
Queridos amigos,
Justifica-se plenamente que aqui se insira o que se publica na contracapa deste precioso livro:
"Nó Cego é hoje um clássico da literatura portuguesa. Objeto de estudo e de atenção nos meios universitários, é sobretudo um grande e poderoso romance dos nossos dias, essencial para as atuais gerações de portugueses viverem esse período crucial da nossa História que foram os anos da guerra colonial e o fim do regime de ditadura, bem como para conhecer os dramas, as angústias, as alegrias e as tristezas da geração que fez a guerra e que a terminou, abrindo Portugal à modernidade".
Continuação de boa leitura e um abraço do
Mário
Nó Cego, a obra maior de toda a literatura da guerra colonial (3)
Beja Santos
"Nó Cego", por Carlos Vale Ferraz, Porto Editora, 2018, impôs-se ao longo de 35 anos, como leitura obrigatória, é o mais universal dos romances, o mais poderoso, melhor arquitetado e de dimensão clássica. Romance centrado numa Companhia de Comandos, acompanhamo-la desde a sua primeira operação, como numa encenação teatral vão-se apresentando os protagonistas, capitão e alferes, sargentos e praças, há segredos e preconceitos, há dramas ocultos, diálogos truculentos, naquela região do Planalto dos Macondes algo está a mudar, o Tio Abílio deu lugar a um oficial que quer resultados, custe o que custar. Concluiu-se a operação A Volta ao Mundo, há estranhas manifestações de fúria, o Tino, numa ira imprevista, atira uma garrafa de cerveja à cara do Três Centímetros, o capitão vai falar com o médico, o Três Centímetros não deveria ficar cego mas teria de ir ao hospital de Nampula, e somos embrenhados na vida do quartel, mais queixas, desta vez o agente Celestino da PIDE/DGS queixava-se do Cardoso, fora insultado.
E temos agora a primeira operação que iam realizar sob as ordens do novo comandante do batalhão de M, o substituto do Tio Abílio. Não esquecer que havia já sinais de mudança com a chegada do general K ao Comando-Chefe de Moçambique. É apresentado este novo comandante de batalhão:
“De cabelos brancos prateados, muito lisos, com o rosto de feições corretas bem escanhoado, magro, a farda impecavelmente passada a ferro, estava para o Tio Abílio como um nobre proprietário de terras para o feitor. Trouxera com ele, para seu oficial de operações, um major seráfico, de olhos fundos e nariz comprido”. A Companhia de Comandos iria fazer um golpe de mão à Base Provincial 25, os dois guias, prisioneiros, tinham dado a sua versão ao agente da PIDE quanto ao local do acampamento. “Pelas contas do capitão, deviam estar perto da base que a Frelimo tinha instalado na antiga machamba do Kavandame”. O mais velho dos guias é espancado, quando os Comandos descobrem que estavam a andar às voltas. E a guerrilha não perdoou, responde com fogo, o Casal Ventoso estava todo perfurado, o Cardoso prestou os primeiros socorros.
É uma descrição lancinante, neste tempo em que se discute a morte assistida e o que a diferencia da eutanásia, é útil ler esta passagem:
“ – Ma-mate-me, meu capitão, que-que eu já não aguento mais. Ma-ma-te-me, por amor de Deus. Dê-me um tiro, u-uma injeção…
O capitão retorcia-se a seu lado segurando-lhe a mão.
- Dá-lhe mais morfina, Cardoso, duas, três doses – mandou num sopro.
- Não lhe posso dar mais que uma injeção de cada vez. Senão… mato-o! – respondeu, indignando-se ao tomar consciência dos pensamentos e esconjurando-os: - Eu não o mato!
- Ninguém disse para o matares.
Também o Lino fitou o capitão, a cara branca de cera a indagar da dúvida.
- Dá-lhe a morfina toda! – exclamou o Brandão, explodindo o ar dentro dos pulmões, um estoiro de balão de criança mordido pelos dentes finos. Ele, que parecia dormir noutro mundo, saltava para o meio da vida tomando decisões.
Os gritos e os gemidos elevavam-se, lúgubres, na noite de África, incitando os pássaros da noite, corujas, noitibós, a lançarem os seus pios. E os nervos dos homens picavam em descargas que lhes faziam doer o corpo. O Casal Ventoso pedia que o matassem. Não queria dar parte de fraco. Não queria morrer a chorar. Já cheirava a morto. Agarrava a terra com as mãos sujas da merda esverdeada das tripas, como se a quisesse prender à vida.
Passou a que lhe restava na ponta dos dedos pela boca, a beijá-la numa definitiva despedida.
O capitão tirou o seu cantil do cinturão, desrolhou-o e colocou o gargalo como teta de mãe na boca do Casal Ventoso, que sugou uma profunda golada.
- O meu capitão mata-o!
O Cardoso virou-se intempestivo, quase a saltar para impedir as mãos de satisfazerem o último desejo do Casal Ventoso.
- Não devia ter feito isso – disse o Lino.
O capitão sorveu ruidosamente o ar da noite, mordeu os lábios, cerrou os punhos e abriu-os antes de falar.
- Morto está ele. Que merda de moral é a vossa para prolongar o sofrimento de um homem só para que ele morra por si?”
Iremos conhecer a infância do alferes Lino, da pobreza até à vida de seminarista, são dados cruciais para perceber a evolução deste alferes que adquirirá o gosto militarista, teremos oficial para reincidir. A nova missão é montar emboscadas sobre a picada Mueda-Mocímboa da Praia durante quatro dias e quatro noites. Depois de dois dias imóveis junto à picada, o capitão decide por conta própria internar-se pelas matas, vão encontrar um trilho batido, será abatido um pequeno grupo de guerrilheiros, arma-se emboscada, os guerrilheiros da Frelimo regressam ao local para recuperar os corpos dos camaradas e a floresta irá transformar-se num palco de atores furiosos, e assim se regressa a M. O comandante ávido por resultados, interpela o capitão porque é que regressou antecipadamente, é-lhe explicado que não adiantava continuar, já estavam detetados na zona. O tenente-coronel está furioso, houvera incumprimento, admoesta aos gritos, ameaça instaurar um auto de corpo de delito.
Chegara a hora do capitão pedir um período de descanso para o seu contingente: “A Companhia de Comandos, que há meses chegara atlética, respirando saúde e entusiasmo, estava a transformar-se num grupo apoucado de fardas rotas, olheirento e triste. Os soldados denotavam cansaço, adoeciam, os ataques de paludismo multiplicavam-se. As relações com o tenente-coronel atingiam o limite da disciplina”. É durante uma batida que regressam com uma criança de dois ou três anos, o Lopes adota-o: “Passou a tratá-lo como um filho e a Companhia considerou-o sua mascote. Vestiram-no, fardaram-no de camuflado, deram-lhe o nome de Alfredo, ensinaram-no a fazer a continência, averbaram-lhe o posto de alferes dos Comandos”.
O capitão vai a Nampula, regressa com a boa-nova, dentro de em breve iriam para baixo, para um descanso bem merecido. E assim vão chegar à base dos comandos em Montepuez.
O Espanhol fizera tantas que tinha que abandonar a Companhia, a entrega do crachá é comovente, pediu ao capitão para não ir à cerimónia da expulsão:
“O capitão recebeu o crachá. Agradeceu e colocou-o no seu próprio peito. O Espanhol olhava, sem perceber o que estava a acontecer, e não queria acreditar quando o capitão lhe colocou ao peito o seu crachá.
- Fico com o teu e tu ficas com o meu! Não vais ser expulso, vais ser transferido. Podes usar o meu crachá enquanto fores digno dele e levas mais este louvor que vou mandar publicar na ordem de serviço.
O Espanhol fez meia-volta e retirou-se a afagar o crachá que tinha sido do capitão”.
A Companhia entrou na ilha de Moçambique, anoitecia.
(Continua)
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Notas do editor
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