1. Mensagem de José da Câmara (*), ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73, com data de 25 de Setembro de 2009:
Olá Carlos,
Junto encontrarás mais uma página das minhas memórias.
Como sempre faz aquilo que entenderes por bem.
Um abraço amigo com votos de muita saúde para ti e para toda a tabanca.
José Câmara
Servir Bissau: uma contenda inglória onde o pesadelo e o ronco se misturavam
Acabada a cerimónia de recepção às forças agora chegadas à Guiné, o Comandante da CCaç 3327, Cap Mil Rogério Rebocho Alves, reuniu com todos os graduados. Nessa reunião ficámos a saber que um GCOMB iria de imediato para o destacamento de Dungal, o qual seria rendido de quinzenalmente. Para além do Grupo de Combate, uma Secção foi reforçar o destacamento de Nhacra. O objectivo era adaptar a Companhia ao mato da Guiné. Os outros dois GCOMBS e duas Secções ficariam em Bissau, tendo como principal missão a segurança de algumas instalações militares, o patrulhamento dos bairros de Bissau, das tabancas e zonas limítrofes da cidade, e os serviços próprios de qualquer quartel. A tudo isso se juntava a Guarda de Honra que, semanalmente, se fazia no cemitério na exumação dos nossos camaradas caídos pelos diferentes pedaços da Guiné. Traumatizante demais para os soldados da minha Companhia. Antes da sua guerra já tinham contacto com a morte.
As instalações, cuja segurança militar ficariam à guarda e responsabilidade da CCaç 3327, eram as seguintes:
1 – Palácio do Governador da Guiné
2 – Quartel da Amura
3 – Instalações da Rádio
4 – Hospital Militar 241
5 – O Laboratório
Naquela reunião, o Comandante da Companhia solicitou três voluntários para chefiarem os serviços da Guarda ao Palácio do Governador. Ninguém se ofereceu para este trabalho, aparentemente fácil, mas de uma grande responsabilidade. Assim, a escolha do próprio Comandante recaiu no Fur Mil de Operações Especiais, Carlos Alberto R. P. da Costa, no Fur Mil de Armas Pesadas Manuel Lopes Daniel e em mim. Nós, os indigitados para o serviço ao Palácio do Governador, ficámos ainda com a responsabilidade de fazermos um serviço de Sargento de Dia, na rotação normal, que acontecia de oito em oito dias.
O trabalho em Bissau era intenso, embora não oferecesse os perigos que o mato escondia. Para se ter uma ideia daquela intensidade, ao fim de trinta e sete dias de Guiné ainda foram encontrados três soldados sem um dia de folga. A intensidade do trabalho aliado à disciplina imposta pelo Comandante do AGRBIS transformou esta estadia em Bissau num autêntico pesadelo.
Nesta contenda inglória que foi a nossa guerra em Bissau, os únicos felizardos fomos nós, os Sargentos da Guarda ao Palácio. O nosso trabalho era, comparativamente com o trabalho dos nossos camaradas, bastante mais suave. Mesmo assim, um dos meus camaradas de serviço ao Palácio, não se livrou do castigo à ordem. O furriel viu-se obrigado a participar de um soldado adido à nossa Companhia, na altura sob o seu comando, que se ausentou do seu posto de serviço, sem a devida autorização ou substituição. Na sua primeira e única participação que fez, o furriel não indicou o artigo do RDM infringido e esse lapso foi o suficiente para que fosse castigado com cinco dias de detenção. O soldado foi punido com vinte dias de prisão.
Entrámos de imediato ao serviço (28 de Janeiro de 1971) ao Palácio, embora, os primeiros dias fossem apenas de sobreposição e sem qualquer responsabilidade da nossa parte. Tomámos o primeiro contacto com aquilo que seria a nossa responsabilidade. A nossa missão principal seria, sem dúvida, a segurança diária do Palácio, e, todo o aparato que englobava o içar da bandeira e o render da guarda ao Domingo. Nas tarefas diárias e no Render da Guarda a colaboração dos cabos e dos soldados era fundamental. O seu aprumo, destreza e rapidez em todos os processos envolvidos eram primordiais para o sucesso da missão. Acrescento, com algum orgulho, que os soldados da minha Companhia estiveram à altura da missão.
A guarda ao Palácio englobava as seguintes forças essenciais:
a) - Uma Secção de tropa regular, comandada por um Sargento da Guarda, que tinha a seu cargo os postos de sentinela ao fundo do jardim e ainda um posto de sentinela ao lado direito do jardim. A segurança era feita durante o dia do lado de fora do jardim. Com o render dos postos de sentinela às seis horas da tarde a segurança passava a ser feita do lado de dentro dos muros.
b) - Uma Secção da Polícia Militar, incluindo um sargento e um oficial, que tinha a seu cargo o pórtico principal do Palácio e o portão lateral de serviço geral.
c) - Durante a noite, entre as dezoito e as seis horas, a segurança era reforçada com um elemento da Polícia de Segurança Pública, que ficava encarregado do espaço entre a casa da guarda e do pessoal civil servente do Palácio e o edifício principal.
d) - Também durante a noite, a segurança era ainda reforçada com um cão treinado em segurança e respectivo tratador, na altura um pára-quedista, que tinha a seu cargo o patrulhamento do interior do jardim
Com a devida vénia ao autor da fotografia. Vista aérea de Bissau sendo bem visível o complexo do Palácio. 1 – Casa da Guarda 2 – Casa da Polícia Militar
Toda a responsabilidade da segurança recaía nos ombros do sargento da guarda. Cabia-lhe a implementação das regras estabelecidas. Mantinha em ordem todo o material de guerra à sua disposição: metralhadoras, munições e granadas de mão. Era responsável por encaminhar todas as mensagens chegadas via CTT, conforme o seu grau de segurança. Respondia directamente ao Oficial Ajudante de Campo do Governador sobre qualquer assunto de segurança julgado pertinente. Elaborava e assinava o seu relatório de serviço que era entregue no Comando do AGRBIS logo após a sua chegada a este complexo militar.
Durante cerca de dois meses, essa foi parte do meu trabalho, esta foi a minha Guerra em Bissau. Mantive, sempre, óptimas relações com todas as forças de segurança, incluindo os oficiais da Polícia Militar, que nunca me regatearam a sua compreensão. Encontrei no Ajudante de Campo do Governador, na altura um capitão, muito mais que um militar. Nesse oficial encontrei alguém que compreendia que nós, militares obrigados ao serviço, éramos pessoas que cometíamos erros, que falhávamos, mas que também tínhamos qualidades humanas a respeitar.
Fev71 - O Fur Mil José Câmara, Sargento da Guarda, no interior do jardim do Palácio do Governador da Guiné
Devo confessar que as boas manobras militares sempre me fascinaram. A organização, a ordem, a unidade, a beleza do movimento são, essencialmente, a base desse fascínio. Ainda hoje isso acontece.
Em Bissau, em frente ao Palácio do Governador, iria ter a oportunidade de ver essas manobras ao mais alto nível, e, eventualmente, participar nelas, quiçá a pior parte. A responsabilidade era grande, pois milhares de pessoas observavam, ao pormenor, essas manobras na praça do Império e o desfile das tropas na Avenida da República.
No Domingo de manhã acontecia ronco grande em Bissau
O atavio militar das Praças da Guarda era o fardamento n.º 2, com cordões brancos nas botas, tendo como armamento a G3. O Sargento da Guarda também vestia o fardamento n.º 2, com luvas brancas e cordões das botas da mesma cor. O seu armamento era a FBP. Durante a cerimónia o carregador na arma estava vazio. Em verdade se diga, os carregadores que estavam nas cartucheiras estavam devidamente carregados.
Postal da época da Guerra na Guiné - Aspecto do Render da Guarda
Para além das Praças da Guarda, as Forças em Parada eram, normalmente, as seguintes: dois Grupos de Combate reduzidos, nesta nossa participação, da CCaç 3327, com fardamento n.º 2 e G3, um Pelotão da Polícia Militar em camuflado e G3, e um Grupo do Destacamento de Fuzileiros Navais em fardamento branco e G3. Os Leopardos (se a memória não me falha essa era a sua sigla e sujeito a correcção) de Bissau, com os seus inconfundíveis turbantes vermelhos, eram a Banda Militar que nos acompanhavam nestas cerimónias.
Após o içar da bandeira e o render da Guarda, as forças desfilavam pela Avenida da República indo destroçar junto ao Quartel da Amura.
Postal da época da Guerra na Guiné – A excelente Banda Militar de Bissau
Nunca poderei esquecer a atenção e o respeito que os guineenses demonstravam nestas cerimónias. Novos e velhos, homens e mulheres seguiam com muita atenção todos os pormenores do içar da bandeira e do Render da Guarda. Vi muitos deles saudar com continência a Bandeira que subia no mastro, e senti o calor de milhares de palmas quando as nossas tropas acabavam as manobras em frente ao Palácio e desfilavam pela Avenida da República. Nestas ocasiões, devo confessar, não sentia que os guineenses procuravam a sua independência. Quanto muito desejavam a paz, a mesma paz que nós procurávamos. Nós éramos a sua esperança.
Foi essa atenção, respeito e calor humano que eu senti das populações da Guiné, num simples içar de uma Bandeira Nacional e de um desfile militar, que começaram a despertar em mim o amor por aquela terra mártir e a sua gente que, ainda hoje, perdura e... perturba.
José Câmara
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 10 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4935: Os Nossos Enfermeiros (4): Valioso trabalho desenvolvido pelo Fur Mil Enf Rui Esteves (CCAÇ 3327) e a sua equipa (José da Câmara)
Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4906: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (6): AGRBIS, um inferno no meio da guerra
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
O José da Câmara ficou com uma imagem das gentes da Guiné, quando estas assistiam ao render da guarda no palácio, imagem essa que perdurou, após a independência, que se exteriorizava, quando recatadamente o povo podia chegar junto de portugueses recem -chegados a Bissau como cooperantes.
Não acredito que essa gente não sonhasse com uma independência.
Só que não acreditava na "sinceridade" do PAIGC., no tempo da luta, nem após a luta.
Após a independência, toda a Guiné ficou dividida em duas classes:
Uma classe era constituida pelo partido e "membros".
A outra era todo o resto do povo.
Antº Rosinha
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