terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5636: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (8): Como fui parar ao Centro de Escuta

1. Mensagem de Hélder Sousa* (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de 11 de Janeiro de 2010:

Caros amigos Editor e Co-Editores
Em anexo envio-vos uma pequena história que tem a ver com a minha ida para o "Centro de Escuta".
Através dela podemos ver como foram diferentes os tempos por mim vividos em 1971 e os que se viviam em 73, a avaliar pelo relato do M. Maia num seu comentário ao artigo do Belarmino sobre o STM.

Como tenho poucas fotos, junto essas duas em trabalhos de radiolocalização.
Numa delas estou a fazer a pesquisa da comunicação do emissor do IN em observação na ocasião e leitura dos elementos obtidos. Na outra estou a fazer a comunicação dos dados para o posto director, trabalhando com a 'chavezinha de morse'.

Um abraço
Hélder Sousa


Hélder Sousa em missão de radiolocalização


HISTÓRIAS EM TEMPO DE GUERRA (8)

COMO FUI PARAR AO “CENTRO DE ESCUTA”


Caros amigos e camaradas,
Já em tempos vos dei a conhecer como ‘fui telegrafista’ ainda antes de a Instituição Militar me indicar para vir a ser TSF, aliás, tendo em conta a excelência do Curso e dos elementos seus constituintes, melhor seria dizer, “Ilustre TSF”.

Também, aquando da minha apresentação na Tabanca, dei conta, de forma resumida é certo, e ao correr da escrita, de qual teria sido o meu desempenho nos diferentes locais e actividades por onde estive destacado.

Pertencendo ao STM, que o nosso camarada Belarmino Sardinha teve a iniciativa de ‘esmiuçar’ em Post relativamente recente, fui, nessa qualidade, enviado para Piche com a missão explícita por indicação do meu Comandante à época, também Comandante do STM, Cap. Oliveira Pinto (infelizmente já falecido) de conseguir do comando da Unidade de Piche, o BCav 2922, a construção de um edifício próprio para a instalação do Posto de Transmissões daquele local, o qual, até àquele momento, funcionava numa viatura especial mas que estava nos planos do Comando enviá-la para outro sítio.

Até aqui, nada de novo em relação ao que já relatei. Acontece ainda que tanto o Cap. Oliveira Pinto, do STM, como o Cap. Cordeiro, Comandante da Companhia de Transmissões, para além do facto curioso de serem cunhados, eram meus contemporâneos do BT (Batalhão de Telegrafistas) em Lisboa, onde fiz a Especialidade de TSF, 2.º Ciclo do CSM e eles estavam, salvo erro, como Tenentes em tirocínio. Havia, naturalmente, um reconhecimento mútuo, até porque essa época ocorreu no último trimestre de 1969, coincidindo com as ‘eleições de 69’…

Então, é preciso que se diga que aquando da nossa apresentação em Bissau (minha e dos outros 6 camaradas TSF que foram então em rendição individual) foi-nos dito que só iríamos para zonas A ou B (não sabíamos o que era, mas explicaram que as zonas C eram as mais perigosas…), daí que o facto de ir para Piche (com a tal missão) fez com que o meu Comandante me chamasse para dizer da importância da missão, da necessidade do seu rápido êxito e que, para compensar essa ida para um tal local C seria, no fim da mesma, contemplado com a colocação provavelmente em Teixeira Pinto ou Bolama.

Das peripécias ocorridas em Piche relacionadas com a missão darei conta posteriormente, importa agora, para chegar ao objectivo do tema de hoje, dizer apenas que cheguei a Piche salvo erro a 10 de Dezembro de 70 e em 1 de Abril de 71 enviei a mensagem “Posto concluído. Solicito autorização ida a Bissau”.

A meio de Abril lá fui, com a tal viagem que nunca se esquece, coluna até Nova Lamego e depois Bafatá, Bambadinca e Xime (com a particularidade de nesta última parte, por ser o mais graduado ‘a bordo’, me terem responsabilizado pela boa entrega de 4 urnas) e depois uma viagem na ‘Bor’ até Bissau, a que já fiz referência em texto anterior.

Ao passar por Bambadinca estive com um dos recentes ‘atabancados’ o Fur Mil TSF Vítor Raposeiro, do curso anterior ao meu, e que me disse que na véspera, 14 de Abril de 71, tinha havido um forte ataque a Catió de que resultou, entre outros, ferimentos no Fur Mil TSF Nélson Batalha.

Regressado a Piche para as tarefas de instalação de equipamento, sobreposição com o meu substituto, etc., voltei finalmente a Bissau com a missão encerrada depois do meio do mês de Maio.

É aqui que entra o meu espanto por aquilo que o nosso ‘bardo do Cantanhez’, Manuel Maia, relata nos comentários que fez ao artigo do Belarmino, em que confessa que esteve quase, por ‘cunha’, a ir parar ao “Centro de Escuta” e só não foi por haver uma ‘cunha mais poderosa’…

Ora bem, para além de também, como ele, me congratular pelo facto de tal não ter ocorrido, pois provavelmente não teria havido inspiração para os magníficos poemas com que já nos brindou, devo dizer que, comigo passou-se praticamente o inverso.

Esclarecendo, digo que o desenvolvimento da “Guerra Electrónica”, com a ‘escuta’ em fonia e grafia das transmissões do IN, bem como acções de radiolocalização, escuta e gravação das emissões das rádios dos países vizinhos (Senegal e Guiné-Conacri), gravação de outras comunicações em francês (ORTF, Voz da América, BBC, etc.), acções de ‘empastelamento’ e controlo do mesmo das emissões do PAIGC, captação de emissões em telex de diversas agências noticiosas, etc., etc., tinha tido o seu grande impulso enquanto estive em Piche.

Por esses tempos os Fur Mil (é claro que só estou a falar destes, porque relativamente ao restante pessoal que dava corpo ao trabalho, não devo adiantar muito por falta de conhecimento de causa directo) Eduardo Pinto e José Fanha, que tinham chegado à Guiné comigo, não foram para o mato e estavam a ter uma vida verdadeiramente difícil nesse desenvolvimento da “Escuta” pois tinham serviço permanente de turnos, do qual saíam para fazer radiolocalização, voltar ao turno da “Escuta”, sair para fazer serviço de Sargento-de-Dia à Unidade, voltar ao turno, etc., etc., mas lá iam aguentando debaixo da ameaça de “vais p’ró mato”.

Como se devem lembrar do que o Belarmino escreveu, nós, STM’s, quando ‘colocados em qualquer quartel ou aquartelamento da Guiné não dependíamos do Comandante do Batalhão, nem de qualquer Comandante de Companhia, éramos ali colocados pelo Agrupamento de Transmissões (quando fui para Piche este Agrupamento ainda não tinha sido criado) e dele ficávamos dependentes, embora sujeitos às normas estabelecidas dentro desse quartel, até sermos substituídos’.

Ora bem, então. Quando terminei a missão e procurei saber junto do meu Comandante qual o destino reservado, se Teixeira Pinto se Bolama, ele, compreensivelmente pouco à vontade, disse-me que me devia apresentar ao Sr. Cap. Cordeiro da Companhia de Transmissões pois estava a fazer falta na “Escuta” e precisavam lá de mim.

Estão a ver a situação?

Por um lado eu ‘vinha do mato, duma tal zona C’, que era um papão para aqueles desgraçados que estavam em Bissau e que de lá não queriam sair. Pelo mesmo lado, eu sabia da ‘qualidade de vida’ que eles tinham em Bissau, na “Escuta”, e sabia da relativa tranquilidade disciplinar que tinha vivido no mato, fora, é claro, das ‘outras coisas’ inerentes à permanência em local sujeito a flagelações, ataques, emboscadas, etc., para além da angústia partilhada com quem tinha tarefas bem mais perigosas. Por outro lado, ainda, tinha a meu favor uma promessa não cumprida, por parte do meu Comandante…

Apesar do meu constante e veemente protesto fui mesmo apresentar-me ao Senhor Capitão Cordeiro (a última vez que o vi era Tenente Coronel mas já lá vão uns bons pares de anos…) sendo que se estabeleceu uma verdadeira conversa surreal.

Vê lá, amigo Maia, as diferenças entre 71 e 73.

O Senhor Capitão diz-me que tenho que ir para a “Escuta”, pois tem pouco pessoal e eu faço lá falta!

Eu respondo-lhe que “quero ir para o mato”, que pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

O Senhor Capitão não se deixa impressionar (obviamente) e diz que tenho que fazer uns testes para poder ir para a “Escuta”.

Respondo-lhe que não vale a pena fazer os testes porque não tenho qualificações e, além disso, “quero ir para o mato”, pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

O Senhor Capitão diz que os testes consistiam essencialmente em saber o que eu sabia de francês e inglês, pois isso era necessário.

Respondi que, quanto a isso, não sabia nada e que “queria ir para o mato”, pertencia ao STM e não à Companhia de Transmissões, que tinham prometido compensar-me com descanso devido ao êxito de minha missão e não com ‘trabalho escravo’.

Sem se perturbar (garanto que já várias vezes ‘visualizei’ a cena e não deixo de gabar a paciência que ele teve) o Senhor Capitão inquiriu:

- Aqui na tua ficha diz que tens a frequência do 2.º ano do Instituto Industrial…
E eu disse:

- É verdade, mas “quero ir para o mato”, pois pertenço ao STM…”

Interrompeu-me e em jeito de consequência do que tinha dito antes adiantou:

- Então, isso quer dizer que, para entrares no Instituto Industrial, tiveste que ter dado francês e inglês…”

- Pois, - disse eu, - mas isso foram só umas noções escolares, não tenho prática” e além disso “quero ir para o mato”.

O Senhor Cap. Cordeiro arrematou:

- Está feito o teste. Vais para a “Escuta”.

Bem, aqui já não me podia recusar, estaria sob alçada disciplinar por desobediência a ordens mas, dadas as circunstâncias envolventes e o facto de comigo não poder resultar a ameaça de ‘vais p’ró mato’, foi possível ‘negociar’ condições para essa ida para a “Escuta”, em que a mais importante foi a de que não haveria serviços à Unidade, só “Centro de Escuta”, o que foi aceite para bem de todos os que os por lá desempenhavam funções.

Um abraço para toda a Tabanca!
Hélder Sousa
Fur Mil TRMS TSF

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5568: Votos de Feliz Natal 2009 e Bom Novo Ano 2010 (25): 'Ousemos lutar para ousar vencer' (Hélder Sousa)

Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5296: Histórias em tempos de guerra (Hélder Sousa) (7): Mascotes e animais de estimação e/ou companhia - Os gatos….

Guiné 63/74 - P5635: Agenda cultural (54): Convite para o lançamento do livro O Ninho, de Alexandra Almeida Reis (Manuel Reis)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, 1972/74), com data de 10 de Janeiro de 2009:

Caro Vinhal:
Quero agradecer-te o teu comentário elogioso em meu nome e em nome da minha filha sobre o livro que ela vai lançar no dia 16.
Já agradeci ao Vasco esta brincadeira agradável*.

Aqui vai o convite extensivo a toda a tertúlia que, desde já, agradeço a sua publicação.

Um abraço.
Manuel Reis


CONVITE PARA O LANÇAMENTO DO LIVRO "O NINHO", DE ALEXANDRA ALMEIDA REIS



O lançamento do livro terá lugar no Restaurante Bar Capitão Gancho, em Esmoriz, dia 16 de Janeiro de 2010, pelas 17:00 horas.

Editora - Chiado Editora

Apresentador, Rui Moço


Bar Capitão Gancho
Travessa da Barrinha, 195
Esmoriz

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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5620: Agenda cultural (53): Lançamento do romance O Ninho, de autoria de Alexandra Almeida Reis (Vasco da Gama)

Guiné 63/74 - P5634: Blogues da Nossa Blogosfera (31): Tabanca dos Melros - Ex-Combatentes do Ultramar Português de Gondomar (Jorge Teixeira/Portojo)

O nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo) (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos notícias do segundo encontro de camaradas (primeiro deste ano), da recentemente criada Tabanca dos Melros, ECUS's - Encontro de Ex-Combatentes do Ultramar Português, sediada no Restaurante Choupal do Melros, em Fânzeres, Concelho de Gondomar.

Carlos Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 2548/BCAÇ 2879, 
Jumbembem, 1969/71

Esta Tabanca foi criada em Dezembro de 2009, impulsionada pela ideia do outro nosso camarada Carlos Silva, advogado, natural de Gondomar, que mesmo vivendo na grande Capital, não esquece o seu concelho natal e os amigos/camaradas que por lá tem.

A referida reunião teve lugar no dia 10 de Janeiro passado e deu origem ao Poste 8* do Blogue desta Tabanca.

No aconchego quente de ambiente e de camaradagem, realizamos o segundo encontro dos Ecu's na bela Tabanca do Choupal dos Melros, do nosso mestre de cerimónias e camarada Gil Neves, a quem pusemos a cabeça à roda, pois não sabia com que contar. Fêz-lhe lembrar tempos antigos quando sobrevoava as bolanhas da Guiné e o famoso slogan da EPA "Nunca se sabe"...

Um aspecto da sala de convívio.

Blogue Tabanca dos Melros que pode ser visitada em http://tabancadosmelros.blogspot.com/

Fotos retiradas da Tabanca do Melros

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2010 do Blogue Tabanca dos Melros > P.8 - 10.1.2010 - A nossa primeira reunião do ano.

Vd. último poste da série de 28 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5556: Blogues da Nossa Blogosfera (30): Do caos ao cosmos, extensão de Reflexos e interferências (Regina Gouveia)

Guiné 63/74 - P5633: Núcleo museológico Nemória de Guiledje (2): Inauguração no próximo dia 20 de Janeiro, com a Júlia Neto a representar o nosso blogue



1. Reprodução, com a devida vénia, de documento da AD - Acção para o Desenvolvimento (Agradeço ao Filipe Santos, da Escola Superior de Educação de Leiria, o envio do ficheiro em formato compatível com o html; o Filipe Santos é o webmaster da página dos nos nossos amigos da AD - Bissau. Ao Pepito, agradeço a autorização, para a reprodução, no nosso blogue, do texto e de uma selecção de imagens).


Inauguração do Núcleo Museológico Memória de Guiledje > 20 DE JANEIRO DE 2010

A recuperação e transmissão da História, quando as testemunhas vivas começam a desaparecer, deve ser considerada como uma missão, um dever e uma obrigação. É preciso contribuir para que se compreenda o que se passou antes, conhecer os caminhos da história e reforçar os sentimentos que nos unem.



A Guiné-Bissau vive um momento em que um dos maiores desafios que se lhe depara é o de preservar e reforçar a sua identidade enquanto Nação, consciente de que o conhecimento e a compreensão da sua História é determinante para uma maior identificação colectiva.

(1) Construção da Capela com a laje de Zé Neto



(2) Colocação da cruz celta
recuperada



(3) Operação de colocação da cantoneira recuperada na Capela



O quartel de Guiledje que foi construído em 1964 no sul da Guiné-Bissau, na actual região de Tombali, a uma dezena de quilómetros da fronteira norte da Guiné-Conakry, é um símbolo nacional.


A luta armada pela independência da Guiné-Bissau tem início em 1963 e, em 1972, Amílcar Cabral, considera o quartel de Guiledje como o mais bem fortificado da frente Sul, afirmando: “Se este quartel cai, tudo à volta também cai”.

(4) Vista exterior do Museu

Em Maio de 1973, Guiledje cai. Quatro meses depois, em Setembro, reúne-se em Boé a primeira Assembleia Nacional Popular que declara a criação da República da Guiné-Bissau. Menos de um ano depois a guerra colonial acaba.

(5, 6, 7, 8, 9) Diversos objectos expostos: quépi e galões de capitão, doadas pelo Cap Mil Abílio Delgado (5, 8); talheres e cantil usado no mato (6, 7); rádio usado pela guerrilha (9)... Trata-se apenas de uma pequena amostra dos objectos expostos...


Porque, como diz um combatente pela independência, trinta e cinco anos depois, foram “estabelecidas as pontes emocionais entre aqueles que, em lados opostos da barricada, viveram com todo o seu ser, momentos de sangue, de sofrimento e de destruição, e que, hoje, se dão as mãos na construção de um mundo feito de compreensão, amizade e respeito mútuo, a história comum pode ser escrita, com objectividade, como legado às gerações vindouras”.


Porque é preciso explicar a História de forma interessante e compreensível é que surge o Núcleo Museológico “Memória de Guiledje” (1, 2, 3, 4).

Do antigo quartel de Guiledje, pouco resta hoje, senão alguns marcos escritos e material de guerra destruído.


Porque é preciso fazer a ligação entre o passado e o futuro é que se iniciou a sua reabilitação a qual, embora respeitando a estrutura e traça original do quartel, irá utilizar as suas diferentes componentes para novas vocações, dinamizando a vida comunitária local e constituindo uma referência histórica nacional.


Para isso muito contribuiu a vontade de todos os que por lá passaram, grande número dos quais foi fazendo doações pessoais de objectos a que estavam muito ligados sentimentalmente, dando fotografias, aerogramas, rádios-telefone, galões, bonés, fardas, colheres, marmitas, relógios, ou contribuindo para o arranjo interior do museu, com o diorama, os grandes posters, etc. (5, 6, 7, 8, 9)


Guiledje – o Futuro

O maior desafio será o de Guiledje se constituir como um pólo de desenvolvimento regional, compreendendo:

(i) O Museu Histórico que perpetuará a história da luta pela independência da Guiné-Bissau, em especial a ligada às zonas libertadas do sul do país, assim como a presença dos militares portugueses que construíram o quartel e nele viveram cerca de 10 anos.

O Museu permitirá aos visitantes o acesso a documentos fotográficos, mapas, textos escritos, vídeos e cartas pessoais dos protagonistas, guineenses, cabo-verdianos, cubanos portugueses, testemunhando e relatando as suas vivências da guerra, às armas e meios logísticos utilizados na altura por um e outro lado, aspectos ligados à religião católica e muçulmana e o acesso a livros sobre a História e Guerra Colonial.


(ii) A Sede da Área Transfronteiriça de Guiledje que irá promover a cooperação das comunidades, agricultores, jovens e mulheres, organizações de base, autoridades tradicionais e administrativas, técnicos e decisores políticos da Guiné-Bissau e da Guiné-Conakry para a conservação e gestão correcta dos recursos naturais e humanos, em especial na preservação dos corredores de animais selvagens, a desmatação e repovoamento florestal, o uso da terra para a agricultura, o cumprimento do regulamento de caça e que irá dinamizar o desenvolvimento comunitário e apoio às iniciativas locais.

(iii) O Centro de Aprendizagem Rural, com o objectivo de formar e capacitar jovens para actividades profissionais, agrícolas e associativas: construção de poços, carpintaria, serralharia, mecânica, construção civil, energia solar, condução de pomares de fruteiras e jardins hortícolas, transformação de produtos agrícolas e criação e liderança de organizações de base

(iv) Um Pólo de Turismo Histórico a partir do qual, todos os ex-miliares que combateram naquela zona poderão aceder aos antigos quartéis de Cacine, Gadamael, Gandembel, Iemberém, Cadique, Cabedú e Bedanda, bem como às barracas da guerrilha nas matas de Cantanhez, praticando um turismo de saudade, trazendo as suas famílias as quais poderão apreciar igualmente outros atractivos naturais, culturais e ambientais, do chamado turismo verde.

Programa do dia 20 de Janeiro de 2010, Dia de Amilcar Cabral

Há cerca de dois anos, em Fevereiro de 2008, o Simpósio Internacional de Guiledje (**) recomendou a criação de um Museu em Guiledje que perpetuasse a memória de todos quantos, guineenses, cabo-verdianos, cubanos e portugueses viveram momentos que marcaram o nascimento da Guiné-Bissau.

É neste contexto que o Governo guineense decidiu que a cerimónia central de evocação desta data se realize em 2010 em Guiledje, com a participação de combatentes da luta pela independência, de um grupo de companheiros cubanos liderados pelo lendário Comandante Móia e de antigos militares portugueses, dos quais salientamos a presença do Dr. Luís Graça, coordenador do mais importante blogue sobre a guerra Luís Graça e Camaradas da Guiné (***), assim como da Senhora Júlia Neto, esposa do Capitão Zé Neto [ 1929-2007], o primeiro militar português a dedicar-se de alma e coração à reconstrução da Memória de Guiledje, acabando por falecer sem ver concretizado o maior sonho que perseguia: regressar à Guiné-Bissau e a Guiledje.

Para os convidados vindos de Bissau prevê-se a sua chegada a Guiledje pelas 10 horas, a que se seguirá uma visita ao Quartel e a inauguração do Museu e da Capela.

Às 11h30 ocorrerão diversas manifestações culturais, protagonizadas pelo grupo de teatro dos combatentes de Cantanhez, pelas antigas lavadeiras do Quartel de Guiledje (Lisboa e Dalandinha) e outros milícias que interpretarão e tocarão em harmónica cantigas portuguesas (****), o grupo coral “Os Fidalgos” com músicas da Luta e grupos locais de danças balanta e fula.

Às 13 horas far-se-ão os discursos oficiais para logo a seguir se passar ao almoço de convívio, na antiga pista de helicópteros.

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5616: Núcleo museológico Memória de Guiledje (1): Arame farpado e sistema de alerta com garrafas de cerveja (Pepito)

(**) Há um vídeo da TV Massar, a televisão local do Cantanhez, sobre a visita ao sul dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, que ainda não passou aqui no nosso blogue, e que está disponível no sítio da Fundação Mário Soares > Arquivo e Biblioteca > Dossiers > Guiledje (Março de 2008) >

(...) A Fundação Mário Soares participou e apoiou o Simpósio Internacional "Guiledje: Na rota da Independência da Guiné-Bissau", que se realizou em Bissau, de 1 a 7 de Março de 2008.

Neste âmbito, O Arquivo & Biblioteca da Fundação Mário Soares preparou um conjunto de documentos e fotografias relacionadas com Guiledje, com recurso, designadamente, ao Arquivo Amílcar Cabral.

Links > Apresentação · Textos · Fotografias · Exposição · Documentos · Ficha Técnica · O Simpósio (...)

Sobre o Simpósio > vd. a reportagem realizada pela Televisão Massar acerca do Simpósio Internacional de Guiledje (Vídeo: 4' 10'').

(***) Infelizmente, o fundador e administrador deste blogue não poderá estar presente, em Guiledje, no dia 20 de Janeiro, por razões da sua vida académica. Fez algumas diligências para ser representado eventualmente por membros do blogue (o José Brás, o Xico Allen). Em última caso, estará condignamente representada pela Dª Júlia Neto, que aceitou essa incumbência e, inclusive, fazer para nós um pequeno relato da cerimónia. Aceitou igualmentre o nosso convitre para passar, a partir de agora, a figurar como membro da nossa Tabanca Grande, o que muito nos honra.
(...)

Aproveito para relembrar, aos mais novos, aos periquitos da Tabanca Grande, a história e o significado da capela de Guileje, erigida no tempo da CART 1613 (do Cap Art Corvalho e do 2º Srgt Zé Neto, 1967/68)... Infelizmente, o Zé Neto (com o posto de Cap Ref) foi o primeiro a deixar-nos... A morte levou-o aos 78 anos... Morreu em 2007. Tinha nascido, em Leiria, em 1927.

Em homenagem a este nosso querido camarada, a AD - Acção para o Desenvolvimento convidou a viúva, Júlia Neto, a estar presente na cerimónia oficial da inauguração, a 20 do corrente, do Museu de Guileje (incluindo a Capela, que será consagrada e aberta ao culto). Já falei com ela ao telefone, está muito orgulhosa pelo convite e aceitou representar-nos, a todos nós, blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné.... Parte para Bissau no dia 17 (...)

(****) Temos um vídeo com a interpretação de antigas músicas dos tugas, por uma das lavadeiras e por um antigo milícia, exímio tocador de harmónica, que ficará em breve disponível no You Tube > Nhabijao e no nosso blogue... Foi o Pepito que nos mandou através do médico João Graça, em Dezembro passado.

Guiné 63/74 - P5632: Comentando o vídeo do Jorge Félix / Pierre Fargeas, sobre a viagem em LDG entre Bissau e Binta, no Rio Cacheu (Carlos Matos Gomes)


 1. Mensagem do Cor Cav Ref e escritor Carlos Matos Gomes (aqui na foto, à esquerda, na antiga Fortaleza da Amura, Bissau, em 7 de Março de 2008, no último dia do Simpósio Internacional de Guileje):

Assunto - P5609 (*)

 Meu caro Luís

Em primeiro lugar Bom Ano para ti, para a tua família e para todos os que administram e habitam este magnífico condomínio.

Agora aqui vai a minha modestíssima colaboração a propósito do Post 5609 do Jorge Félix, com título adequado Por este Cacheu acima e música à maneira. Com estas imagens voltamos ao tempo e ao local.


Obrigado da minha parte ao Jorge Félix pelo trabalho que me permitiu reviver uma viagem que fiz de Bissau a Ganturé (Bigene) e regresso de Binta a Bissau em Maio de 1973 aquando da expedição a Kumbamori  na operação Ametista Real (que o doutor Manuel Rebocho classificou de mal planeada e executada, sem apresentar nenhuma razão para a classificar assim, porque talvez a sua ciência assente na fé, o que tem não mal nenhum).

Ora aqui vão alguns elementos de entre os que sugeriste em TPC:

(i) A Lancha era uma LDG (Lancha de Desembarque Grande) e não uma LGD (também dá no mesmo: Lancha Grande de Desembarque – é o que tem de bom a língua portuguesa, a ordem dos factores é quase sempre arbitrária e as excepções são mais que a regra);

(ii) No vídeo aparece 2 vezes o comandante da LDG, uma delas é a última imagem, aquele senhor meio calvo, solitário, é o primeiro-tenente Bilreiro (já falecido) que terminou a sua carreira como capitão de mar e guerra;

(iii) O 1º Tenente Bilreiro comandou a LDG nos anos de 1973/1974, data em que o vídeo deve ter sido feito;

(iv) Relativamente a pessoas citadas por Jorge Félix, o Rebordão e Brito (Capitão de mar e guerra fuzileiro) já faleceu, e também o Benjamim (Benjamim Abreu), dois parceiros de aventuras, dois homens corajosos e divertidos;

(v) A peça que se vê a fazer tiro é uma Bosfors;

(vi) Quanto à duração da viagem de Bissau a Binta,  tenho a ideia de que, dependendo da maré,  era coisa para demorar uma 7/8 horas.

(vii) Ainda quanto a Ganturé, a base dos fuzos. Ganturé ficava antes de Binta, para quem vem do mar. No rio Cacheu os pontos de "abicagem" eram, vindo de Bissau (mar): Cacheu (margem esquerda), Ganturé, Binta e Farim (na margem direita).

Isto são apenas lembranças tiradas da memória de há 35 anos, com as desculpáveis (julgo) imprecisões.

Julgo que o Pedro Lauret pode dar informações mais detalhadas sobre estas navegações fluviais.

Um abraço

Carlos Matos Gomes



2.  Comentário de L.G.:

Dei conhecimento prévio deste mail ao Jorge ("Para teu conhecimento em primeira mão e incentivo para o próximo vídeo")... Quanto ao Carlos, disse-lhe o seguinte:


Carlos: Obrigado pela aplicação no TPC... LDG e não LGD: a culpa é sempre das pressas e da falta de controlo de qualidade... final.

Tudo de bom para ti e para nós em 2010. Já é altura de entrares para a Tabanca Grande, que não tem porta nem janelas...Luís

[Fixação / revisão de texto: L.G.]
 
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Nota de L.G.:
 
(*) Vd. poste de 8 de Janeiro de 2010  > Guiné 63/74 - P5609: Vídeos da guerra (9): Viagem de LGD, pelo Rio Cacheu acima, até Binta (Jorge Félix / Pierre Fargeas)


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5631: Notas de leitura (53): Katafaraum é uma nação, de José Martins Garcia (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) , com data de 8 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Junto recensão acerca de uma das mais prodigiosas obras do José Martins Garcia, que foi nosso camarada da Guiné.

Um abraço do
Mário


Katafaraum é uma nação

Beja Santos

José Martins Garcia dominou diferentes modos e géneros discursivos: romance, conto, poesia, dramaturgia, ensaio e crítica. É surpreendente a mestria com que separou estas diferentes intervenções. Isto para dizer que quanto à guerra onde, segundo os seus críticos, teve uma abordagem original na exploração com sucesso do delírio, da derisão, da paródia, fabricando personagens entre a paranóia e demência, é um universo que dominou as suas atenções em livros que escreveu fundamentalmente nos anos 70. “Katafaraum é uma nação” será provavelmente a última das obras do antes do 25 de Abril e a primeira que se publicou logo a seguir à revolução. Não é imaginável esta paródia publicada na segunda edição (em Maio de 1974) a ter fugido ao crivo da PIDE/DGS.

O soldado-cadete Ramalho, e depois alferes Ramalho, é o centro da história. Vem no final do livro que, surpreendentemente, foi encarado como um ajuste de contas com professores universitários, ousadia que lhe terá custado a carreira universitária em Lisboa. Segundo ele escreve em 28 de Abril de 1974, katafaraum ocorreu-lhe depois de ter assistido ao I Encontros dos Professores de Língua e Literatura Portuguesa onde, segundo ele, foram apresentadas algumas das mais ridículas bacoradas que algum mortal pôde escutar. Ele desforrou-se escrevendo um conjunto de crónicas no jornal “República”.

Mas vamos aos feitos da Guiné. Primeiro, o Ramalho anda por Mafra em recruta (recorda-se que alguns parágrafos apareceram na recensão do livro de João de Melo “Os Anos da Guerra”). Destas andanças respiga-se um parágrafo:

“Barbeados, engraxados e seriamente inócuos, marcharam os soldados-cadetes ao longo das bermas, cordões de uniformes número 3, cinzentos, esfiapados, enodoados por rastejos de recruta, enquanto a raça loura fazedora de turístico sorriso abanava germanismos desde velozes descapotáveis, às quais gentilezas respondia por vezes um katafaraónico palavrão... Marcharam longamente, sem avaliarem da tipografia, por que nessa operação de competência contava simplesmente o tempo, nunca o espaço. Talvez marchassem para algum destino marcado pelos deuses, talvez que às voltas cumprissem imperscrutáveis meandros do tempo. E o semideus do jipe, director de tantos e tão secretos desígnios, passava e repassava em seu traje de campanha e sobre seus sólidos pneus, todo baboso de tanto estendal de competência, assim distribuída em dois carreiros de homens-formigas, marchando sem perguntas e sem quererem saber para onde... Ao transitar por entre as filas em que se tornara a primeira companhia, o senhor do jipe ordenou ao serviçal do volante que abrandasse o andamento. Mirou, regozijado, o disciplinado estendal e teve uma palavra amiga na direcção do capitão:

- Então, nosso capitão... os seus doutores hoje ‘stão fodidos”

Quem anda em campanha molha-se, corre o risco de ser abalroado pelo inimigo. Nos preparativos militares o inimigo é uma ficção que nunca mais nos saiu da mente, como José Martins Garcia regista:

“O inimigo guarda um conveniente silêncio. A ponte avizinhava-se escandalosamente. O pelotão tacticamente conduzido pela bravura do seu comandante, encontrava-se a descoberto, à vista de qualquer observador medíocre, a umas dezenas de metros da ponte, numa paródia de guerra, num grande desperdício de atacantes. O bravo alferes mandou fazer alto, para improvisar a vitória. Foi nessa altura que o semideus do jipe, manhosamente silencioso veio inquirir das grandes manobras. O alferes, em sentido, garantiu que ia ganhar. Mas o semideus queria certificar-se do grau de responsabilidade daqueles bravos. E, vendo o idiota do soldado-cadete ramalho muito entretido a observar a paisagem, berrou:

- Você aí! Está a ouvir?

O Ramalho estava, evidentemente, a ouvir. Encarou o semideus e continuou mudo.

- É consigo que estou a falar, ouviu? Ouviu? Estou a fazer-lhe uma pergunta.

Responda. É uma ordem.

- Ouço – resmungou o outro.

- Mais alto, que não ouço...

- Ouço – berrou o Ramalho.

- Ah ouve! Ouve o quê?

- Estou a ouvir Vossa Excelência.

- Ah! E sabe o que vai fazer?

- Com certeza, Excelência. Vou apanhar o inimigo.”

Temos agora o alferes miliciano Ramalho a chegar a Takiá (será Catió?), parece que está a levar a sério a sua entrada em cena na guerra. Do rigor das imagens passa-se para o surrealismo dos comportamentos, a demência anda à solta. O Ramalho pergunta ao médico sobre o estado de saúde dos oficiais, recebe respostas muito reservadas. Ramalho é oficial de transmissões (tal como José Martins Garcia foi na Guiné), vai fazendo perguntas, recebe respostas doidas. A segurança de Takiá é calamitosa:

“Então o alferes Ramalho, em voz baixa, perguntou ao alferes Mike:

- Em casa de ataque, quem é que defende isto?

- Ora ataque... quer dizer... há uma companhia de cavalaria que não está cá...

- Mas costuma estar?

- Às vezes está... outras não...

- E quando não está?...

- Há o alferes Carril, das auto-metralhadoras... aquele do bigode... Há aqui o gerente que tem um canhão...”

É nisto que sobrevém uma flagelação a Takiá, a guarnição entra em delírio, balbúrdia maior não pode haver. Os alferes Ramalho e Trabuco comem pernas de frango, abrem garrafas de cerveja, falam sobre Sartre e envolvem-se à porrada: “As metralhadoras insistiam na sua interminável competência. Bêbedos, incapazes de se susterem nas pernas, o veterano e o novato chafurdavam na lama”.

Afinal, o Jorge Cabral tem aqui um modelo parodiante. Há que reconhecer que esta centelha de talento é desopilante, é verdade que não nasceu agora mas continua a ser uma arma temível para descrever os frenesins de todos os tempos de todas as guerras. Tal como o desenho de humor, por sinal.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5622: Notas de leitura (52): Os Anos da Guerra, de João de Melo (6): J. M. Garcia, S. M. Ferreira e Cristóvão de Aguiar (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5630: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (2): O César e o Capitão Silveira

1. Mensagem de Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), com data de 8 de Janeiro de 2010:


O César e o Capitão Silveira

O César era o chamado mancebo do mais puro e inocente que a Companhia conheceu.
Quando em Santa Margarida soube que ia para a Guiné, que não fazia a mínima ideia do que seria, quando o comboio parou na Rocha Conde de Óbidos, junto ao Uíge, abriu a boca de espanto dizendo que nunca tinha visto nada igual, julgava que o barco era como no ribeiro da aldeia dele que levava meia duzia de cada vez para o outro lado, que não seria longe no seu pensamento.

Já em Bissorã em meados de Junho, o local não tinha condições para alojar tantos homens, estou a falar em 1964, e para exemplificar nós estivemos 6 ou 7 meses sem um frigorífico, bebia-se água e cerveja quentes, a não ser puxar pelo patacão nas tascas dos civis.

Houve então uma alma caridosa da retaguarda, aquela em que diziam que estava firme que nem uma rocha, enviou um aparelho a petróleo e foi uma festa.
Esse frigorifico, claro que só podia ser aberto 2 vezes por dia, almoço e jantar e para não haver abuso e respeito pela ordem, foi colocado no terraço dos oficiais, assim se houvesse abuso eram só meia duzia.

Numa bela noite de muito calor e depois de jantar, estava o Capitão Silveira, o Tenente Médico Campos, Alf Mil Lourenço, Paulo, Mendes e Cardoso, sentados nas esperguiçadeiras de pernas estendidas conversando, quando aparece o soldado César, passando por cima deles até chegar ao frigorifico, abrindo-o, garrafão à boca bebendo o que lhe deu na vontade.
O Capitão Silveira em voz alta advertiu assim:

- Ó pazinho que confiança é esta, passas aqui por cima de todos nós, abres a porta, garrafão à boca, bebes o que te apetece, como é a confiança e o respeito?

Respondendo de pronto:

- Ó meu Capitão, que eu saiba o frigorifico não é seu mas sim da malta toda.

O Capitão não se conteve, começou a rir, o que era raro, e mandou-o embora, dizendo entre dentes para os oficiais:

- Isto sim é que é pureza, embora a hierarquia não tivesse sido respeitada, com homens assim levo a Companhia para onde quero.

Rogério Cardoso
__________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 9 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5619: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (1): A tasca do Maximiano em dia de bife

Guiné 63/74 - P5629: O Nosso Livro de Visitas (80): Aluna do 2º ano do curso de jornalismo procura ex-combatentes para entrevistar (Cátia Bruno)

1. Mensagem deixada, hoje, como comentário, no poste de 11 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5627: Dossiê Guileje / Gadamael (20): Esclarecimentos sobre a retirada, em 22 de Maio de 1973: Parte II (Coutinho e Lima)
Boa tarde,

O meu nome é Cátia Bruno e sou aluna do 2º ano no curso de Jornalismo da Escola Superior de Comunicação Social [, do Instituto Politécnico de Lisboa].

Um dos trabalhos que tenho de realizar é um guião de reportagem (uma simulação por escrito do que pretendo para uma reportagem), com protagonistas reais, que necessito de entrevistar.

Eu gostaria muito que a reportagem fosse sobre os ex-combatentes da guerra colonial. Penso que é necessário não deixar morrer a memória do que se passou e que muitos hoje em dia parecem esquecer. As gerações mais novas não têm noção do facto de que tivemos pessoas a combater, numa guerra real, ainda não há muito tempo. Mas, para falar sobre isso, necessito de arranjar contactos e pessoas disponíveis para poder entrevistar.

A vossa ajuda seria uma grande mais-valia para mim, caso estejam interessados em participar. Qualquer pessoa que lá tenha estado, que tenha sentido na pele, dá sempre uma boa história. Infelizmente, como vivo na zona da Grande Lisboa só tenho oportunidade de me encontrar por aqui e,  portanto, com alguém que viva perto.

Aguardo uma resposta da vossa parte, desde já agradecendo a ajuda na recolha de alguns testemunhos de pessoas que queiram colaborar. Caso estejam interessados ou para qualquer esclarecimento ou dúvida: catiacbruno@gmail.com

Sem outro assunto e com os meus melhores cumprimentos,

Cátia Bruno (*)
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 8 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5612: O Nosso Livro de Visitas (79): Conheci e estimei o Ten Cor Pimentel Bastos, 1º Cmdt do BCAÇ 2852 (António Vaz, ex-Cap Mil, CART 1746, Bissorã e Xime, 1967/69)

Guiné 63/74 - P5628: Antropologia (16): Canções antigas do Natal de Bissau (Manuel Amante da Rosa)



1. Mensagem do nosso camarada Manuel Amante, cabo-verdiano, antigo embaixador do seu país, a viver e a trabalhar neste momento em Macau no quadro de uma missão da CPLP, ex-militar dos serviços de intendência (Bissau, 1973/74), membro da nossa Tabanca Grande desde Maio de 2007 (*):

Assunto - Canções antigas de Natal na Guiné-Bissau (**)


Caro Luís,

Mão amiga enviou-me este anexo. Muito provavelmente muitos dos membros da nossa Tabanca Grande que tenham passado um Natal na Guiné, terão visto e escutado grupos de crianças que, festeiramente, andavam de porta em porta com pequenos presépios ou casas de papel, iluminadas com vela por dentro, mais uns bonecos articulados, alguns com caricas de garrafas de cervejas pregadas em tábuas de ocasião a chocalhar, acompanhando um coro, por vezes desafinado. São gratas recordações dessa tradição que ainda hoje persistem em Bissau.

Um forte abraço
Manuel Amante

2. Natal (de outrora) na Guiné.





Outrora e até o início dos anos 70 do século passado, era frequente, nas noites de 24 e 31 de Dezembro, as ruas da cidade de Bissau serem percorridas por grupos de jovens guineenses, oriundos dos Bairros periféricos, que consigo transportavam interessantes réplicas de igrejas e capelas. Eram as “Capelinhas”.


Feitas numa estrutura de madeira muito leve, vulgarmente denominada “tara” (Raphia sp. Exsicc. Esp. Santo 766), eram forradas a papel de seda, contendo, no seu interior, várias pagelas de santos e, ao centro, iluminadas por um coto de vela, o que, no breu da noite, conferia ao conjunto um aspecto de particular carinho.

Os grupos de miúdos percorriam as ruas de Bissau, cantando, de casa em casa, saudando, a troco de 5 tostões [1], com a seguinte cantilena os moradores. E, assim rezava:


I
S. José, sagrado e Nha Maria,
Ai quando foi, quando foi, para Bélém,
A resgatar Menino di Jesus,
L ’ ao pé, l ‘ ao pé da Santa Cruz.


II
Adório o mistério, sobrinho de minha alma,
Sobrinho de minha alma, do o Senhor,
Todo o doce encanto, todo reminado,
Todo o doce encanto, sempre a chorar.
Ai, ai, ai, ai, de vez em quando, Sempre a chorar.


III


A Angelina, a Angelina qui já moreu
Si não podia confessar se não do Papa, Si não
do Papa, se não do Bispo se confessou
Para pédir Boas Festas, boas almas.


IV


Adório o mistério, sobrinho de minha alma,
Sobrinho de minha alma, do o Senhor,
Todo o doce encanto, todo reminado,
Todo o doce encanto, sempre a chorar.
Ai, ai, ai, ai, de vez em quando, Sempre a chorar.



Acompanhada, sequencialmente pelos famosos bonecos, tipo espantalhos feitos de papelão, presos numa cana ou pequena haste de madeira, com os braços e pernas articulados, graças a um sistema de cordéis interligados, nas costas, dos referidos bonecos.

Estes bonecos eram conhecidos pela designação vulgar de “Quincões”, os quais os garotos accionavam freneticamente e, numa repetitiva ladainha, assim diziam:

Quincon, quincon
Cabeça de com [2],
Quincom, quincom
Rabada de com.

__________

[1] A que, em crioulo, designavam por “dôs xelins”


[2] Cão.

___________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes de:

28 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5555: A navegação no Rio Geba e as embarcações do meu tempo: Corubal, Formosa, BOR... (Manuel Amante da Rosa)

12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5455: Memória dos lugares (60): O Rio Geba e o navio Bubaque, do meu pai (Manuel Amante da Rosa)


27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...

(**) Vd. último poste da série Antropologia > 24 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5331: Antropologia (15): Um dos maiores tesouros artíticos da Guiné: os Sônôs (Beja Santos)


Vd. também blogue Nós com África > 8 de Dezembro de 2009 > Tradições de Natal na Guiné-Bissau

(...) No interior do país é habitual juntarem-se grupos de jovens da etnia Balanta e também de outras etnias durante a época das chuvas para fazerem a lavoura nas terras. Estes grupos são constituídos por cerca de 15 jovens. O pagamento desse trabalho é feito pelo dono de cada terra, através do pagamento de uma certa quantia ou de produtos (um porco, sacos de arroz ou outros produtos). Um dos jovens fica responsável por guardar o pagamento até à época do Natal. Com o aproximar do Natal, o grupo constrói uma barraca com folhas de palmeira, afastada da tabanca para os habitantes da aldeia não ouvirem o barulho dos festejos. Na noite de 24 de Dezembro os jovens de cada grupo juntam-se, matam um porco e dançam até à manhã de dia 25. No dia 25 convidam os mais velhos da tabanca e fazem uma grande festa onde comem, bebem, brincam e celebram durante todo o dia.



Em Bissau há missa à meia noite na véspera de Natal. Algumas famílias fazem uma ceia na noite de 24 de Dezembro. Embora não haja nenhuma comida típica para a ceia, podem fazer pratos tradicionais da Guiné-Bissau, como caldo de chabéu, caldo branco ou outros. A etnia Bijagó tem por tradição comer caldo de chabéu. No dia de Natal a festa dura todo o dia. Algumas pessoas cortam uma árvore do Bairro da Granja e é hábito decorá-la com balões. (...)

Guiné 63/74 - P5627: Dossiê Guileje / Gadamael (20): Esclarecimentos sobre a retirada, em 22 de Maio de 1973: Parte II (Coutinho e Lima)


Guiné > s/l > s/d (c. 1973) >  "Guerrilheiros deslocando-se num carro blindado, Guiné-Bissau".

Foto do acervo documental de MárioPinto de Andrade (1928-1990), dossiê do Arquivo e Biblioteca da Fundação Mário Soares.  Estas viaturas, oriundas da base de Kandiafara, a sul de Guileje, na vizinha Guiné-Conacri, já estavam em em 1973 devidamente identificadas e referenciadas pelas autoridades militares portuguesas, contituindo um perigo potencial para as guarnições fronteiriças, tais como Guileje, Gadamael ou até Cacine.

Foto (e legenda): Cortesia de  © Fundação Mário Soares (2009). Direitos reservados



Segunda e última parte do texto do Coutinho e Lima de resposta ao poste P 4634: Dossier Guileje/Gadamael 1973 (13): A desonra da CCAV 8350 ou o direito à minha versão... (Constantino Costa)

Nota prévia de L.G.: 

Este documento, enviado em duas partes, foi  escrito pelo antigo comandante do COP 5, e tem data de 30 de Setembro último. Infelizmente, não temos registo, na nossa caixa de correio, da sua entrada naquela data ou em datas próximas. Daí termos recentemente solicitado uma 2ª via ao nosso camarada Coutinho e Lima, que é membro da nossa Tabanca Grande e que, como tal, não precisa de invocar o direito de resposta.  Ontem já foi publicada a 1ª parte do texto (*).


O Constantino pergunta ainda: "…o que diriam aqueles que, involuntariamente, perderam a vida em vão, em Guileje e Gadamael? Alguém lhes concedeu uma oportunidade para fugirem também?"

Penso que, onde está Guileje, devia estar Guidage.

Já ficou referido que as guarnições de Guidage e Gadamael  foram oportunamente reforçadas; em Gadamael, em minha opinião, se o reforço se tivesse verificado mais cedo, certamente que o PAIGC não tinha instalado o seu dispositivo com tanta facilidade e as consequências da sua acção, para as NT e população, não teriam sido tão graves.

A pergunta atrás sugere-me outra: O que diriam hoje as famílias daqueles que teriam morrido ou feitos prisioneiros, em Guileje, se não tivesse havido a retirada, por mim decidida?

Nos convívios da CCAV 8350, que esteve em Guileje, é frequente ouvir vários dos presentes referir que, se não fora a retirada, seguramente não estariam agora nesses convívios.

Diz também o Constantino que fui "…o autor do primeiro e único abandono das tropas portuguesas de um quartel militar…"

Não sei se foi o único "abandono", pois não tenho a certeza que, depois do 25 de Abril, não terão existido situações semelhantes.

De qualquer maneira, mesmo que tenha sido o primeiro e único, também fui, seguramente, o único Comandante que foi "abandonado" pelo Escalão Superior, quando pedi reforços, face à situação da acção em força do PAIGC.

Afirma ainda que "…desonrou as forças armadas…".

Se não tivesse ordenado a retirada e se verificasse um número considerável de baixas e prisioneiros feitos pelo PAIGC, será que o Constantino concluiria que teria havido uma grande honra para as Forças Armadas?

Nunca é demais repetir que a vida humana não tem preço e que, com a minha decisão, foi evitada a perda de vidas humanas.

Não sei se o Constantino leu o meu livro; parece que não, quando pergunta que medidas tomei, face ao previsível agravamento da guerra. Nas pág. 24 a 26, são referidas as "primeiras medidas tomadas…em Guileje.":

- Reforço de Guileje com 1 GC da CCAÇ 3520 (Cacine), Pelotão de Reconhecimento Fox 3115 (incompleto) e Pelotão de Milícia 236, de Gadamael.

- Proposta para serem efectuadas novas obras no aquartelamento, feita em 22 JAN 73, dia em que cheguei a Guileje.

- Proposta, em 24 JAN 73, da substituição do material de Artilharia – Peças de 11,4 cm por Obuses de 14 cm, em virtude de ter conhecimento de que as munições de 11,4 estarem a acabar; esta proposta sugeria que as Peças de 11,4 permanecessem em Guileje, enquanto houvesse munições para elas, mesmo depois da chegada do material de 14, aumentando assim o potencial de fogo.

Outra afirmação do Constantino: "Chegou-se ao ponto de…se deixar de efectuar patrulhamentos…, e com isto se facilitou que o In se aproximasse do aquartelamento em pequenos grupos…"

Já foi referido que solicitei a redução da actividade operacional, a partir de 30 ABR 73, para dedicar um esforço especial às obras, que estavam atrasadíssimas, por razões estranhas ao COP 5; a minha proposta foi aceite, devendo manter a abertura da estrada de Mejo, o que foi feito.

Não, Constantino, não foi a redução da actividade operacional que facilitou a actividade do In; este preparou o ataque durante meses e o Comando-Chefe tinha conhecimento da intenção do PAIGC, relativamente a Guileje.

Em Gadamael, no período de 22 a 31 MAI 73, foram realizados patrulhamentos intensos e frequentes, das 2 Companhias aí presentes; esta actividade operacional não impediu que o In montasse o seu dispositivo e desencadeasse, a partir de 31MAI/1 JUN, violentas flagelações sobre o aquartelamento e população de Gadamael.

Como é que o Constantino explica este último facto?

O Constantino pergunta por que não relatei, no meu livro, "…que uma parte da população de Guileje não queria abandoná-lo."

Mais uma vez parece que não leu o meu livro; nas pág. 154 a 162 constam os depoimentos dos seguintes elementos da população:

- Suleimane Djaló, Régulo de Guileje

- Amadu Djaló, irmão do Régulo e seu substituto

- Ussumane Silá

- Manga Dansó

Nas pág.166 e 167 está o depoimento do Cipaio Dauda Jaquité.

Praticamente todos estes elementos da população, quando interrogados sobre o assunto, declararam que não queriam sair de Guileje e compreende-se que pensassem assim, porque ninguém gosta de abandonar a sua terra e, neste caso, os seus haveres.

Não tenho qualquer dúvida que se tratava de um caso de sobrevivência, pois que não havia nenhumas condições de fazer face, com êxito, à ofensiva do PAIGC; foi por isso que determinei a retirada de toda a guarnição e população, para Gadamael.

Esperava encontrar, no auto de corpo de delito que me foi instaurado, o modo como o Comando-Chefe e o seu Estado Maior pensavam resolver a situação de Guileje; só em parte fiquei a saber a ideia do Sr. Comandante-Chefe sobre o assunto. O Coronel Pára-quedista Rafael Durão, ao ser nomeado novo Comandante do COP 5, viu alterada a Missão deste (pág. 117 do meu livro – resposta à 1ª. pergunta):

"…No dia 21 recebi directamente de Sua Excelência o General Comandante-Chefe ordem para manter a todo o custo o destacamento de Guileje, naquele local, para o que devia verificar as necessidades em meios para lá colocar os abastecimentos de toda a ordem, mais de 200 toneladas…"

A missão de "manter a todo o custo", era a mais exigente e que, no limite, poderia significar que era preciso aguentar até ao último homem; não era esta a Missão que me estava confiada, pois se o fosse, não poderia ser efectuada a retirada.

Não posso deixar de referir que, naquela data (21 MAI), com o aquartelamento de Guileje sujeito a intensas, constantes e prolongadas flagelações, desde as 20 horas do dia 18 MAI, a preocupação era " colocar lá os abastecimentos…", em vez de, em primeira prioridade, desarticular o dispositivo do Inimigo, de modo a aliviar a forte pressão que estava a ser exercida sobre as Nossas Tropas. Só quando a situação o permitisse é que se poderia tentar realizar as colunas de reabastecimento, o que, seguramente, o In iria dificultar ao máximo, ou até impedi-las, através de emboscadas e implantação de minas no itinerário.

Só quando, no Arquivo Histórico Militar do Exército, procedia à recolha de elementos para o meu livro, encontrei a Acta da Reunião de Comandos, realizada em Bissau, em 15 MAI 73; essa reunião foi presidida pelo General Comandante-Chefe, estando presentes os Chefes dos 3 Ramos das Forças Armadas, o Comandante Adjunto Operacional, o Chefe de Estado Maior e os Chefes das Repartições de Informações e Operações do Comando-Chefe.

O General Comandante-Chefe abriu a sessão, afirmando: 

"…Estamos de novo em presença de ponderosas determinantes de uma reavaliação da situação no TO, face à evolução há muito prevista e recentemente verificada, e perante a qual se impõe não só a tomada, no plano interno, de medidas imediatas que permitam fazer face aos aspectos mais prementes da nova ofensiva que defrontamos, como ainda a consideração do grau de afectação sofrido face ao aumento de potencial do In, em ordem à definição urgente dos meios essenciais a mobilizar com vista à continuação do cumprimento da missão…

"Encontramo-nos, indiscutivelmente, na entrada de um novo patamar da guerra, o que necessariamente impõe o reequacionamento do trinómio missão-inimigo-meios. Começaremos esta reunião pela consideração da situação no T.O. face ao inimigo actual e à sua evolução futura, análise a apresentar pelo Chefe da Repartição de Informações a que se seguirá a apresentação do estudo das incidências da evolução do In na situação das NF, no seu potencial, capacidade de manobra, liberdade de acção e suficiência para o cumprimento da missão em termos de prosseguimento da manobra de contra-subversão. Apresentará este estudo o chefe da Repartição de Operações em cujo âmbito se projectam em pleno os condicionamentos actuais. Solicitarei em seguida, aos Senhores Comandantes-Adjuntos a sua impressão sobre o In e a situação das nossas Forças, bem como sobre o reflexo da situação actual e futura na sua esfera de responsabilidade; e ainda a definição das necessidades cuja carência se reflita no cumprimento das respectivas missões. Dou a palavra ao Chefe da Repartição de Informações."

Da intervenção do Chefe da Repartição de Informações, transcreve-se:

"A situação no T.O., analisada à luz da evolução do In e do seu potencial e processos de acção, sofreu, em especial nestes últimos dois meses, um substancial agravamento de resto já oportunamente previsto face às informações processadas, e que se traduz em franca subida de grau no desenvolvimento em escalada na sua manobra político--militar, constituindo o tempo inicial de uma nova fase do conflito: o empenhamento na passagem para acções do tipo convencional, embora ainda isoladas, visando objectivos limitados, e não integrados em qualquer plano de ofensiva geral em moldes clássicos, só próprios, aliás, de uma ulterior e última fase…

O ponto de viragem característico desta subida de grau materializou-se no explosivo incremento da eficácia dos meios In de neutralização da nossa até aqui total liberdade de acção da arma aérea, meios aqueles de que o In largamente dispõe em todo o T. O., desse modo resultando afectada a mais poderosa senão mesmo a única determinante da nossa superioridade de meios no balanço do potencial relativo de combate das forças em presença. E o acréscimo de liberdade de acção daí resultante para o In, adicionado às múltiplas incidências das resoluções que do mesmo facto advêm, confere ao desenvolvimento ulterior da manobra inimiga um grau de perigosidade jamais atingido.

Como factos marcantes…julgam-se de referir…os seguintes factos expressivos:

- Súbito crescimento em qualidade e quantidade da acção ofensiva directamente orientada para objectivos pontuais em áreas enfraquecidas pela nossa deslocação de meios para as áreas de esforço, em nítida intenção de conquista territorial;

- aparecimento no T.O. de unidades In quase totalmente constituídas por elementos não-africanos em acções frontais contra as NF;

- recrudescimento notável da agressividade do In, cujas acções se revelam já perfeitamente delineadas nos seus tempos de fixação, envolvimento, assalto e perseguição;

- disponibilidade de meio aéreos pelo In – próprios ou de reforço – e de carros de combate nas bases de onde normalmente irradia para as acções nas fronteiras Leste e Sul;

- transferência para o BOÉ da área tentativa para a implantação do novo estado."


No que diz respeito à SITUAÇÃO MILITAR:

"…No domínio dos armamentos, refere-se:

- a disseminação dos mísseis terra-ar inimigos em todo o T.O., eficazmente utilizados e referenciados em…

- as notícias insistentes referindo a disponibilidade para o In de armamento antiaéreo mais poderoso e eficaz, ainda não identificado;

- a confirmação de que o In dispõe já, apenas aguardando a chegada dos especialistas respectivos em treinos nos países comunistas de:

- lança torpedos e novos tipos de minas aquáticas para emprego contra as FN

- carros de combate e viaturas anfíbias

- novos mísseis terra-ar e tubos múltiplos lança-foguetões.

…Para completar o quadro da evolução do potencial material do In…no que se refere a meios aéreos, que o PAIGC dispõe já de 4 aviões ligeiros e aguarda o fornecimento de mais 6 de tipo não revelado, contando já com 28 pilotos; e no que se refere a meios navais, a posse de três vedetas rápidas do tipo P-6, de origem soviética.

…os meios que a REP GUINÉ pode empenhar e em relação aos quais se refere:

- A recente chegada de 6 pilotos estrangeiros (líbios e argelinos) à REP GUINÉ

para substituir, nos MIG-15 e MIG-17, os pilotos guineanos cuja perícia se revelou  em alguns acidentes.

- A chegada à REP GUINÉ de 2 helicópteros MI-8 em fins de Abril.

- A promessa da REP GUINÉ ceder uma pista ao PAIGC para manobra dos seus  Aviões.

…Na ZONA SUL, …o IN ameaça directamente as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE, a partir da REP GUINÉ, para o qual concentrou meios sobre a fronteira dentre os quais se destacam os carros de combate referenciados em KANDIAFARA, a cuja acção aquelas guarnições se apresentam particularmente expostas." (Negritos meus).

Relativamente às Possibilidades do Inimigo, o Chefe da Repartição de Informações, afirmava:

"…Esta actividade incidirá, mais provavelmente, nas guarnições de fronteira, em especial nas mais vulneráveis às acções de carros de combate, pelo que se consideram áreas de preocupação:

…a região de ALDEIA FORMOSA e, em especial, as guarnições de GADAMAEL e GUILEJE, expostas a uma acção de carros irradiando da REP GUINÉ;

No imediato, julga-se que o In;

…intente uma acção tipo convencional com carros de combate contra GADAMAEL, GUILEJE e/ou BURUNTUMA…visando o aniquilamento ou captura das guarnições.

…e apenas pode concluir-se por uma situação na qual todo o T.O., sem qualquer exclusão, acaba por constituir uma vasta área de preocupação, na qual dificilmente se podem, no momento, visualizar priorizações."

(Os negritos são meus).

A intervenção seguinte foi a do Chefe da Repartição de Operações. Da sua intervenção, salienta-se:

" Se não forem concedidos os reforços solicitados e as armas que permitam às NF enfrentar o In actual, para lhe evitar, a breve prazo, a obtenção de êxitos de fácil exploração psicológica e graves efeitos tácticos da maior influência no moral das NT, julga-se que será necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se considerem essenciais e que permitam, à luz de outras concepções de manobra, desencadear mais tarde acções ofensivas com forças de grande envergadura para recuperação de posições enfraquecidas, ou estruturar uma manobra de feição caracterizadamente defensiva baseada na implantação de um certo número de pontos de apoio a sustentar a todo o custo…".

Seguidamente intervieram os Comandantes dos 3 Ramos das Forças Armadas, que fizeram várias considerações e apresentaram as necessidades dos meios para enfrentar a nova situação.

Para dar um exemplo, refiro que o Comandante da Zona Aérea considerava necessário substituir todos os meios aéreos, bem como fornecer um radar de detenção e mísseis terra-ar do tipo REDEYE (não existentes).

As necessidades de reforços apresentadas eram de tal montante que, ainda que na Metrópole houvesse meios financeiros, para o efeito, haveria muita dificuldade, senão mesmo impossibilidade, de encontrar Países disponíveis, dispostos a fornecer o que pretendíamos.

Na mesma Reunião de Comandos de 15 MAI 73, o Brigadeiro Leitão Marques, Comandante Adjunto Operacional do Comando-Chefe (oito dias mais tarde seria nomeado para proceder a Auto de Corpo de Delito contra mim), afirmava, conforme consta na acta da referida reunião:

"…No mínimo, e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista e destruição de guarnições menos apoiadas por dificuldades de socorro (GUIDAGE, BURUNTUMA, GUILEJE, GADAMAEL, etc), a fim de obter os êxitos indispensáveis à sua propaganda internacional e manobra psicológica – isto está já ao alcance das suas possibilidades militares.

Quanto às vantagens para a manobra psicológica In, não podemos esquecer que qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir um elemento de pressão psicológica sobre a Nação Portuguesa.

…tal elemento será aproveitado ao máximo para desmoralizar a retaguarda e manter-se-á até serem atingidos os objectivos finais em todas as PU.

Assisti ao pressionamento psicológico do povo americano por causa dos seus prisioneiros no Vietnam do Norte durante quatro anos; e senti em toda a profundidade o efeito desmoralizador desse pressionamento, o qual, em larga medida, juntamente com o elemento económico, levou à agitação interna das massas e à capitulação, apesar de todo o poderio militar americano."  (Negritos meus).

Da análise das transcrições feitas da Acta da importante Reunião de Comandos, realizada em 15 MAI 73, verifica-se a situação, muito difícil, das Forças Armadas na Guiné, face ao agravamento da situação, resultante entre outros factores, do aparecimento e actuação eficaz dos mísseis terra-ar, pelo In.

À data da reunião, a acção em força do In, sobre Guidage, já decorria desde o dia 8 MAI e, 3 dias depois – 18 MAI, iniciava o PAIGC o ataque a Guileje.

Em função do que fica escrito, não posso deixar de considerar, no mínimo, muito estranha a actuação do Comando-Chefe, relativamente a Guileje. Afirmando o Chefe da Repartição de Informações que:

",,,no imediato, o In…intente uma acção com carros de combate contra GADAMAEL, GUILEJE…, visando o aniquilamento ou captura das guarnições.";

afirmação confirmada pelo Comandante Adjunto Operacional (Brigadeiro Leitão Marques):

"…No mínimo e disso não restam quaisquer dúvidas, o In está a preparar as necessárias condições para conquista ou destruição de guarnições…GUILEJE, GADAMAEL…isto está já ao alcance das suas possibilidades militares…qualquer êxito pode conduzir à captura de prisioneiros em número tal que possa constituir elemento de pressão psicológica obre a Nação Portuguesa."

Perante este cenário, o Chefe da Repartição de Operações afirmava:

"…julga-se necessário remodelar o dispositivo, reforçando guarnições que sob o ponto de vista militar se considerem essenciais…"

Se Guileje fosse considerada uma dessas guarnições, deveria ter sido reforçada, em tempo oportuno; não só não o foi, como nem sequer lhe foi atribuído um Pelotão de canhões sem recuo, à semelhança do que tinha sido feito em Gadamael, para fazer face à defesa contra carros de combate, ameaça que pendia também sobre Guileje.

Julgo ter interesse referir a opinião dos elementos do PAIGC sobre a retirada de Guileje. Na pág. 378 do meu livro, refere o Sr. Dr. Delfim da Silva, participante no Simpósio Internacional de Guiledje e ex- Ministro dos Transportes da Guiné Bissau refere:

"…Aos combatentes portugueses aqui presentes exprimo as minhas saudações. Em particular, quero saudar o comandante do COP 5 Coronel Coutinho Lima pela decisão inteligente de ter sabido retirar-se, em boa ordem, da localidade de Guiledje, bombardeada intensamente, estrategicamente vulnerável sem a tradicional cobertura de uma força aérea portuguesa, radicalmente inibida pela acção dos mísseis terra-ar Strella com que os combatentes do PAIGC já operavam desde Março de 1973.

Com a retirada digna, ordenada pelo Coronel Coutinho Lima, pouparam-se muitas vidas de militares que ele responsavelmente comandava. Mas também se pouparam certamente muitas vidas de civis ao redor deste importante aquartelamento.

Sabe-se hoje que o General Costa Gomes, então, Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas de Portugal, defendia a retirada de Guiledje, percebendo a evidente fragilidade estratégica daquele dispositivo militar, debruçado sobre uma linha de fronteira "hostil".

…Para o General Costa Gomes, Guiledje era posição estrategicamente má, e, por isso, não era improvável que esse quartel viesse a ser submetido a uma pressão excessiva por parte das forças do PAIGC, apoiadas de perto a partir de uma linha de fronteira segura.

O General Spínola, teimoso, não valorizou aquela opinião, deixando assim ao Comandante do COP 5 o risco de, em caso de alteração desfavorável dos dados da conjuntura, ter de assumir inteligentemente a retirada sem a devida autorização da cadeia de comando."

A opinião do General Costa Gomes foi transmitida, na sua visita à Guiné, em Junho de 1973 (ver pág. 352 do meu livro). Essa retirada (no que dizia respeito a Guileje) defendida pelo Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas de Portugal, não fazia sentido, porquanto já se tinha processado a retirada em 22 de Maio de 1973, por minha exclusiva decisão, sem autorização superior, em virtude de o Centro de Comunicações de Guileje ter sido totalmente destruído, na flagelação da tarde do dia 21 MAI 73.

No Simpósio Internacional de Guiledje vários ex-combatentes do PAIGC manifestaram-me a sua opinião de que a retirada, por mim decidida, foi a mais adequada à situação, dessa maneira evitando-se baixas nas Nossas Tropas e na População; de salientar o facto de o Ex- Comandante do PAIGC, Manuel dos Santos (Manecas), me ter dito que eu fizera aquilo que tinha de ser feito.

Também a população, que quando soube, ainda em Guileje, em 21 MAI 73, que íamos para Gadamael, informou, através dos seus representantes, que não queria sair, tem agora opinião contrária. Na verdade, quando no âmbito do Simpósio Internacional de Guiledje, nos deslocámos a esta região (1 MAR 08), o Régulo manifestou o reconhecimento da sua população pela minha decisão, tomada em 22 MAI 73, referindo que, se tal não tivesse acontecido, certamente muitos dos presentes (estava a população inteira, agora instalada em Mejo), não estariam ali.

Por ocasião do lançamento do meu livro, 4 Homens Grandes de Guileje, enviaram-me uma mensagem, gravada em vídeo, congratulando-se com o acontecimento, realçando que a decisão da retirada salvou muitas vidas e que esse facto "coloca" Guiledje na História que, sem ele, seria uma das inúmeras povoações desconhecidas, no futuro.

Por iniciativa e promoção da AD, uma ONG (Organização Não Governamental) da Guiné Bissau, está em andamento a implantação, em Guileje, de um Núcleo Museológico, alusivo à história daquela que foi, seguramente, das mais sacrificadas povoações, durante a guerra.

Para terminar esta extensa intervenção, provocada pela opinião do Constantino Costa, devo esclarecer que entendi acrescentar alguma informação complementar, nomeadamente transcrições da Acta da Reunião de Comandos de 15 MAI 73, para melhor se perceber o contexto em que estava inserido a situação do COP 5, no avalizado Estudo do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné.

Embora não dispusesse da informação privilegiada do Comando-Chefe, os elementos que deste recebi, nomeadamente da Repartição de Informações, juntamente com a minha experiência das duas comissões anteriores, o conhecimento pormenorizado da região Guileje/Gadamael (1ª. Comissão) e as condições concretas que se verificavam em 21 MAI 73, em Guileje, levaram-me a tomar a decisão de retirar; esta decisão, no meu ponto de vista, foi a mais adequada à conjuntura real e evitou a perda de mais vidas humanas.

Em Guileje evitou-se, como consequência da retirada, o que o General Costa Gomes afirmou, na sua deslocação à Guiné, em JUN 73, que pode ser lido na pág. 352 do meu livro:

" …A solução, sob o ponto de vista milita, passaria pela adopção de uma manobra visando o encurtamento de área efectivamente ocupada, evitando-se desse modo a contingência de aniquilamento das guarnições de fronteira que se impõe a todo o transe evitar, atentas as repercussões militares e políticas externas e internas".

Não sei se o General Costa Gomes foi devidamente informado da retirada de Guileje, em 22 MAI 73, portanto em data anterior à sua deslocação à Guiné.

A decisão de efectuar a retirada de Guileje foi, seguramente, a mais difícil de tomar, durante toda a minha vida militar; foi tomada, conscientemente, sem me preocupar com as consequências dela resultantes, porque, principalmente, estavam em jogo centenas de vidas humanas, cuja responsabilidade me cabia. Nunca me arrependi dessa decisão e, passados 36 anos, tal como na altura (MAI 73), estou de consciência perfeitamente tranquila. [Sublinhado do editor]

Lisboa, 28 de Setembro de 2009

Alexandre da Costa Coutinho e Lima

(Coronel de Artilharia Reformado – Ex Comandante do COP 5)

[ Fixação / revisão de texto / título: L.G.]

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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P5626: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (8): Recordações da Belmira, da Manjaca, da Maria, da Safi, do Jamil...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Iemberém > 6 de Dezembro de 2009 > Mulheres (nalus ?). Foto de João Graça,  médico, que esteve como voluntário no Centro de Saúde Materno-Infantil de Iemberém, de 5 a 10 de Dezembro de 2009.

Foto: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. Mensagem do  nosso camarada e amigo Arsénio Puim, natural de Santa Maria,  Açores, a viver na Terceira, antigo Alf Mil Capelão do  BART 2917 (Bambadinca, 1970/72):

Luis Graça

Envio um novo trabalho sobre mais algumas personagens da Guiné que eu conheci, o qual publicarás se tiver interesse e quando achares oportuno.

Um abraço
Arsénio Puim


2. RECORDANDO... VIII > ALGUMAS PESSOAS DA GUINÉ

(i) BELMIRA (Bambadinca)

Belmira é uma guineense mandinga que vivia em Bambadinca. De vinte e poucos anos, inteligente, alegre, era lavadeira no Quartel.

Vive só e pobre, com o seu filho, de cor mestiça, cujo pai é um soldado português pertencente a uma unidade antiga de Bambadinca. Por causa disso, tem problemas na tabanca. As pessoas olham mal as mulheres que têm filhos de brancos e ostracizam-nas.

Belmira mostrou ter apreço por certos valores do cristianismo, como a escola, que quer dar ao seu filho, e o casamento monogâmico. Não gostava da casar com um homem que tivesse outras mulheres. Diz que os Fulas e os Mandingas têm muitas mulheres, e estas brigam entre si e são elas que trabalham na bolanha.  «Os cristãos só têm uma mulher, e esta não trabalha na bolanha, e são civilizados», sem deixar, porém, de dizer que «os soldados brancos são malcriados».

Esta conversa com Belmira ocorreu num dia em que ela veio falar comigo para baptizar o seu filho, embora ela seja muçulmana.

(ii) A MANJACA (Xitole)

O mesmo aconteceu, no Xitole, com uma rapariga de apenas 17 anos,  chamada  A Manjaca. Tem dois filhos de soldados brancos e quer baptizar os «mininos», sendo também muçulmana. Enquanto falava comigo, dava o seu volumoso seio ao filho, que o suga com ar bem-aventurado.

Este é um fenómeno corrente na Guiné: as raparigas que têm filhos de pais brancos acham que eles devem ser baptizados, ainda que elas próprias professem a religião muçulmana. Talvez, por uma associação do cristianismo à civilização branca ocidental. «Branco», em África, além de identificar a cor da pele não negra, é um conceito histórico e civilizacional.

Claro que tive que explicar àquelas mães que não fazia sentido baptizar os seus meninos só por serem filhos de pais brancos, uma vez que eles iriam viver num meio onde não receberiam qualquer influência duma educação cristã.

(iii) MARIA (Xitole)

A Maria, filha do chefe de tabanca do Xitole, é uma rapariga de personalidade forte, espírito claro e conversação interessante. Senhora das suas ideias, ela não concorda com o fanado e recusou realizar a excisão, o que lhe acarreta algumas críticas na tabanca.

Gosta dos brancos, mas não para casar. «Famílias africanas não aceitam, nem famílias brancas. E deixam os filhos e vão-se embora. E não mandam patacão. É feio. É um picado», referiu.




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole  > 2001 > Restos do aquartelamento e povoação de Xitole. A antiga casa do comerciante libanês Jamil Nasser, amigo dos tugas das várias unidades de quadrícula que por lá passaram durante a guerra colonial (**).


Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados


(iv) JAMIL (Xitole)

Outra pessoa muito conhecida no Xitole é o sr. Jamil, um próspero comerciante libanês, já idoso, inteligente e sabido, que aqui se fixou há muitos anos. Sobre ele recaem algumas suspeitas de que faz comércio com os «turras». No entanto, mostra grande animosidade contra o programa «guerra da paz» de Spínola, porque, desta forma, «os nativos habituaram-se à manha e os turras são tratados como reis».
- És turra?
- Não sou.
- Então vai-te embora.

É a história que o sr. Jamil conta de Spínola uma vez que ele encontrou um prisioneiro do PAIGC num aquartelemento que visitou.

Por outro lado, ele exprime apreço e hospitalidade para com os militares estacionados no Xitole. Numa ocasião em que estive lá, também fui convidado, juntamente com outros militares, para um almoço de chabéu na casa dele: um prato, feito com carne do mato cozinhada em óleo de palma e bem temperada de piripiri, que é típico da Guiné e muito saboroso.

(v) SAFI (Bambadinca)

A terminar este apontamento, recordo mais uma pessoa de Bambadinca, com quem tive relação de trabalho. É a Safi, uma jovem mandinga, de 16 anos ou pouco mais, que era a minha lavadeira. Tinha um feitio algo reservado, mas, ainda assim, era amiga de fazer perguntas e sempre delicada. Conhecia algumas canções mandingas, que, com agrado, ouvi ela cantar, na sua voz de timbre africano. Com ela também aprendi algumas palavras, mais correntes, da língua mandinga, como a saudação habitual entre as pessoas desta etnia, que acho muito bonita e sonante:
- Kairacita?
- Kaira.

É equivalente ao «Jamtum?»; «Jamtum», dos Fulas, que era frequente ouvirmos, em interminável repetição, entre pessoas desta etnia.

Conheci a família de Safi, muito carenciada, como a grande maioria dos guineenses, que me recebeu com muita simpatia nas poucas vezes que me desloquei à sua casa. Uma vez, estando a comer, fui convidado para tomar a refeição com eles, a qual constava de arroz com alguns pedacinhos de carne misturados, que todos tirávamos dum recipiente único e comíamos às bolinhas com a mão.

À Safi, que hoje já vai caminhando para os 60 anos de idade, devo-lhe o meu respeito e apreço pelo trabalho que desempenhou para mim, pela graça que, juntamente com as outras raparigas lavadeiras, traziam ao nosso Quartel quando a ele se deslocavam, e pela sua simpatia para com o «padre-capilon».

[Revisão / fixação de texto / título: L.G.]

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Notas de L.G.:

(*)  Vd. último poste da série > 2 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5578: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (7): Mancaman, mandinga, filho do chefe da tabanca do Xime, um homem de paz

(**) Vd. psote de 11 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P952: Evocando o libanês Jamil Nasser, do Xitole (Joaquim Mexia Alves, 1971/73)

(...) Caro Luis Graça



Visitei hoje, mais uma vez, esta página e fui ver as fotografias do Xitole.


Deparei-me com a fotografia das ruínas da casa do Jamil Nasser (1), do Tio Jamil, como eu lhe chamava, e veio-me uma nostalgia difícil de explicar (2).


Quase todos os dias, ao fim da tarde, ía a casa do Jamil e,  no seu alpendre de entrada, bebiamos uns uísques, acompanhados de pedaços de tomate com sal, enquanto ele ouvia as notícias do Libano no seu rádio, em árabe, claro está, e comentava o que por lá se passava.


Para mim era como sair um pouco da tropa e entrar numa vida social, o que dava um certo equilíbrio emocional.


Um dia, quando me preparava para ir ter com o Jamil, apareceu o seu criado Suri, oriundo da Gâmbia, salvo o erro, para me dizer que o Jamil pedia para eu não ir ter com ele naquele dia.

Fiquei admirado, mas bebi o que tinha a beber no quartel. Mal anoiteceu, houve um tremendo ataque ao Xitole que, graças a Deus, não provocou quaisquer vítimas ou sequer ferimentos, mas destruiu bastante alguns edifícios.


Percebi o recado do Jamil, mas nunca falámos nisso. Tenho algumas histórias com ele e até fotografias, se não me engano, não tenho é muito tempo, mas logo verei o que posso arranjar.


A memória falha de vez em quando, mas penso que ainda me encontrei com o Jamil em Lisboa depois de ter vindo da Guiné.

Lembro-me que ele costumava ficar num Hotel, ao lado do Cinema Tivoli, se não me engano Hotel Condestável.

Abraço


Joaquim Mexia Alves  (...)