terça-feira, 29 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P5032: Blogoterapia (127): Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas (Carlos Geraldes)

1. Mensagem de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66, com data de 26 de Setembro de 2009:

Caro amigo Vinhal:

Quando me atrevi a enviar os meus escritos para a Tabanca Grande nunca poderia adivinhar a recepção de que estou a ser alvo.
Fiquei tão emocionado como na véspera do dia em que embarquei de regresso à, então chamada Metrópole, após aqueles dois anos de incertezas, dúvidas e terrores por que passei. Somos de facto um povo de poetas, de soldados com cravos na boca das espingardas. As atitudes que por vezes alguns tomam de machismo violento, não passam de uma máscara a que recorrem os fracos e os cobardes, receosos de os tomarem por isso mesmo.

Assim, não poderei afastar-me por muito tempo nem para muito longe. Estou irremediavelmente ligado ao blogue como se um cordão umbilical ainda me ligasse ao ventre materno. Os comentários que me foram dirigidos são as vozes dos meus irmãos que julgava mortos e enterrados no meio do matagal para lá da curva do rio.

Felizmente estão aqui bem vivos e vão-se juntando cada vez mais para ajudar a sufragar a dor e o sofrimento que um povo fez a outro povo. Levaremos ainda muito tempo a tentar compreender como foi possível aquela guerra, as cruezas daquela guerra entre homens bons e simples, sonhadores e sábios, que no dia do armistício se abraçaram comovidos com a memória lavada, mas com o coração quente de alegre fraternidade.

Como foi possível esquecer os massacres, os assassínios, as humilhações, os roubos, as violações? Só pela presença de um outro poder, que nunca quisemos admitir, constatar. Não, não me refiro a Deus, esse ser criado pelo homem, para lhe servir de panaceia e o livrar de pensamentos vertiginosos quando se debruça nos porquês do Universo. Não, refiro-me talvez a um poder que provém das profundezas do Cosmo, que nos antecedeu, nos guiou até aqui e irá conduzir toda a Humanidade até ao fim dos tempos. Uns dirão: é o Amor! Balelas! É fácil demais.

Eu diria antes que é o progresso das civilizações, o aperfeiçoamento das relações humanas. Hoje já não olhamos com estranheza outro ser humano só porque é de outra cor. Mas era assim há 300 anos atrás, quando o considerávamos um objecto, um ser sem alma, tal como um animal ou um vegetal? Agora é muito diferente não é?

Bom, mas desculpa-me estar para aqui a filosofar sem jeito. O que eu queria dizer também é que vou anexar a este e-mail um documento escrito em Paúnca, a pedido dos chefões daquela altura (1965) e que é mais ou menos um Relatório de Situação que obedecia a um esquema já predeterminado para aquele tipo de relatórios usados pelas NT (e para mostrar serviço, é claro). Fui eu que o escrevi por ordem do meu capitão e o que é facto é que não contém qualquer facto empolado ou embelezado. Naquela data, a situação ali era mesmo aquela, pelo menos aos meus olhos.

Hasta siempre,
Carlos Geraldes
__________

Notas de CV:

O texto referido pelo nosso camarada Carlos Geraldes, por ser muito extenso, vai ser publicado na sua série Gavetas da memória.

Vd. último poste da série de 16 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4963: Blogoterapia (126): Pensar em voz alta: Em noite e dia de "cerrar dente" (Torcato Mendonça)

2 comentários:

Juvenal Amado disse...

Meu caro
A simples recordação daquela manhã fabulosa me emociona.
Penso que não nos será possível viver outra data como o 25 de Abril de 1974.
Essa madrugada heróica, mostrou-nos que a partir daí tudo era possível.
Hoje sabemos o que correu mal nestes 35 anos, mas mesmo assim valeu a pena.
A convivência de várias sensibilidades neste blogue, é fruto e espelho dessa alvorada.

Um abraço
Juvenal Amado

Hélder Valério disse...

Caro Carlos Geraldes
Poucas vezes comentei os teus escritos.
Não porque não merecessem, mas porque ficava sempre com a expectativa de ler o seguinte para abarcar o conjunto.
E, digo-te, fizeste muito bem em ter "chegado" ao nosso Blogue, pois fomos contemplados com belos nacos de prosa, com interessantes descrições e enquadramentos, em que algumas vezes nos revimos e outras fomos tomando conhecimento.
Não penses já que tens o "dever cumprido" e que estás desmobilizado dsetas tarefas.
Podes descansar um pouco, mas depois volta coma tua intervenção.
Ficamos todos mais ricos, tu incluido.
Um abraço
Hélder S.