mesma Companhia que, em 23 de Maio, saiu de Binta e chegou a Guidage, sofrendo quatro mortos embora a coluna, e os elementos dos DFE n.ºs 1 e 4 que a acompanhavam, terem tido de voltar para trás.

Nem esta Companhia, nem o Batalhão, tiveram qualquer condecoração, individual ou colectiva, por estas acções.

Segundo a verdade oficial da época, salvaram Gadamael o Capitão (Major General) Manuel Soares Monge, e o Coronel (Major General) Rafael Durão.

O primeiro destes oficiais é, sem dúvida, uma pessoa inteligente e sensata, e a sua influência junto do General Comandante-Chefe terá, certamente, contribuído para que tenham sido, tardiamente, tomadas as decisões que se impunham sobre Gadamael.

Como escrevi ao Nuno Rubim, compreendo que aos responsáveis, actuais e passados, da Guiné Bissau não lhe apeteça organizar um simpósio sobre a temática compreensiva de Guileje e Gadamael.

Mas que os nossos responsáveis, à época das ocorrências, tenham votado ao esquecimento o desempenho do BCP 12 em Gadamael, é triste. Muito triste.

Uns dias antes do sucesso da CCP 121, a CCP 122 teve a infelicidade de cair em forte emboscada, onde sofreu, parece-me, cerca de quinze feridos, os quais vieram aos ombros dos seus companheiros até ao aquartelamento, e daí foram evacuados por sintex ou Zebros para Cacine.

Foi portanto com grande surpresa que li o P3783 (4) de António Martins de Matos, onde refere ter o Major Raul Folques, ferido, dito por rádio: “Ó Tigres, não se vão embora que estes… querem deixar-me aqui, sozinho”.

Como também me surpreende, a referência, na operação Ametista Real, a desaparecidos (três, segundo Matos Gomes, treze segundo Almeida Bruno) – mas aqui a surpresa resulta certamente da ignorância das circunstâncias concretas.

Especulando com meras aparências, poderia dizer que o BCP 12 tinha uma, por assim dizer, técnica de combate diferente.

Não quero deixar passar a oportunidade sem homenagear a memória do Sr. Tenente Coronel (Coronel Pára) Sílvio Araújo e Sá, Comandante do BCP 12 e do COP5 desde 5/6/73.

Admito que a extremidade do esforço a que teve de submeter a sua unidade, lhe tenha proporcionado inimizades dentro dos seus subordinados.

Para mim, no entanto, constituiu uma grande novidade: um Comandante perfeitamente lúcido (numa altura em que os mais altos responsáveis andavam à deriva, a começar pela General Comandante-Chefe), que tinha uma noção precisa da situação, e os meios indispensáveis para sobre ela actuar.

Convém salientar que o BCP 12 actuou em Gadamael abordando o IN, e o seu dispositivo, nas circunstâncias e nas oportunidades que entendia, e que eram as escolhidas pelo seu perspicaz oficial de operações Major (Coronel) Moura Calheiros, sem quaisquer restrições impostas pelo uso de itinerários obrigatórios ou constrangimentos de abastecimento e rotação de pessoal, o que tudo fluía, à vontade, pelo Rio Cacine.

Fica então aqui este testemunho de um não-pára-quedista, que eu entendo dever prestar, porque, tanto quanto os conheço, se nos dirigirmos à maior parte deles, é difícil arrancar-lhes mais que cinco palavras: - “Fez-se o que foi preciso”.

D. A Coluna Guileje-Gadamael-Guileje

1. Como já referi, Guileje dependia, em absoluto, de colunas de reabastecimento de e para Gadamael, cujo processo de execução se passa a sumariar:

a. Saíam de Guileje dois pelotões da respectiva Companhia e uma secção de milícias picando a estrada;

b. À frente ia a milícia, a qual, a partir da ramificação, para Guileje, da estrada Gadamael-Gadembel (ponto B do extracto de carta em anexo, e de ora em diante o cruzamento) flanqueava a estrada, isto é: seguia um itinerário paralelo, a 30 ou 40 metros da mesma, do lado da fronteira;

c. O pelotão da frente da nossa Companhia (determinado por escala), prosseguia pela estrada, indo estacionar perto de um pontão sobre o rio Bendugo, cerca de 5 Km adiante do dito cruzamento, no limite da Zona de acção da Companhia;

d. O pelotão de trás instalava-se no cruzamento;

e. Do lado de Gadamael adoptavam-se disposições idênticas;

f. Estabelecida a segurança lateral do lado da fronteira, partiam: uma coluna (carregada) de Gadamael para Guileje, e outra de Guileje para Gadamael para ir aí carregar;

g. Ambas as colunas levavam embarcado um pelotão das respectivas Companhias;

h. A coluna de Guileje levava ainda uma autometralhadora Fox (c/duas metralhadoras pesadas Browning 12,7 e 7,9) e uma viatura descoberta White com uma Breda 7,9 mm;

i. A coluna de Gadamael para Guileje levava uma viatura White;

j. A estrada era muito apertada, a mata, de ambos os lados, muito fechada, e o único sítio onde as duas colunas se podiam cruzar era, justamente, perto do pontão sobre o rio Bendugo: a que chegasse primeiro, esperava pela outra;

k. A coluna de Gadamael descarregava em Guileje e regressava;

l. A coluna de Guileje carregava em Gadamael e regressava;

m. Concluídas estas extraordinárias manobras (que se iniciavam pelas 7.00h), os pelotões de segurança apeados regressavam aos aquartelamentos respectivos (o que sucedia pelas 15.00h)

n. Durante a execução das colunas estava estacionada (parece-me) na pista de Guileje, uma DO-27 armada com rokets e foguetes. A partir de Abril as colunas deixaram de contar com protecção aérea por este meio.

Estas manobras, que envolviam cerca de 80% do efectivo de cada Companhia, não tinham, para o Comando-Chefe, a consideração de actividade operacional.

Entre Junho e Outubro todas as linhas de água que passavam por esta estrada transbordavam, e Guileje ficava isolada de Gadamael durante 4 meses. Razão pela qual, durante o mês de Maio, as colunas se efectuavam dia-sim, dia-não, seguindo sempre os mesmos horários e rotinas.

Tal frequência, comprometia, inevitavelmente, a actividade de patrulhamento das duas Companhias envolvidas.

No caso particular do ano de 1973, era necessário pôr em Guileje todos os abastecimentos necessários para 4 meses de isolamento, e ainda os obuses 14 cm que chegavam, levar as peças 11,4 cm, que partiam, e respectivas munições, o que poderia determinar que as colunas viessem a ser diárias.

2. Combates do dia 18 de Maio de 1973

Na semana anterior, por ordem do Major (Coronel) Coutinho e Lima, saí com o meu pelotão para tentar regular o tiro de um morteiro 10,7 cm (o outro foi requisitado, com as respectivas munições para Cufar), para o chamado cruzamento (ponto B da carta em anexo).

Após várias tentativas e aproximações, julguei aperceber-me de dois ou três impactos, senão no cruzamento, pelo menos lá perto.

Aproximei-me para tentar o reconhecimento dos pontos de impacto, mas não consegui, por a mata ser muito densa.

No dia 18 de Maio de 1973, às 7.00h, saíram de Guileje, por esta ordem:

- uma secção de milícias reforçada;
- o pelotão do alferes Manuel Reis, destinado a estacionar no Bendugo;
- o meu pelotão, destinado a estacionar no cruzamento.

Como se verá, com início a 200 ou 250 metros do cruzamento, o IN tinha instalado, na estrada, 16 a 18 potentes fornilhos, os quais, por serem accionados à distância por um dispositivo eléctrico, podiam ser enterrados a profundidade que evitasse a sua detecção pelas picas – trabalho de sapadores especiais.

Tinha chovido durante a noite, e o sargento de milícias deparou-se com uma pegada (livro a Retirada de Guileje), ou com um troço de fio eléctrico (segundo me contaram outros milícias), e começou a sondar com a pica.

Foi logo abatido, eventualmente por um atirador especial.

Imediatamente todos (ou grande parte) dos fornilhos foram accionados (prematuramente) por controlo remoto, seguindo-se uma fortíssima acção de fogo do inimigo (várias metralhadoras ligeiras e LGF RPG7), causando imediatamente 4 feridos graves e alguns ligeiros, além do morto já referenciado.
O morteiro 10,7cm do aquartelamento fez dois ou três tiros, tendo suspendido o fogo por indicação do alferes Manuel Reis porque as granadas quase caíram em cima do nosso pessoal.

Refira-se que havia um único especialista em armas pesadas de infantaria, o Furriel Mil Neves, que estava incluído no GC do Alferes Manuel Reis, estando o tiro de morteiro 10,7 , nesse dia, cometido ao 1.º Sargento encarregado do material Dias Ferreira.

E porque é que o Manuel Reis levou o único especialista em morteiros pesados da Companhia? Provavelmente porque não tinha outro Furriel disponível.

Enquanto isto se passava, eu estava situado no pontão do rio Mangojá, e pensei abrir fogo de morteiro 60mm.

Acabei por não o fazer, por não ter confiança, nem em mim próprio, nem no atirador habitual, para fazer tiro indirecto a tão curta distância, temendo um acidente por fogo amigo.

Entretanto o Manuel Reis recuou, trazendo os feridos graves, e cedeu-me a vez. Já tinha levado a sua dose (e que dose!).

Ficaram junto da cratera do 1.º fornilho, o cadáver do sargento da milícia e várias armas.

Pedi via rádio, que transmitissem ao Capitão Quintas que pretendia que me enviassem a Fox, a White, um unimogue e dois morteiros 60 mm e respectivos pratos.

Com cerca de 12 homens do meu pelotão (e dois do pelotão do Manuel Reis que se voluntariaram, vindo um deles a morrer) saímos da estrada para a esquerda (em relação ao sentido da nossa marcha) em linha pelo resto da lala do rio Magojá, fazendo fogo para a orla do mato denso com tudo o que tínhamos (dilagramas, LGF 8,9 etc.).

Reentrámos na estrada no local onde estavam o cadáver do Sargento de milícias e as armas abandonadas, e avancei até à cratera aberta pelo 3.º fornilho.

Entretanto, chegou à estrada (pontão sobre o rio Mangojá) não o que eu tinha pedido (Fox e Unimogue) mas a coluna completa, com a Fox em 2.ª posição.

Voltei a correr para trás, soltando todas as improprérios que me vieram à cabeça.

Enfim, tristes figuras.

Conseguimos que a Fox passasse para a frente, e tomasse posição imediatamente antes da cratera do 1.º fornilho.

O pelotão da CCaç 3520 (Companhia de Cacine) que estava de reforço a Guileje, apeou-se no ponto A, do extracto de carta anexo, e aí ficou.

Na coluna vieram mais quatro milícias entre as quais o velho Adulai Sila ou Adulai caçador (morreu em Gadamael) cuja presença me acalmou.

Entretanto, passou por mim disparado um corrécio – Furriel Mil Op Esp Marques dos Santos, transferido para o COP5 na sequência de uma punição - transportando um morteiro 60mm sem prato e uma caixa das respectivas granadas, que me ultrapassou em cerca de 20 metros (ainda lhe gritei: - Pára aí!).

Seguiu-se nova e violenta acção de fogo do IN (metralhadoras ligeiras e RPG7).

Na altura eu estava em pé na estrada (que estupidez!), com um LGF 8,9 nas mãos, que um milícia (Tala Camará) tentava municiar.

O dito milícia levou um tiro que lhe entrou por debaixo da clavícula esquerda e lhe saiu por cima da omoplata do mesmo lado, mas só carne limpa.

Saltei para dentro da cratera do 3.º fornilho, arrastando-o comigo.

As Browning 12,7 e 7,9 da Fox (que enfiavam a estrada), responderam ao fogo IN, enquanto este durou.

O 1.º Cabo Rabaço, do pelotão do Manuel Reis, que estava duas ou três posições atrás de mim (com o lança rockets de 37 mm), foi atingido por estilhaços do RPG7, sendo que, ao que julgo lembrar-me, um deles se terá cravado entre duas vértebras. Morreu no quartel, 3,5 horas depois, por falta de evacuação.

O Furriel Marques dos Santos escapou miraculosamente, mas deixou, no ponto onde retrocedeu, o morteiro 60 e respectiva caixa de granadas.

Nunca pensei que 20 metros fossem uma distância tão grande. Enfim, eu e o Adulai Sila lá fomos, em sprint, buscar o morteiro e as granadas, e só à volta o IN reagiu pelo fogo.

Lembro-me que mergulhei para a cratera do 3.º ou 4.º fornilho de tal maneira que parti a coronha da G3.

Enquanto isto, não consegui restabelecer o fogo do morteiro 10,7. Um obus 14 terá feito 55 a 70 tiros, tendo os projécteis caído in the middle of nowhere, alguns, muito para sudeste do cruzamento (já me referi em escrito anterior, aos problemas de falta de regulação do tiro desta arma).

Retirámos para a aquartelamento, tendo a Fox de fazer mais de 100 metros em marcha atrás.

Da parte do inimigo não me parece que tenham praticado um grande feito de armas.

Perante pouco mais de uma dúzia de espontâneos, vagamente comandados por um atarantado alferes, tinham a obrigação de nos abater ou capturar a todos.

Não me parece que uma Fox imobilizada fosse grande obstáculo para uma dúzia de RPG2 e RPG7.

Tudo visto, não apanharam uma arma sequer.

Não houve apoio aéreo por falta de condições meteorológicas (nuvens baixas?).

A Repoper recomendou que, de futuro, se coordenassem as colunas com as condições meteorológicas adequadas.

O que o Coronel Coutinho e Lima poderia fazer talvez (e digo-o sem raiva) – lançando cartas de Tarot.

Ainda por cima, atenta a minha rudimentar instrução militar, confesso que não saberia como lidar com um ATAP, na modalidade de bombardeamento a picar, com bombas de 750 libras, lançadas dos 5000 pés.

Provavelmente, teríamos que nos dirigir para o ponto A da carta anexa, e depois ir reconhecer o resultado.

E nem quero imaginar o que seria, se o ATAP fosse dirigido a partir do aquartelamento.

Quanto ao efectivo que nos emboscou, estimo-o em um bigrupo (40 homens, fora os sapadores especiais) talvez um bigrupo reforçado (70 homens) das FAN (forças armadas nacionais) e não das FAL (forças armadas locais).

Como?

a. Considerando a intensidade do fogo de metralhadoras ligeiras Degtyarev: não seriam menos do que 4 ou 5 destas armas.

b. O fogo de RPG7 foi intenso, sempre enfiando a estrada. Nas imediações do ponto B a mata é densíssima e é impossível usar esta arma. Onde a mata abre, e é possível dispará-la é no cruzamento propriamente dito. Calculo portanto que o dispositivo inimigo teria uma extensão de 200 a 250 metros.

Evidentemente que só poderia ter a certeza se mandasse parar a guerra com um apito, e passasse revista à subunidade inimiga (podia ser que encontrasse algum tão mal ataviado como o Vasco da Gama).

E como é que eu sei que havia 16 a 18 fornilhos e não menos?

A bem dizer não sei: só fui até à 6.ª cratera. Penso todavia, ter visto mais duas à frente.

O Comandante Fefé Cofre do PAIGC refere 18 fornilhos comandados por “cordão que ia até aos abrigos dos sapadores” (“As Duas Faces da Guerra”, testemunho a considerar com as reservas já enunciadas).

Posto isto, pode-se conjecturar sobre o que deveríamos ter feito.

Envolver o IN?

Com o efectivo disponível, não sei quem é que envolveria quem. Ademais o IN deveria ter-se prevenido contra essa manobra, quer com minas e armadilhas (aproveitando os seus sapadores) quer com uma equipa de reserva por detrás do seu dispositivo.

Sondar, mais profundamente, a zona de morte da emboscada? Até onde? Até ao 10.º fornilho? Até ao 18.º?

Uma coisa tenho eu por certa: se não fosse o Sargento da milícia Jan Samba, e a nossa coluna apeada tivesse entrado mais 200 (ou 100) metros, o Coronel Coutinho e Lima poderia ter-se apresentado, no seu briefing com o General Comandante Chefe, levando – a crédito das suas modestas pretensões – uma carnificina satisfatória.

Uma curiosidade:

36 horas antes destes acontecimentos, a estrada tinha sido toda picada, tinha-se realizado colunas nos moldes descritos e – no local onde o IN montou o seu dispositivo – esteve instalado um Gr Comb nosso.

É caso para dizer que quem vai ao mar perde o lugar. E também para introduzir um tema que, ao que parece, o António Martins de Matos não leva em devida consideração: O IN tinha o irritante hábito de se movimentar.

Outra curiosidade:

O milícia Tala Camará (não confundir com outro, o Tala Uri Camará), veio para Portugal, em meados da década de oitenta. Falando muito mal o português, foi ao Depósito de Adidos (onde fui desmobilizado) e apareceu em casa dos meus sogros, cuja morada eu tinha indicado como meu domicílio na disponibilidade, procurando por mim.

João Seabra

Canhão (ou peça) soviético de 85 mm D44

Peça de 130 mm M-46 modelo 1954, soviética

Extracto de Carta

Fotos: © João Seabra (2009). Direitos reservados.

__________

Notas de CV:

Vd. postes de:

(1) 14 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3737: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (11): Um erro de 'casting', o comandante do COP 5 (António Martins de Matos)

(2) 11 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3872: A retirada de Guileje, por Coutinho e Lima (21): Resposta de António Martins de Matos a Nuno Rubim

(3) 12 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3881: Considerações sobre o P3853: Apontamentos sobre Guileje e Gadamael (Vasco da Gama)

(4) 23 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3783: FAP (1): A diferença entre o desastre e a segurança das tropas terrestres (António Martins de Matos, Ten Gen Pilav Res)

(*) Vd. postes da série Dossiê Guieje / Gadamael 1973:

24 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3788: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (1): Depoimento de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

24 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3789: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (2): Esclarecimento adicional de Manuel Reis (ex-Alf Mil, CCav 8350)

25 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3790: Dossiê Guileje / Gadamael (3): "Um precedente grave" (Diário, Mansoa, 28 de Maio de 1973) ... (António Graça de Abreu)

27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3801: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (4): Cobarde num dia, herói no outro (João Seabra, ex-Alf Mil, CCav 8350)

29 de Janeiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3816: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (5): Strellado nos céus de Guileje, em 25 de Março de 1973 (Miguel Pessoa, ex-Ten Pilav)

1 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P3954: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (6): A posição, mais difícil do que a minha, do Cap Cmd Ferreira da Silva (João Seabra)

4 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3982: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (7): Ferreira da Silva, ex-Capitão Comando, novo comandante do COP 5 a partir de 31/5/1973

15 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4035: Dossiê Guileje / Gadamael 1973 (8): Amigo Paiva, confirmas que fomos vítimas de ameaças e pressões (Manuel Reis)

Guiné 63/74 - P4238: Blogpoesia (40): A tua última emboscada, irmão (José Brás)

1. Mais um belo texto do poemário do José Brás, alentejano, reformado da TAP, vivendo hoje em Montemor-O-Novo, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622 (Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), autor do romance Vindimas no Capim, Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura) (*):




Irmão

de valor carecem
as palavras
que eu queira construir
sobre
o mistério grande
do teu corpo agora
inerte

tu que alongaste os dias
cruzando o mar
na memória
da voz quente
das cidades
nem ouves aquelas
à tua volta
sussurrando espantadas
sobre as glórias que tiveste
o costume do sorriso ou
simplesmente
a trivialidade da morte

da tua última emboscada
ninguém dirá
que a perdeste
ou que a ganhaste
se não é
ainda dado
a humano
ler na paz definitiva
que te vara o rosto
seguro é
nos companheiros
todos
da travessia
que por dentro de nós
fizeste
o futuro guardará
a palavra
irmão

José Brás

[Revisão / fixação de texto: L.G.] (**)
________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3842: Tabanca Grande (111): José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Guiné 1966/68

(**) Vd. a lista completa dos postes desta série (Blogpoesia):

16 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4196: Blogpoesia (39): CCAÇ 557, Missão cumprida na Guiné (José Colaço/Francisco dos Santos)

6 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4147: Blogpoesia (38): A Criatura e Rambo Guinéu (Manuel Maia)

30 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4112: Blogpoesia (37): Para fechar o dia dos poetas da guerra colonial, celebrado hoje, aqui e em Coimbra... (Alberto Branquinho)

30 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4109: Blogpoesia (36): E Viva a Vida, Vida a Poesia! (Jorge Cabral)

30 de Março de 2009 Guiné 63/74 - P4107: Blogpoesia (35): Tinhas no olhar / sinais seguros de esperança... (José Brás)

29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4100: Blogpoesia (34): Regressei um dia / lavando a alma na espuma das lágrimas... (António Graça de Abreu)

27 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4087: Blogpoesia (33) : O bardo de Cafal Balanta (Manuel Maia)

25 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4078: Blogpoesia (32): João, 20 anos, apto para todo o serviço... (José Brás)

15 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4037: Blogpoesia (31): Quando eu era menino e moço... (Manuel Maia)

9 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3858: Blogpoesia (30): Em Cutima, tabanca fula... (José Brás / Mário Fitas)

31 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3688: Blogpoesia (29): Este ano não mandei cartões de boas festas a ninguém (Luís Graça)

28 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3672: Blogpoesia (28): O Menino Jesus chinês (António Graça de Abreu)

25 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3669: Blogpoesia (27): A velha Amura dos tugas (Luís Graça)

26 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3243: Blogpoesia (26): 35 anos de Guiné-Bissau: A minha contribuição para a tua festa, meu irmão, minha irmã (Luís Graça)

11 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3193: Blogpoesia (25): Hoje tenho pena de nunca ter escrito um aerograma a uma madrinha de guerra (Luís Graça)

6 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3178: Blogpoesia (24): A minha pequenez é que era uma tristeza (Rui A. Ferreira)

4 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3169: Blogpoesia (23): Amálgama de sentimentos e emoções...(Rui A. Ferreira)

6 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3115: Blogpoesia (22): No mesmo navio, piscina e música em camarote de 1ª, suor nos porões...(José Belo).

[Por lapso, houve um salto na numeração, de 10 para 22]

30 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2701: Blogpoesia (10): Olhando para uma foto minha, no Mato Cão, ao pôr do sol, com o Furriel Bonito... (Joaquim Mexia Alves)

27 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2589: Blogpoesia (9): Sangue derramado (José Manuel, Mampatá, 1972/74)

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

12 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2259: Blogpoesia (7): Nas terras de Darsalam, no Cantanhez, adormeceste, para sempre, como herói, meu querido Sasso (J.L. Mendes Gomes)

7 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2248: Blogpoesia (6): África Raiz, de Fernanda de Castro

16 de Outubro de 2007 > Guiné 63774 - P2180: Blogpoesia (5): O vigésimo sexto aniversário de um gajo nada sério, Missirá, 6 de Novembro de 1970 (Jorge Cabral)

23 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2125: Blogpoesia (4) : A morte do pássaro de areia (Luís Graça)

30 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2009: Blogpoesia (3): Explorador ? Mineiro ? Não, um Soldado ! (Jorge Cabral)

18 de Julho de 2007 > Guine 63/74 - P1964: Blogpoesia (2): O Combatente (Magalhães Ribeiro)

17 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1963: Blogpoesia (1): O embondeiro do Cachil (J. L. Mendes Gomes)

Guiné 63/74 - P4237: Estórias do Jorge Fontinha (6): O 4.º GCOMB / CCAÇ 2791, destacado no CAOP 1 - Teixeira Pinto

1. Mensagem de Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 20 de Abril de 2009:

Carlos Vinhal.
Com um abraço de estima para ti e toda a Tabanca, junto em anexo, mais uma Estória.
Jorge Fontinha


O 4.º Grupo de Combate, destacado no CAOP 1
Teixeira Pinto


Entre 4 de Janeiro e 25 de Maio de 1971, o 4.º Grupo de Combate da CCAÇ 2791, ficou às ordens do Comando do CAOP 1, de Teixeira Pinto, tendo a restante Companhia ficado em Bula.

A nossa acção, desdobra-se activamente em patrulhamentos, seguranças e emboscadas, no avanço e cadência de ritmo de trabalhos da estrada Teixeira Pinto-Cacheu, entretanto accionada pelo CAOP 1. A actividade era constante, nomeadamente, no apoio às tropas Especiais: Comandos, Pára-quedistas e Fuzileiros, servindo nós, sobretudo, nas acções de patrulhamento e segurança de Teixeira Pinto, Ponte Alferes Nunes e a todas as obras de Engenharia, a desenvolver-se, na construção da estrada, bem como na sua desmatação.

Jorge Fontinha, numa das suas folgas

Tínhamos, naturalmente, as nossas folgas. Nos momentos livres, aproveitávamos para confraternizar, com alguns amigos, que entretanto íamos angariando. A dada altura, frequentando determinado restaurante local, propriedade de uma família cabo-verdiana, travei conhecimento (vou propositadamente omitir nomes), amizade pessoal com uma das filhas do casal, funcionária, num organismo Público de Teixeira Pinto. Por seu intermédio, passei a relacionar-me, com um grupo de amigos, liderados por um Chefe de Posto da região, de nome Júlio e seu séquito de Professoras de Posto, todas elas também cabo-verdianas, com as quais passamos alguns bons momentos, nomeadamente, frequentando certas praias só por eles conhecidas e cujos fins-de-semana, ficaram famosos.

Praia próxima de Teixeira Pinto. Belo fim de semana…

Este período, começou a tornar-se arriscado, pondo em risco a minha integridade física. Nem sempre era fácil passar despercebido e fora de serviço, a inconsciência naquela idade, era o meu forte! Valeu-me os bons conselhos do mais prudente Antonino Chaves, meu camarada e furriel, que compartilhava comigo, a condução do Grupo de Combate. O bom Obelix, que não se metia em alhadas como eu. Bem, também tinha os meus guarda-costas!… O Cabo Tony, o Soldado Lobo e mais alguns!...

Teixeira Pinto, não era só, tropa e população local. Havia uma comunidade muito grande de cabo-verdianos que ocupavam os lugares de Administração Pública e, sobretudo de libaneses que dominavam o comércio local e alguns lugares de lazer e jogo. Perdia-se e ganhava-se alguns salários e algumas pequenas fortunas. Felizmente eu só lá ia beber um copo e ver as manobras de bastidores das belas libanesas e de algumas profissionais, vindas de Lisboa influenciando alguns incautos jogadores de Poker. Mas que elas tinham habilidade, isso tinham! Alguns oficiais e sargentos, saíram de lá depenados. Havia um célebre capitão cujo nome, naturalmente também vou omitir, que perdeu alguns cobres, mais ou menos substanciais e até, ao que se constava, ainda por lá deixou descendência. Julgo que eu não deixei! Quem ganhou, julgo que bastante, foi um Agrimensor Civil, que se encontrava em Teixeira Pinto, prestando Serviço Público, à construção da Estrada cuja protecção era por nós prestada. Este senhor fazia-se acompanhar duma certa senhora que o acompanhava na sala de jogo e que constantemente se sentava junto ao referido Capitão…

Depois de passar à disponibilidade, vi-a em Cascais e reconhecendo-me, despistou-me e nunca mais a vi.

Foi um bom tempo, que era constantemente interrompido pelo dever, e aí não podia e nunca fui imprudente e inconsciente. Pelo contrário e até o senhor Major de Operações do CAOP 1, aproveitava para me chamar a atenção, rindo-se dos meus períodos de lazer, a quando nos encontrávamos a sós, no seu gabinete, onde tinha que ir periodicamente, receber instruções. Operacionalmente, ele contava comigo. Para ele e para mim, era o que contava.

Jorge Fontinha e Antonino Chaves, furriéis do 4.º Grupo de Combate/CCAÇ 2791

Aquele grande abraço pr’aTabanca
Jorge Fontinha
__________

Nota de CV:

Vd. último poste de 18 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4048: Estórias do Jorge Fontinha (5): Lavadeiras de Bula

Guiné 63/74 - P4236: Convívios (118): Pessoal das CCAÇs 2381 e 2382, no dia 9 de Maio de 2009, em Alferrarede - Abrantes (José Teixeira)

1. Mensagem de José Teixeira,ex-1.º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá e Empada, 1968/70, com data de 20 de Abril de 2009:
Camaradas.

As CCaç 2381, 2382 e 2383, sendo Companhias Independentes, formaram-se ao mesmo tempo em Abrantes. Partiram juntas para a Guiné e do mesmo modo regressaram juntas. Pena é que não tivessem regressado todos.

A CCaç 2381 e a 2382 andaram bastante tempo juntas no teatro de guerra, nomeadamente em Buba na abertura da estrada nova para Aldeia Formosa.
Ao fim de tantos anos vai ser possível reunir estas duas Companhias num almoço convívio, em comum, graças ao Blogue da Tabanca Grande e à iniciativa do Manuel Traquina da CCaç 2382.

Se houver alguém na Tertúlia que esteja ligado à CCaç 2383, que dê sinal de vida. Apareça, que será bem recebido.

Solicito o favor de publicitarem esta iniciativa
Junto a carta que foi enviada a todos os membros destas duas companhias

José Teixeira
Esquilo Sorridente



Almoço / Convívio 2009 das CCaç 2381 e CCaç 2382

DATA: 09 de Maio de 2009


Restaurante: Quinta do Lago - Alferrarede - Abrantes

quinta.lago@santosemarcal.pt

Programa

10,00: - Concentração junto à Escola Prática de Cavalaria (antigo RI2)

11,00: - Visita ao aquartelamento e colocação de coroa de flores junto ao monumento dos mortos na Guerra Colonial.

12,00: – Saída para o restaurante Quinta do Lago

13,00: – Almoço

15,30: – Apresentação do livro “Os Tempos de Guerra – De Abrantes à Guiné” de Manuel B. Traquina da CCaç 2382

Os Tempos de Guerra - De Abrantes à Guiné, livro de autoria do nosso camarada Manuel Traquina


Ementa

Bacalhau c/molho de ostras e batata a murro
Bochechas de porco preto c/migas
(pratos alternativos)

Mesa de doces e frutas
Bolos das Companhias, Bebidas várias, café, digestivos, etc

Preço: - Adultos 24,00 Euros - Até aos 4 anos gratuito - Dos 4 aos 10 anos 12,00 Euros

Solicita-se confirmação até 5 de Maio para:

CCAÇ 2382 - M. Traquina Tel. - 241 107 046 / 933 442 582
CCAÇ 2381 - J. Teixeira Tel. - 966 238 626 / e-mail: jteixei@msn.com

Dado que se espera uma grande adesão, por favor CONFIRMA com devido tempo.

NOTA: Traz o teu crachá, o guião, condecorações e fotografias para rever e reviver

Na esperança de te poder abraçar com alegria, subscrevemo-nos

CCaç 2381
José Teixeira

CCaç 2382
Manuel Traquina

Cróquis da localização da EPC (RI 2) e do Restaurante da Quinta do Lago
__________

Nota CV:

Vd. último poste de 22 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4231: Convívios (115): Pessoal da CCS/BCAÇ 4612, no dia 2 de Maio de 2009, em Benavente (Jorge Canhão)

quarta-feira, 22 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4235: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (3): Recordar aos poucos ou circuncisão espectacular

1. Em 21 de Abril, Helder Sousa (*), ex-Fur Mil de Transmissões TSF, Piche e Bissau, 1970/72, enviou-nos esta mensagem, relembrando uma mais antiga:

Caro Editor-Chefe.

No passado dia 24 de Março enviei este mail para o endereço recomendado do Blogue.
Foi só para ele.
Como entretanto li que, devido à possibilidade de acumulação de material, era recomendável enviar-te também para este teu endereço do gmail, aqui o estou a fazer.
Se achares que deve ser encurtado ou coisa assim, podes dizer que tratarei de o dividir como conseguir.

Até lá, votos de continuação de bom trabalho (mereces mais do que uma menção honrosa, mereces AJUDA!) e até breve.

Um abraço
Hélder S.


2. Mensagem anterior com data de 24 de Março de 2009:

Caros camaradas Luís, Carlos e Virgínio

Junto anexo um texto que escrevi a propósito da questão das memórias.

A partir duma pequena parte dum texto colocado no Blogue, recordei-me dum episódio que se tinha passado comigo e da qual já nem me lembrava.`

É essa situação que relato.

Acho que o processo da reconstituição da memória colectiva deve passar por um processo semelhante, com avanços assentes nos vários contributos que todos, e cada um, consigam fazer aportar a este rio comum, que é o nosso Blogue.

Se acharem que tem cabimento, publiquem.

Um abraço para toda Tabanca, do tamanho do rio que escolherem.
Hélder Sousa


RECORDAR AOS POUCOS

Esta coisa da memória de cada um, tem que se lhe diga.

Vou relatar um episódio que se passou comigo, que agora recordei, e desde já peço desculpa, principalmente ao Alberto Branquinho, por ir falar de mim e do meu umbigo…. ou quase!

Durante anos praticamente esqueci a Guiné mas através do nosso Blogue, pelas leituras dos relatos, das histórias dos vários intervenientes, pelas conversas que entretanto se vai tendo com os novos amigos ou com os antigos reencontrados, lá se vai fazendo cada vez mais luz.

Por exemplo, tenho dito que passei cerca de 6 meses (não chegou bem) em Piche, junto da sede do BCAV 2922. Sei que cheguei lá no início de Dezembro de 1970, dia 4 ou 5, não me lembro bem, e regressei a Bissau no final de Maio de 1971, salvo erro a 25, pelo menos é neste momento a ideia que tenho. Pelo meio, aí pelo dia 15 de Abril de 1971 (desta data tenho a certeza) fui a Bissau onde passei lá alguns dias, voltando a Piche talvez uma semana depois.

É absolutamente certo que me lembro como foi a primeira viagem de ida. Fui num avião grande, cheio de gente, militares e nativos que tinham estado em Bissau num acontecimento promovido pelo General Spínola e que se chamou Congresso dos Povos ou coisa assim parecida, que levava também várias caixas com material e alimentos e voei até Nova Lamego. Aí fiquei um ou dois dias (não me lembro exactamente) e depois integrei a coluna para Piche.

Quando vim a Bissau, em 15 de Abril de 1971, para recolher o material com vista a reequipar o novo Posto de Transmissões de Piche, fiz a coluna de Piche a Nova Lamego, segui depois até Bafatá integrado num conjunto de viaturas que também para lá se dirigiam. Aí segui para Bambadinca num combóio de apenas 2 Unimogs. Em Bambadinca estive com um Fur Mil de Transmissões do curso anterior ao meu, chamado Vítor Caniços, que me contou ter havido na véspera (14 de Abril de 1971) um forte ataque a Catió onde o meu amigo e colega de curso Nélson Batalha (de quem já falei), conterrâneo de Setúbal do Vítor, tinha ficado ferido e alvo de evacuação para Bissau. Fui depois até ao Xime e aí embarquei na Bor até Bissau.

Não consigo recordar-me como fui até ao Xime. Se foi ainda no mesmo dia, se fiquei dum dia para o outro em Bambadinca, nem que transporte tomei. Do Xime recordo-me da rampa que me pareceu íngreme (coisa rara na Guiné) até ao cais. A viagem que fiz na Bor não foi muito distinta do que já li no Blogue. A emoção da descida rápida do Geba estreito, a carga absolutamente indescritível daquele ferry, com material e equipamentos militares, elementos da população, animais soltos e em gaiolas, tudo numa absoluta molhada, a atenção sempre ao máximo à espreita do que se podia passar nas margens, que se revelavam misteriosas e perigosas. Mais à frente, quando o Geba se alarga a perder de vista, depois de receber o Corubal, com o barco bem afastado das margens, começa a levar com ondulação forte, de frente, que fazia refrescar toda aquela parafernália de pessoas e coisas que se amontoavam a descoberto. Aí a molhada ficou toda molhada!

Chegado a Bissau, apresentei-me junto do meu comando das Transmissões, visitei o meu amigo ferido no Hospital (eu tinha jogado às moedas com ele para ver quem ia para Piche e quem ia para Catió), inteirei-me do que tinha que fazer quando regressasse ao mato, identifiquei o material e, passados uns dias lá fui de volta a Piche. Ainda hoje não me consigo lembrar o que fiz e como foi.

Quando em Piche a missão ficou cumprida lá regressei finalmente e Bissau, em princípio para ir (pensava eu, como me tinham prometido) para Teixeira Pinto ou Bolama, como recompensa por ter sido destacado para zona considerada problemática (aqui para nós, qual é que não era?), mas acabei por me imporem o Centro de Escuta. Mas isso é outra história.

O que importa é que essa viagem final, aquela que me levou de vez de Piche a Bissau, também está obliterada. Não me consigo lembrar o que fiz. Tenho uma vaga ideia de ter ido de coluna até Nova Lamego mas depois suspeito que tomei um avião.

Circuncisão ao vivo e a cores

Portanto, como disse, isto da memória vem aos poucos, à medida que se vai lendo e relacionando as coisas. Sendo assim, ao ler o P4013 (**), com o relato de passagens do livro “Diário de Guerra” de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins), lá aparece o registo que no dia 10 de Maio de 1965 o autor desse livro esteve no HM 241.

Reza assim o tal registo:

“Hospital Militar de Bissau, para uma pequena intervenção cirúrgica. Circuncisão, isto é, um corte no freio, que tinha dificuldade em arregaçar.

Se tivesse nascido judeu, ter-me-ia poupado ao incómodo nesta idade de quase um quarto de século.”


Esta anotação fez-me recordar que uma situação semelhante se passou comigo e que afinal, não havendo naquele tempo Serviço Nacional de Saúde nem tendo a esmagadora maioria dos pais dinheiro para gastar com médicos, onde só se ia (os que iam) quando alguma doença mais visível aparecia, muitos jovens daquela época tinham problemas parecidos e cuja resolução só seria ultrapassada pelo tempo. À data, antes da entrada no serviço militar, havia em Vila Franca de Xira, onde vivia, um médico, carinhosamente conhecido como médico dos pobres, o Dr. Rodrigues Pereira, pai de um homem muitas vezes citado no nosso Blogue, principalmente através dos escritos do Beja Santos e da Cristina Allen, o Dr. David Payne, que ajudava em muita coisa mas não era possível atender a tudo e a todos.

Por isso, quando estava em Piche, alguns camaradas relataram os seus problemas e como eles tinham sido resolvidos graças à intervenção dos médicos do Batalhão que se disponibilizavam para o efeito.

Comecei também a ganhar coragem para me submeter à necessária intervenção cirúrgica e fiquei esperando pela oportunidade. O BCAV 2922 tinha no seu quadro três Alferes Médicos, Hermano Gouveia, Fausto Gomes e Roando Álvares, e havia um, pelo menos, sempre em permanência na sede do Batalhão. Comecei a tentar convencer o Dr. Hermano mas acho que foi com o Dr. Fausto que fui à faca.

Quando finalmente ficou acordado o dia, o que acham que aconteceu? Uma coisa simples, como a relatada no livro do Cristóvão? “”, nada disso!

O médico resolveu transformar aquela pequena intervenção cirúrgica numa aula pública e de ensino colectivo.

Quando me encontrava deitado de costas em cima da marquesa, em situação, digamos assim, indefesa, calças em baixo, com o médico e o Furriel Enfermeiro Santana (já nos conhecíamos de Santarém) a começar os preparativos para desinfecção e outros procedimentos, a sala de operações foi literalmente invadida por todo o pessoal afecto ao serviço de saúde e também por mais meia dúzia de outros amigos que se divertiram desinfectando tudo o que podiam. Aquilo é que foi uma alegria! Tintura de iodo e outros desinfectantes pintando desenhos vários no peito, barriga, umbigo (cá está o umbigo), pernas, enfim….

Nessa altura o Dr. disse que tinha boas e más notícias para mim. É que não tinha agulhas finas para dar a injecção com o anestésico no local a cortar, o que queria dizer que iria doer mais mas, por outro lado, sendo a agulha mais grossa também corria menos riscos de se partir… Além disso, para compensar, iria providenciar uma espécie de anestesia apropriada à circunstância, que me faria não sentir a dor da própria injecção, coisa que na altura não percebi o que podia significar.

Então, no meio daquela feira, daquela alegre confusão (alegre para eles, que eu transpirava como se pode calcular e estava muito apreensivo) o nosso Dr. faz um sinal com a cabeça ao Furriel Santana que se encontrava ao meu lado direito e que me afinfa uma valente cotovelada na zona do fígado, abaixo das flutuantes, que me tirou literalmente o ar, provocou uma dor e uma contracção muscular por toda essa zona que me fizeram ficar imóvel e, enquanto isso, o maquiavélico Dr. aplicava a tal injecção com a agulha grossa.

Feito isso, que eu nem senti, passou a fazer o que tinha de ser feito, cortando e cozendo e tudo correu depois como previsto.

Medicado e entrapado lá recebi a recomendação de agora, durante uns dias, nada de esforços…”. Isso é que era bom… nessa mesma noite, o IN, como que para entrar também na festa, lá resolveu fazer uma flagelação, com alguma intensidade, e vá de ir para a vala de protecção, tentando rastejar o menos possível. Resultado, um ponto rebentado e novos cuidados

E pronto, este relato já está!

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
__________

OBS:- Os editores agradecem a compreensão do Helder Sousa e o reenvio deste texto, que damos hoje a conhecer aos nossos leitores.
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4025: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (2): "Conta-me como foi" ou há mesmo coincidências

(**) Vd. poste de 11 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4013: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (V): Do Tejo ao Geba (17 de Abril de 1965/25 de Maio de 1965)

Guiné 63/74 - P4234: (Ex)citações (24): A grandezas humana de um comando africano (Virgínio Briote / Luís Graça)

1. Escreveu o VB, nosso co-editor, a propósito do making of do livro do de memórias do Alf Graduado Comando Amadu Djaló (foto à esquerda, em Lisboa, junto ao memorial dos mortos da Guerra do Ultramar)(*);

(...) "E depois, Burontoni e o Malan, um miúdo de 7 ou 8 anos que vivia com os pais, junto a um acampamento da guerrilha.

"Ninguém queria ficar com o Malan. O Saraiva não queria mascotes, o capitão L., da Companhia local [, Xime], respondeu negativo. Amadu trouxe a criança para Brá. Depois, com 4 metros de tecido que um camarada tinha apanhado num acampamento, foi a um alfaiate fazer 4 calções e 3 camisas. Uns sapatos e uns chinelos completaram o guarda-roupa do Malan, que teve de mudar o apelido para Djaló.

"Malan Djaló passou a viver na grande família Djaló. Nunca ninguém soube a história do rapaz até 1973. Malan cresceu, andou na escola, aprendeu bem o português.

"Quando chegou a independência voltou a ver os pais, mas à noite regressou à família Djaló. Passou a dar aulas de português em quartéis do PAIGC, até conhecer uma jovem por quem se apaixonou. Casou e nasceu-lhe uma menina. A sorte da vida não estava com o Malan. Uma doença rápida, em dias, matou-o numa cama do hospital de Bafatá. Um ano depois, a menina morreu também, vitima da mesma doença, presume o Amadu" (...).


2. Comentário de L.G.:

Histórias dentro da história, VB! E que histórias! E esta é particularmente comovente!... Nos anos de brasa (c. 1965), quem é que se preocuparia com um miúdo, aterrado, as mãos atrás da nunca, que é encontrado no mato, turra, futuro turra... ? Miúdo é como velho e mulher, só atrasa o regresso da tropa e põe em causa o sucesso da operação e a segurança dos camaradas... Nesse tempo, no subsector do Xime, o velho guia e picador das NT, Seco Camará, era encarregue das tarefas mais vis da guerra suja, que repugnava ao tuga, cristão... Seco Camará, mandinga, leal às NT, e também bom muçulmano, viu-o morrer à roquetada em 26 de Novembro de 1970 (**)...

Esta história do puto Malan, recolhido por um comando africano, revela o homem grande e o grande homem que é, deve ser, o Amadu Djaló (de que tens sido o confidente nestes últimos meses). E, além disso, é bom crente em Alá, bom muçulmano, que vai todas as sextas-feiras rezar à mesquita de Lisboa, na Praça de Espanha...

VB, essas memórias do Amadu Djaló estão-se a revelar uma autêntica Caixa de Pandora. E tu estás a fazer um trabalho fantástico, dando voz a um homem sem voz, exilado na pátria que escolheu: só por essa razão é que eu perdoo a tua deserção (temporária) do nosso blogue...

Conheci o Buruntoni, como outros camaradas nossos que estiveram na CCAÇ 12 (Humberto Reis), no Pel Caç Nat 52 (Beja Santos), no Pel Caç Nat 63 (Jorge Cabral)... Ou nas unidades de quadrícula do Xime: na região de Baio/Buruntoni, a sudeste do Xime, e fazendo ligação com o Poi´ndon/ Ponta do Inglês, na margem direita do Rio Corubal, havia pelo menos um 1 grupo com meia dúzia de roqueteiros que emboscavam as nossas embarcações, em Ponta Varela... Fomos lá várias vezes com o Seco Camará, demos e levámos muita porrada...

A população era beafada e balanta. O Malan Nanque era o nome do puto antes de ser perfilhado pelo Amadu Djaló...

Peço-te, VB, que faças um poste com esta história, reveladora da grandeza de alma dos homens, mesmo quando andam na guerra... ou são obrigados, muitas vezes a escolher um dos lados da guerra. Uma história também reveladora de que tudo na vida e na história não pode ser visto a preto e branco, como tendemos a fazer por razões de comodidade mental... É sempre empobrecedor ver a guerra da Guiné e os seus protagonistas, a preto e a branco... (LG)

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > Legenda do fotógrafo: "O milícia e guia das NT, Seco Camará: 56 minas detectadas e muitas guerras" (TM)...

Foto: © Torcato Mendonça (2007). Direitos reservados.

___________

Notas de L.G.:

(*) 21 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4229: Os nossos camaradas guineenses (7): Amadu Djaló, as memórias do Comando Africano continuam (Virgínio Briote)

(**) Vd. poste de 26 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1317: Xime: uma descida aos infernos (1): erros de comando pagam-se caros (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P4233: Bandos... A frase, no mínimo infeliz, de um general (16): Direito à indignação (Amílcar Mendes)

1. Em resposta a esta mensagem de Mário Pinto, com data de 26 de Março de 2009.... 

Mario Pinto ex-Furriel Miliciano da Cart 2519, Buba, Mampatá, Aldeia Formosa. Ontem ao ver o programa Guerra do Ultramar na RTP1, fiquei indignado e com a falta de respeito do Sr. General Almeida Bruno em relação aos nossos camaradas militares conhecidos pele tropa macaca como BANDO que se limitavam a estar presentes dentro do arame farpado. 

Sr. General, é preciso ter descaramento e ser insultuoso para criticar os nossos bravos militares que tão abnegadamente serviram a Pátria em condições de inferioridade tática material e desconhecendo o inimigo que defrontava porque tiveram uma instrução deficiente que é da sua responsabilidade e dos quadros de oficiais superiores que nos comandavam entre aspas porque estes sim é que estavam no arame farpado. V. Exa. Sr. General já se esqueceu que a guerra fora do arame farpado era comandada pelos milicianos e graças a eles lá fomos adiando o fim do Império Colonial. Para terminar só posso acrescentar que fui ferido em combate e não dentro do arame farpado, louvado e premiado por actos de coragem e não foi dentro do arame farpado. 

 Cumprimentos, camarada Luis Graça ex-Furriel Mário Pinto.


2. Recebemos de Amílcar Mendes a seguinte mensagem, com data de 26 de Março:

Amigo Mário Pinto, 

Entendo a sua indignação. Vi a entrevista e também acho que houve algum excesso. Conheco o Sr. General Almeida Bruno, comandou o meu Batalhão na Guiné, não venho defendê-lo e nem ele precisa, mas pode querer que como tropa especial nunca eu ou os camaradas com quem trabalhei no TO, tivemos a mais leve desconsideração pela tropa a quem chamavam de "tropa normal". Pelo contrário, sempre os respeitei e admirava o sacrifício de sobreviver dia a dia nas condições mais miseraveis, enterrados em destacamentos no cú de judas, em que o único passatempo era contar os rebentamentos e contabilizar os estragos. Com armamente rudimentar faziam milagres frente ao inimigo, e se não faziam melhor era porque a instrução que recebiam era muito rudimentar. Apenas lhe dou um exemplo: o destacamento que vivia na ponte de CAIUN, na estrada de Piche -Buruntuma é exemplo do que a "tropa Normal" passava, e acredite amigo Mario Pinto que dentro da tropa "especial" havia muito manjerico que nem na tropa normal se safava. Quanto ao comentário do Sr. General, às vezes "no melhor pano cai a nódoa". 

 Um grande abraço do Amilcar Mendes Ex-1.º Cabo Comando.3. 

3. Em resposta a esta mensagem de Magalhães Ribeiro, com data de 4 de Abril de 2009... 

Boa tarde Amigos bloguistas, 

Quem não viu/ouviu o programa do Joaquim Furtado, tem que ouvi-lo na totalidade para analisar o contexto em que as palavras foram proferidas pelo Sr. General Almeida Bruno. Eu penso que vi/ouvi bem o dito programa, embora na altura tinha junto de mim o meu filho e a minha mulher a conversar e posso ter deturpado o sentido da tão discutida frase. 

 Reparem que nadíssima me move contra o general A.B., pois eu considero-me seu amigo pessoal há uns anos a esta parte, tendo até várias fotos (uma delas podem vê-la no meu blogue) e o seu cartão de visita. No entanto, o silêncio do general (que eu saiba o mesmo ainda não disse nada acerca da sua entrevista), sobre esta gravíssima matéria é comprometedor, pelo que ele duplamente simboliza: quer como oficial superior do Exército Português, quer como militar prestigiado e condecorado aos mais elevado níveis, como ex-Combatente do Ultramar. 

 Quem não se sente não é filho de boa gente, e estou à espera que ele a qualquer, face à grande contestação da malta (nomeadamente junto da Liga dos Combatentes), se pronuncie sobre a verdade dos factos, isto é sobre o que realmente nos quis transmitir com aquelas palavras. Na quase certeza absoluta que ouvi bem o que ele disse, e face à ira dos ex-Combatentes e à surpresa gerada entre os esforçados e sacrificados COMANDOS (em especial aquela que eu melhor conheci a 38.ª Cia.), que o general omitiu na entrevista vá-se lá saber porquê, aguardemos pelos próximos episódios. Hoje anexo o restante texto que completa o post 4126, e a que dei o título de: As origens dos bandos da Guiné. No fundo do anexo podem ler uma primeira reacção do nosso camarada bloguista John Bonifácio (João). Um grande abraço amigo do MR


4. Recebemos esta outra mensagem de Amilcar Mendes, com data de 5 de Abril de 2009:

Amigo Magalhães Ribeiro, Na altura da conversa do Sr. General Almeida Bruno sobre os "BANDOS" tentei de imediato pôr água na fervura porque adivinhei o que ai vinha. 

Sempre que aqui no Blog me refiro a alguém faço-o sempre reportando-me à condição de ex-combatente e nessa perspectiva admiro o sr. General Almeida Bruno. Por isso disse que no melhor pano cai a nódoa. Quanto ao facto de ele na entrevista ter omitido os COMANDOS ao qual eu acho o Sr. General tem orgulho em pertencer,  é um mistério para mim pois se foram os Comandos que lhe proporcionaram as mais altas codecorações do Exército Português , designadamente na célebre operação em Combamory onde o então Alferes Marcelino da Mata evidenciou. 

Não me cabe a mim adivinhar o porquê dessa omissão mas como COMANDO acho foi uma boa "cagada", não por achar que também a minha companhia (38.ª de Comandos) terá sido um bando mas por achar que o Sr. ofendeu a memória de todos os COMANDOS AFRICANOS que foram fuzilados só por o terem sido. Foram esses Comandos, comandados então pelo Sr. General lhe deram a glória de ser condecorado. 

Finalmente como o Sr. General nos comandava e se não sabiamos o que fazíamos, bem... então e ele?... Apreciando a entrevista acho que o Sr. General se queria referir só às chefias mas mesmo assim... 

 Um abraço a todos os bloguistas do Amilcar Mendes Ex-1.º Cabo Comando 38.ª CIA CMDS __________ 

 Nota de CV: