1. O editor de serviço não resistiu à tentação de publicar esta história que o nosso camarada Manuel Sousa (ex-Soldado da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4512, Jumbembem, 1972/74, actualmente Sargento-Ajudante da GNR na situação de Reforma), escreveu e enviou aos seus familiares e amigos.
Como destas crianças de então se fizeram os homens que combateram em Angola, Guiné e Moçambique, entre 1961 e 1974, aqui fica o texto.
Vista parcial de Folgares
O PANELO DE BARRO PRETO
Há cerca de cinquenta anos, os habitantes da minha pequena aldeia de Folgares, Freixiel, Vila
Flor, como a maior parte das aldeias do nordeste transmontano, tinham na terra que cultivavam o meio
principal da sua subsistência, que conciliavam com a pastorícia de rebanhos de cabras e ovelhas,
complementando, assim, a sua fonte de rendimento.
Além do leite, do queijo e da carne que comercializavam, e que também faziam parte da sua dieta
alimentar, serviam-se destes animais para fertilizar as suas terras com os excrementos e a urina, na
ausência de fertilizantes químicos que há hoje, tornando as suas pequenas leiras mais produtivas.
Assim, para o efeito, desde o princípio da Primavera até ao final do Outono, o tempo mais quente,
estes rebanhos de animais pernoitavam nas terras, confinados ao espaço limitado de um bardo, também
conhecido por curral, que, todos os dias, ia sendo mudado até ser estrumada a parcela de terreno em
causa.
O bardo, para quem não sabe, era uma cerca formada por várias cancelas de madeira, ligadas umas
às outras, formando uma cerca nas mais variadas formas geométricas, (quadrado, rectângulo, círculo, em
labirinto, conforme a configuração do terreno que se pretendia ocupar) que se fixavam, com uma ligeira
inclinação para fora, espetadas no solo e suportadas do lado exterior por uns paus com uma bifurcação a
que se chamavam forcados.
Claro que era indissociável do bardo a cabana onde pernoitava o pastor, que consistia num
quadrado de madeira revestido a camadas de colmo de palha centeia, colocado de pé em posição
ligeiramente oblíqua, para proporcionar o abrigo do lado do menor ângulo, amparado por dois forcados.
Sob a cabana era aberta uma pequena cova onde era depositada alguma palha que servia de
colchão ao pastor. Uma verdadeira suite de luxo, atendendo a que, na noite escura, dali se tinha o
privilégio de ser admirada a beleza da abóbada celeste com as suas constelações de estrelas: a Ursa
Maior, a Ursa Menor, a via Láctea, também conhecida por Estrada de S. Tiago, a estrela da manhã,
além, também, da beleza das noites de luar. É a experiência que fala, visto que dormi algumas vezes
com o meu pai nestas condições de campismo, cujos sons, além das imagens já referidas, ainda tenho
bem presentes na memória: o ruminar das cabras, os balidos dos cabritos, o som das marradas das cabras
e dos bodes nas suas lutas, o latir dos cães de guarda, etc.
À noite, depois de todos os animais acomodados no bardo, o pastor, com grande mestria, orientado
pelo sentido do tacto, de cócoras, com o cântaro entre as pernas, mungia as cabras de uma a uma, de
cujos mamilos, pressionados por mãos hábeis, jorravam os jactos de leite que, num instante, atestavam a
vasilha.
Como logística alimentar, todos os dias, ao anoitecer, levava-se ao campo, além dos cântaros
destinados ao leite, a ceia do pastor na chamada “lata dos pastores”.
Era um recipiente cilíndrico em lata, dividido em duas partes: a superior, um pouco mais pequena,
destinada ao prato principal, e a inferior, a parte maior, destinada ao caldo não só destinado ao pastor
como aos cães de guarda do rebanho. Depois uma asa de arame, por onde se pegava, completava o
conjunto.
Neste contexto de então, o meu pai também tinha um rebanho de cabras, cuja guarda, enquanto ele
se dedicava também ao amanho da terra, estava a cargo de um nosso pastor, o senhor Américo Catarino
de uma aldeia vizinha, de Pereiros de Ansiães.
Era um homem com setenta e tal anos de idade, alto, magro, com o saber próprio da sua idade,
com sentido de humor, de piada fácil. Era um contador de histórias. Algumas delas, preenchem ainda o
meu imaginário.
Era meu contemporâneo na aldeia, naqueles anos, o meu amigo “Rito”, de seu nome completo,
Francisco Pinto, aproximadamente da minha idade, seis ou sete anos. Talvez ele fosse um ano ou dois
mais velho do que eu.
O “Rito” era conhecido por este nome por ser filho de uma senhora de uma das aldeias da
freguesia de Freixiel, do Vieiro, de nome Rita, e de pai incógnito. Zorro, portanto. Era assim que se
chamavam lá na terra os filhos cujos pais eram desconhecidos.
Dadas as dificuldades da mãe do “Rito”, foi adoptado, ainda que, na época, informalmente, por um
casal lá da terra, o senhor João Mariano e a senhora Olívia.
O “Rito" caracterizava-se pela sua figura franzina, pouco nutrido, e revelava algumas dificuldades
cognitivas, motivo porque, embora tenha frequentado a escola, nem a primeira classe chegou a concluir.
Porém, era travesso incorrigível, principalmente quando os progenitores não estavam por perto, e
tinha o condão de cantar muito bem. Era, incondicionalmente, um dos meus grandes amigos de infância.
Com toda esta minha exposição da vida do campo lá da aldeia, quis proporcionar aos leitores,
como se de uma receita de culinária se tratasse, os ”ingredientes” necessários para “confeccionar” esta
história do célebre “panelo de barro preto”:
Os progenitores do meu amigo “Rito” tinham uma cabra que por uns dias foi integrada no rebanho
do meu pai para estar em contacto com os bodes reinantes da cabrada, com o objectivo de ela vir a
procriar.
Ao cair da noite de um dia de verão, a mim e ao meu irmão Fernando, este mais velho do que eu
cinco anos, foi-nos dada a tarefa de levarmos a ceia ao pastor, que pernoitava, portanto, no campo com
as cabras, e as vasilhas para ao leite.
Tão novinhos que éramos, ambos alternávamos o transporte da “lata do pastor”, colocando a boina
na mão para a asa de arame da lata não nos magoar.
Para meu contentamento, acompanhou-nos nesse dia o meu amigo “Rito” que levava um panelo de
barro preto destinado ao leite da cabra dos seus pais adoptivos.
Tínhamos já saído da aldeia e caminhávamos já na poeirenta estrada térrea, entre pinhais, que liga
a minha pequena aldeia a Carrazeda de Ansiães, que nos levaria até cerca de dois quilómetros onde se
situava a parcela de terreno, designada por Terreiro, onde pernoitavam as cabras e o pastor.
O “Rito”, fazendo jus à sua irreverência, iniciava o chorrilho de diabruras que eu já bem conhecia,
correndo à nossa frente, arrastando os pés descalços na estrada, levantando uma autêntica nuvem de
poeira que nos sufocava. Corria de um lado para o outro a esconder-se na noite entre os pinheiros que
ladeavam a estrada para, ao aproximarmo-nos, nos tentar assustar.
A dada altura começou a cantar e, como acompanhamento à sua melodiosa voz, agitava o panelo
de barro preto com algumas pedras que meteu dentro.
- Dlão…, dlão…, dlão…, dlão.
Produzia assim o panelo uma bonita entoação sonora, ampliada pelo eco que se fazia ouvir pelo
interior do pinhal que ladeava a estrada, de fazer inveja à velha sineta da capelinha de S. Luís lá da
aldeia quando se rebimbava no alto do campanário a anunciar a hora da homilia, ou então, naquele
tempo, a hora de irmos para a escola.
- Rito, tu vais partir o panelo. - Alertámos nós mais do que uma vez.
- Dlão…, dlão…,dlão…, dlão.
Continuava ele ignorando os avisos.
Depois de tanto badalar o panelo, a dada altura, e estranhamente, o “Rito” aquietou-se. Entretanto
chegávamos ao Terreiro.
Embora fosse já noite cerrada, as cabras e o pastor ainda não tinham chegado ao bardo e nós os
três, depois de colocarmos a lata com a ceia e as vasilhas do leite na cabana, incluindo o panelo, que o
“Rito” fez questão de o deixar muito direitinho, regressámos a casa.
Depois da ceia, chegou a hora do pastor, o senhor Américo Catarino, ajudado pelo meu pai que
entretanto foi ter com ele, proceder à ordenha dos animais.
Às escuras, como era habitual, o pastor, de cócoras, propôs-se a ordenhar a “Mariana” que era o
nome que ele dava àquela cabra, por pertencer ao senhor João Mariano.
- Ó Antóoooooonio…!, Homessa…!
Exclamava ele incrédulo momentos depois para o meu pai com a sua voz arrastada, com o sentido
de humor que o caracterizava, levantando-se lá no meio das cabras.
E prosseguiu:
- Eu devo ter estado a ordenhar o bode porque o panelo ainda não tem uma gota de leite…
- Ó senhor Américo, não me diga que não consegue distinguir uma cabra do bode.
Gracejava o meu pai com o pastor.
- Não é isso Antóoonio…, é que o panelo não tem cuuu…! Homessa…!
Foi assim o final deste célebre panelo de barro preto, indissociável da memória que guardo do meu
amigo “Rito”, cujos cacos ainda hoje devem repousar no chão do Terreiro, que poderão constituir
muitos anos depois um importante achado arqueológico.
Ao longo de muitos anos, a “sina” deste panelo de barro preto proporcionou bons momentos de
hilariante boa disposição lá em casa a toda a família.
Mais tarde o “Rito”, já homem, deixou os pais adoptivos e a aldeia e foi para uma outra aldeia do
concelho de Mirandela, para Barcel, que se situa junto à margem direita do rio Tua.
Um dia, e esta é a parte triste desta história, o “Rito” faleceu em circunstâncias muito estranhas, ao
ter sido encontrado o seu cadáver a boiar nas águas do rio.
Quis com esta história prestar a minha homenagem à sua memória, para ele, esteja onde estiver,
sentir que o seu amigo “Manel” não se esqueceu dele, e, ao mesmo tempo, também como intervenientes
directos neste episódio, relembrar o meu pai e o nosso pastor, o senhor Américo Catarino, também já
falecidos.
Ao longo deste texto também quis deixar implícito, mesmo para o leitor mais distraído, que as
crianças daquela época, desde muito pequeninas, eram chamadas a participar activamente na economia
familiar em tarefas compatíveis com a sua capacidade física. Dizia-se na altura:
“o trabalho das
crianças é pouco mas quem o rejeita é louco”.
Eu, como tantas outras crianças da época, contribuí sempre com a minha parte sem que isso
constituísse para mim, particularmente, qualquer trauma ou atrofiamento físico e cognitivo, muito pelo
contrário. E a prova disso é que as mesmas mãos que se protegeram com a boina da asa de arame da
“lata do pastor”, são as mesmas mãos que escreveram para vós este texto.
Quiçá ele venha a ser excerto de um próximo livro, por forma a perpetuar a memória de todos estes
intervenientes que me são caros.
Manuel Sousa
Março de 2014
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Nota do editor
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