quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5038: História de vida (23): Maria da Glória, uma saudosa filha com um dom especial para o fado (Cristina Allen)

1. Mensagem de 22 de Julho de 2009, enviada pelo Mário Beja Santos:

Luís, Meu querido amigo, junto o texto que a Cristina me pediu para digitar. Tens aí as 2 fotografias da Glória [, à esquerda], de óculos escuros, uma, com um pano guineense, a outra. A Cristina está muito comovida pelo acolhimento que o blogue deu à sua dor e à memória da nossa adorada Locas. Um abraço muito sentido do Mário



2. Texto de Cristina Allen, mãe da Maria da Glória Allen Revez Beja Santos (1976-2009) (*), que nos deixou vai fazer 3 meses (no próximo dia 2 de Outubro de 2009):


Caro Luís Graça,

Tenho, perante mim, duas fotografias da autora do texto que vai ter a gentileza de publicar, envolvendo o nosso blogue (foi este o seu último trabalho universitário) (**). E um disco de António Chaínho com a seguinte dedicatória: “Para a colega Glória, com um beijinho do António Chainho. 16-08-2003”. É que ele queria ensinar-lhe alguns truques na “Academia do Fado e da Guitarra” e lançá-la, mas ela, já doente, fugiu-lhe.

A Glória cantava quando queria. Iniciara-se no Colégio de S. João de Brito, junto de antigos alunos e teve, por padrinho D. Vicente da Câmara. Numa dessas noites de fado que o Colégio promovia, recordo-a no palco numa fila que começava com António Pinto Basto, praticamente todos os Câmaras e terminava com ela e Tozé Martinho. Recordo-a, esbelta, num longo vestido, preto e justo, envolta num manton de manilla antracite, bordado a seda tom sur tom, nos seus longos dedos os meus anéis mais faiscantes, as mãos juntas no peito, agradecendo, com fervor, os aplausos.

Mas com a nossa filha, o picaresco e o inesperado aconteciam quase sempre, de mãos dadas. Uma professora sua, e minha amiga conterrânea, fez-me um gesto discreto, indicando o fundo escuro do salão, atrás do palco. Escapara-se com um muito jovem (e atrevido!) Zé da Câmara e, receosa, lá foi a mãe que teve de presenciar uma insólita cena. O Zé dizia-lhe que com aquele vestido pouco se via dela e “mostra as pernas”, pediu. E ela, que não se preocupava nada e não era provocadora, levantou cuidadosamente a saia e, devagarinho, rodou e mostrou-lhas. Pu-los na ordem com um valente raspanete.

Recordo-a, ainda, num espectáculo em S. Jorge, nos Açores, cantando com outros amadores, após o espectáculo de Carlos do Carmo, um fado da mãe deste e ele, nos bastidores agarrado aos seus pulsos: “Continue, minha menina, com essa garra só vi a minha mãe”. Tinha então 17 anos.

E perdoe-me, Luís Graça, se narro mais outro episódio dos caprichos de uma inconsciente diva.

Num passeio que fiz com outros colegas meus a Leiria, levei-a e fomos acabar a noite num local onde se cantavam baladas de Coimbra. No intervalo, disse, alto e bom som, que também queria cantar. Que não podia, diziam, que as mulheres não cantam fado coimbrão e no rebuliço que se gerou ouviam-se gritos que diziam: “Canta! Canta!”.

Generoso, o dono da casa, lançou-lhe sobre os ombros uma capa e ela, com um tenor zangado, escolheu a “Samaritana”. O rapaz viu-se aflito, porque era baixote e a voz dela ia do contralto ao mais fino murmúrio. A certa altura, estava o tenor vermelho e em bicos de pés, esticando-se todo, mas lá se aguentaram os dois num belíssimo dueto. A assistência estava entusiasmada, toda a gente em pé. E, depois, sacrilégio dos sacrilégios, entregou a capa e passou o resto da noite a cantar fado de Lisboa.

Ela tinha os ímpetos do seu pai e da sua mãe.

Nas fotografias que lhe enviamos há uma que tem por fundo um pano da Guiné. Adorava-os coloridos, mudava-os, trocava-os, cobrindo paredes, mesas e o topo de uma estante baixa encastrada no vão de uma janela. Nessa foto, estava de partida para a Holanda. Tinha ainda 21 anos. A outra é muito mais recente, talvez de meados de Junho passado. Estava, como sempre, de back-pack, com o seu portátil e roupas atiradas à pressa e ao acaso, lá para dentro. Ao seu rosto de 32 anos voltara a serenidade e a doçura. Estava mais jovem. Encontrara alguém que lhe devolvia a serenidade e a afastara dos riscos. De luxo, só os óculos escuros, que coleccionava.

Quanto ao texto académico que vai ter a amabilidade de publicar, e que diz respeito ao blogue, é possível que haja imprecisões, sobretudo na entrevista que gentilmente lhe concedeu.

Isto porque alguém lhe emprestara um gravador antigo e ela nem sequer o experimentou. Quando se lançou à transcrição, a sua voz e a do Luís vinham de muito longe, abafadas por silvos agudos e equívocos ruídos que nos fizeram, a ambas, rir às gargalhadas. Penosamente, lá se procurou descodificar a sua entrevista e, se imprecisões houver, ela não se importará nada que as corrija. A Glória era humilde, nestas coisas de estudos e estava de regresso à Faculdade, após anos de ausência.

Perdoe se me alonguei sobre os seus fados. Mas ela estava mais lá que nas andanças académicas.

Grata por publicar este seu último trabalho à volta da Guerra Colonial e das memórias dos ex-combatentes. (***)

Cristina Allen


Nota: Também fez com a ajuda do pai um outro trabalho sobre o Islão, outro ainda sobre o filme “O clube dos poetas mortos” e deixou no computador um estudo inspirado por uma intragável obra filosófica sobre Ética e Moral, em que eu colaborei.

_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes sobre a Maria da Glória:

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4645: In Memoriam (25): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009): Missa do 7º dia, 4ª feira, 19h, Igreja do Campo Grande

9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4660: In Memoriam (26): Fazendo o luto pela Maria da Glória e agradecendo a todos a solidariedade (Mário Beja Santos)

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)

(**) Entrevista ao Luís Graça, no 1º trimestre de 2009, sobre a criação e o funcionamento do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. A publicar em breve.

(***) Vd. poste anterior da série > 22 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4400: História de Vida (14): Refazendo a vida correndo o mundo (José Eduardo Alves)

1 comentário:

Luís Graça disse...

Minha cara amiga Cristina:

Lembro-me de ter falado, ao telefone, uns escassos meses antes da morte da Locas, do seu talento especial para o fado... Lembro-me da sua sugestão: 'Quando fizeram um encontro do blogue, convidem a Locas para ir cantar um fado'... Infelizmente, já não vamos mais poder ouvi-la. Não sei se a família tem registo fonográfico de alguns fados cantados por ela... Se sim, gostaríamos de poder reproduzir um ou dois aqui no nosso blogue,se for achado apropriado e conveniente... Tive o privilégio de ainda a conhecer, por ocasião da entrevista, muito bem estruturada e conduzida, que ela me fez sobre o nosso blogue, no âmbito de um trabalho académico. Nas duas horas que estive com ela, deu para perceber que era uma mulher com uma belíssima voz, uma beleza muito alfacinha e uma enorme vontade de viver... Vamos recordá-la no seu melhor. Até sempre, Locas.