1. Publicamos hoje um trabalho escrito pelo então Alf Mil Carlos Geraldes
(*) da CART 676,
Pirada, Bajocunda e
Paúnca, 1964/66, à ordem do seu CMDT, sobre o Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu), enviado em mensagem de 26 de Setembro de 2009.
Regulado de Gada-Cuntimbo (Gabu)
(Súmula dos conhecimentos adquiridos no período de Out. 1964 a Abr. de 1966)
Situação Geral:
Presentemente, não existem “tabancas” (aldeamentos indígenas) aliciadas pelo “IN” (Inimigo), embora em 1963, um grupo de terroristas que pretendia actuar na zona de Paúnca se tivesse acoitado em Madina Mamadu Sanússi (da etnia “Fulas-pretos”).
Foram escorraçados e mantida a população da tabanca sob vigilância, tendo-se criado lá um posto de cipaios. Todavia, tendo, os elementos suspeitos da tabanca, procurado refúgio no Senegal, nunca mais a referida população manifestou tendências suspeitas.
Durante o período 64/66, não se registaram quaisquer infiltrações ou tentativas de aliciamento por parte do IN.
Poucas são as tabancas e os caminhos que não estão devidamente assinalados na carta de 1/ 50.000, sendo, no entanto, de chamar a atenção para o traçado do caminho que vai de Fasse à ”cambança” (sítio onde se atravessa um rio), que não é o que vem indicado na carta. Na realidade, o caminho inflecte para Norte, cerca de 45 graus, atravessando por completo o Mato de Sacaio e localizando-se a cambança no ponto de intersecção de uma linha que fosse traçada de Fasse a Sare Bacar, com o rio Gêba.
Pelo facto de quase toda a região estar protegida, a Norte pelo rio Bidigor, a Oeste pelo rio Gêba e a Sul pelo rio Cumtimbo, goza naturalmente de certos privilégios no que diz respeito às defesas naturais contra possíveis acções do IN. Apesar disso, apenas na época das chuvas se poderá confiar nessas “muralhas”, pois somente o rio Gêba mantém, durante todo o ano, um nível de caudal suficiente para impedir a passagem a vau.
Existem três tabancas-chave, situadas junto de outras três cambanças utilizadas por quem vai ou vem do Senegal: Guiro Iero Bocari (Sinchã Queuto), Madina Mamadu Sanússi e Fasse.
Em todas elas a população tem-se mostrado digna de confiança, colaborando activamente com as “NT” (Nossas Tropas), no controle e vigilância das respectivas cambanças. Todas as canoas, durante a noite, ficam presas a cadeado, na margem de cá.
Em Guiro Iero Bocari existe uma ponte feita com troncos e “carentins” (grandes esteiras feitas de entrançado de bambu), de construção recente, mas apenas utilizável em tempo seco. É também de fácil controlo, pois só permite a passagem, em fila indiana, de três pessoas de cada vez, no máximo.
Todo o “chão” (território, nação) tem demonstrado estar incondicionalmente do lado da tropa, posição que não deixa de aproveitar largamente em seu favor, com constantes pedidos de transporte dos seus haveres, além de ajuda material em armas e munições, medicamentos, etc. No entanto, evidenciam um forte sentido de hospitalidade, notando-se até uma certa rivalidade entre as tabancas mandingas e fulas, nos actos de bem receber os visitantes.
A tabanca do interior, de maior importância, é, sem dúvida, Fasse, não só pelo valor estratégico, como pelo valor que tem por ser o centro mais importante no ensino do Alcorão, em todo o regulado. O “mouro” (sacerdote) da mesquita de Fasse é tido como uma das personagens mais importantes da região. O próprio traçado das ruas do interior da tabanca de Fasse, chama a atenção pelo seu traçado geométrico, pela largueza e higiene, denotando um elevado nível cultural da população, relativamente a todos os habitantes do resto do “chão”.
Existe uma mesquita, coberta com folhas de zinco, oferta do Governo da Província.
Pertencendo à etnia “Fula-Forro”, dedicam-se com êxito às culturas tradicionais, assim como à manutenção de um Horto de bananeiras e outros frutos comestíveis.
Situação Particular: Paúnca
1) A Povoação:
É um dos centros populacionais e comerciais mais importantes da zona de Gabu e Bafatá. Com um perímetro de pouco mais de 4 mil metros, está cercada por uma rede de arame farpado c/ aba.
Todas as casas ficam situadas no interior da rede e existem abrigos para atiradores deitados ao longo da face Norte e Oeste.
De Paúnca partem caminhos, para todas as tabancas da periferia, perfeitamente transitáveis pelos carros militares em qualquer época do ano.
As vias mais importantes são: Paúnca-Fasse; Paúnca-Sinchã Queuto e Paúnca-Sinchã Molele. A mesquita de Paúnca é uma das maiores e mais característica da região, pois obedece a um estilo de construção já pouco comum neste género de edifícios.
Outra casa que se destaca, no interior da tabanca, é a casa do régulo, de forma rectangular e com um mastro para hastear a bandeira nacional em dias de festa.
2) A População:
É quase toda constituída por indivíduos de etnia “Fula-Forro”, seguindo-se por ordem numérica, os de etnia “Saracolé” e os “Mandingas”, estes em menor número. Existe também uma numerosa colónia de “Balantas”, “Papéis” e “Manjacos” que constituem os grupos de trabalhadores das casas comerciais. Vivem separados numa espécie de bairro, situado nas traseiras do aquartelamento. São ordeiros, embora se embriaguem frequentemente, pois não praticam a religião muçulmana, como o resto da população.
Os fulas dedicam-se ao cultivo da “mancarra” (amendoim), do milho, do arroz e da mandioca, além da secular criação de gado vacum. Outros dedicam-se ainda ao pequeno comércio e outros são alfaiates.
São amigos de festas, que promovem com assiduidade, pedindo sempre a prévia autorização, à tropa.
Existem 3 ferreiros situados junto das entradas da povoação e o mais importante é o que tem a oficina à entrada do caminho que vem de Sinchã Queuto.
O “cherno” (pessoa de respeito) é o velho Amadu Bari, que apesar de idade avançada (mais de 80 anos) mantém uma excelente saúde e um humor muito especial. É um grande amigo da tropa e, sempre que pode, não deixa de visitar o quartel. O filho, Iaia Bari tornou-se um excelente colaborador da tropa como intérprete e informador. Domina com facilidade o dialecto Mandinga, o dialecto Saracolé, assim como alguns outros dialectos do Senegal e da Gâmbia. Fala e escreve bem o Português e dedica-se à prática de enfermagem, auxiliando o 1º Cabo Enfermeiro do Destacamento, no tratamento de civis, com os medicamentos destinados ao serviço da “Psico”. Tem um irmão, quase cego, que goza da fama de ser informador directo do Governador.
3) O Comércio:
Reveste-se de características especiais, diferente do que é praticado noutras localidades da fronteira, pois não depende do trânsito dos “gilas” (contrabandistas semi-autorizados), nem dos senegaleses que vêm ao nosso lado fazer compras. O comércio mantém-se sempre em qualquer altura do ano, abastecendo, tanto a população deste regulado como a dos outros, situados no interior. Durante a campanha da mancarra (Janeiro a Março) é muito intensa a circulação de burros carregados com os habituais dois sacos e a das camionetas de caixa aberta que depois os transportam para Bafatá. Não existem, durante todo o ano, períodos mortos, mas apenas pequenas flutuações.
As casas comerciais existentes são seis, com representação das firmas, “Barbosas”, “Gouveia” e “Pinheiros”. Todos os comerciantes mantêm boas e cordiais relações com a tropa, sendo de destacar o que dirige a filial dos “Barbosas”, o Sr. Correia. É o comerciante mais antigo de Paúnca, com amplos conhecimentos sobre os problemas do regulado. É, também, o único comerciante que se preocupa em manter uma certa rede de informações, que tem sido muito útil à tropa. No entanto, tem medo de prováveis represálias do IN sobre a sua pessoa, pois em 1963 foi alvo de um atentado na estrada Paúnca-Bafatá. Actualmente tem adoptado, por isso, uma atitude fria e de quase completo mutismo, quando a tropa o aborda directamente ao balcão da loja. Mas abre-se em confidências se a “entrevista” for mantida num clima de discrição.
Por vezes o receio dele chega a parecer excessivo e até infundado.
É muito amigo do Administrador Barros, de Gabu, a quem fornece sempre em primeira mão as informações que recebe, algumas de interesse apenas militar e que, não raras vezes, têm servido para criar situações falsas, à tropa, que se encontra destacada.
É de evitar fornecer-lhe quaisquer informações referentes ao IN, de acção imediata.
4) O Régulo:
É um velho sem energia e espírito de mando. É pouco conceituado pelos súbditos, pela fraqueza de ânimo dele. No entanto é apoiado por alguns homens “grandes” de grande poder e prestígio.
Nas relações com a tropa mostrou-se sempre de grande humildade, fazendo amiudadas visitas para “partir mantenhas” (apresentar cumprimentos) e também com o fito, menos louvável, de pedinchar um pão ou um pouco de açúcar.
Colaborou sempre de forma eficiente quando o furriel encarregado do rancho necessitava de comprar galinhas ou cabritos.
Tem muito medo da guerra, da qual nem gosta de ouvir falar.
Cavaleiro Embaló, um chefe terrorista, de pouca importância, é seu sobrinho, mas ele renegou esse parentesco, ameaçando-o de morte.
5) Os Cipaios:
Existe um corpo de cipaios comandados por um Cabo, directamente dependentes do Chefe de Posto de Sónaco. Têm uma actividade bastante reduzida, limitando-se à cobrança dos impostos e à resolução de pequenos litígios entre os civis. São muito reservados em relação à tropa.
6) A Milícia:
É uma força constituída por 18 elementos, comandados por um “alferes” e por um “cabo”.
Fornecem, para o serviço de transporte de água e lenha para o aquartelamento, 3 homens por dia, que durante a noite fazem também um posto de sentinela à entrada da Casa da Milícia. São integrados nas Secções do Pelotão, quando estas efectuam patrulhamentos. Psicologicamente são pouco aguerridos e bastante preguiçosos. Contraem dívidas sem grande dificuldade e abusam facilmente se lhes são concedidos alguns favores.
Quase todos se ofereceram para cumprir o serviço militar, na próxima incorporação. Os que são casados são bastante ciumentos, surgindo atritos entre eles e os soldados europeus que estão menos esclarecidos quanto ao modo de tratar a mulher indígena.
Constituição do grupo:
Comandante: Samba
1.º Cabo – Bamba Jamanca
N.º 61 – Manca Baldé
N.º 64 – Demba Embaló
N.º 65 – Aliu Candé
N.º 67 – Bobo Jau
N.º 70 – Puloro Candé
N.º 75 – Samu Baldé
N.º 76 – Jarga Jaló
N.º 80 – Turá Baldé
N.º 82 – Bobo Quitá
N.º 85 – Umaro Jau
N.º 86 – Braima Jaló
N.º 87 – Aliu Embaló
N.º 89 – Ussumane Camará
N.º 90 – Sare Jaló
7) Os Soldados Africanos:
São quatro: Sadú, Jau, Santos e Sáco. Os dois primeiros são fulas, os outros balantas. O Santos é natural de Bissau, onde foi empregado comercial. É o mais culto e o mais pretensioso. Tanto ele como o Saco embriagam-se com frequência se não forem reprimidos. Os outros dois são mais sossegados e nunca deram origem a qualquer distúrbio. Estão todos desarranchados.
8) A Escola:
É um edifício de construção recente, com apenas uma sala de aula e alojamento para o professor que, em caso de necessidade, já tem albergado um pelotão de reforço, durante dois ou três dias.
A frequência é bastante reduzida, devido ao natural costume do fula de evitar que os filhos tenham outra educação que não a tradicional.
O professor, Timóteo, é de etnia manjaco, protótipo de negro meio civilizado, arrogante com a pouca sabedoria que adquiriu sem a necessária profundidade e preparação, mas que julga ser muita. Tem grande dom de palavra e gosta de organizar festas onde se possa evidenciar. Levando uma vida de estroina, descura por completo as suas funções de ensino, tendo até criado a fama de tratar brutalmente os alunos.
É um elemento de forte poder aliciante, imiscuindo-se entre os soldados de quem, facilmente, conquista a confiança. Por mais de uma vez, e por motivos diversos, se mostrou suspeito, embora nunca tenha havido provas concretas. Todavia evidencia uma forte tendência racista.
9) A Taberna:
Situa-se em frente do quartel e é propriedade de João Vieira (por alcunha “O Passarinhas”), casado com uma cabo-verdiana. O resto da família é constituído por duas filhas e uma sobrinha, que o auxiliam no balcão. Alberga também hóspedes ocasionais.
Todos têm procurado, sempre, captar as simpatias das tropas recém-chegadas, na mira de benefícios futuros, pois vivem na expectativa de poder explorar, o mais possível, quem lhes frequenta o estabelecimento.
Os conflitos entre esta família e os soldados são pois inevitáveis e frequentes, provocados quase sempre pela existência das raparigas, utilizadas pelo “Passarinhas” como um autêntico chamariz.
Em 1963 levantaram suspeitas de colaborar com o grupo IN acoitado em Madina Mamadú Sanússi, mas não apareceram provas.
O “Passarinhas” dedica-se também à prática ilegal de dar injecções, deslocando-se até às tabancas do interior.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 29 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (128): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)
Vd. último poste da série de 25 de Setembro de 2009 >
Guiné 63/74 - P5013: Gavetas da Memória (Carlos Geraldes) (8): A Poderosa Rainha