Luanda, julho de 2013. Levantaste-te às cinco e meia da manhã. É dia ou quase dia. Às seis, o motorista de ambulâncias do hospital já estava pronto para te levar ao aeroporto, de regresso a Lisboa. Era o teu motorista habitual, quando aqui vinhas em serviço... Era o teu motorista das partidas. Porque havia um outro, o das chegadas. Enfim, pequenas mordomias...
Já o conhecias há uns anos... Pertencia ao ministério da saúde, mas fora destacado para um dos hospitais da capital. Tu costumavas trazer-lhe uma garrafa de vinho tinto português, comprada no "freeshop" do aeroporto de Lisboa. Sabias que ele adorava o vinho da terra dos avoengos. O vinho importado era um luxo para um "caluanda". Tinha feito a tropa e a guerra no "tempo dos portugueses". E sentia-se luso-angolano, mesmo não conhecendo Portugal. " Com muita pena"...
O teu motorista "caluanda" (não o queres identificar, nem a ele nem ao hospital onde trabalhava, já que na altura não lhe pediste autorização expressa para contar a sua história de vida) "estava de férias" (sic).
Havia um outro motorista, mais jovem, mas morava "longe", a norte de Luanda, a 20 km, em Viana (onde nunca fostes, apenas conhecias os arredores, a sul, o Mussulo e a foz do Quanza).
Esse outro motorista, mais jovem, que costumava ir buscar-te ao aeroporto, à noite, não era não fiável: um dia, ficou à tua espera, devia estar cansado, a morrer de sono (e se calhar de fome), adormeceu na viatura, o avião atrasara-se...
Foi, seguramente, a viagem de "táxi" mais fantasmagórica da tua vida: custou-te 40 euros, todo o dinheiro trocado que tinhas no bolso, nem sequer tinhas kwanzas ou dólares para pagar ao mais jovial, simpático e prestável "taxista da candonga", a quem confiaste a tua bolsa, o teu PC, a tua semana de trabalho ( textos, exercícios, "slides"...), a tua bagagem e porventura até a tua própria vida.
Ele fizera tropa mas já não fora à guerra, a "segunda guerra da dipanda"... Puxaste dos teus galões, fizeste-te passar por médico (o que não era verdade) e professor da faculdade de medicina de Lisboa (o que até nem era falso), e para mais militar, falaste-lhe de alguns nomes de gente da "nomenclatura" angolana que te gabavas de conhecer ( e de facto conhecias), o diretor do hospital militar, o diretor da clínica X, o reitor da universidade Agostinho Neto, sua excelência o ministro da saúde que tinha sido teu aluno, etc....
Mas voltando ao teu motorista "caluanda", em julho de 2013... Era um homem afável, mestiço, de Uíge (se a tua memória não te falha...), que ficava a nordeste, a cerca de 350 km de capital... Pelas tuas contas devia ter nascido em 1953. Teria então 60 anos na altura...
Além disso, levavas contigo, dez mil dólares, em maços de notas (algumas sebentas...), limite máximo legal... Num envelope com o logótipo do Ministério da Saúde, o MINSA... E o credo na boca: não era dinheiro teu, era da tua instituição, e iria servir para pagar viagens e ajudas de custo dos próximos formadores...
O teu "caluanda" morava na ilha de Luanda, perto do centro aonde foste dar formação. O trabalho de motorista de ambulâncias, diga-se de passagem, não era pêra doce: uns largos anos atrás, talvez em finais da década de 1990, a sua ambulância fora metralhada num musseque dos arredores (ele disse-te o nome, que não fixaste, talvez Sambizanga, onde viviam cerca de 250 mil almas emparedadas ), quando um "grupo de bandidos" tentava assaltar a casa de um "fulano ricaço" (sic)...
Esse sangue frio e coragem vinham-lhe do tempo da guerra. Eta um duplo ex-combatente. fizera duas guerras, ao serviço de duas pátrias... que, aos seus olhos, se completavam: "Nasci português, hei de morrer angolano"....Timha muitas histórias para (e por) contar.
A batalha do Ebo, a sudeste de Luanda, a par da batalha de Quifangondo, a nordeste de Luanda, foi decisiva para suster o avanço das forças anti-MPLA que pretendiam impedir a proclamação da independência em Luanda pelo partido de Agostinho Neto.
É bom lembrar que, à revelia da potência colonizadora, Portugal, e do Acordo do Alvor (janeiro de 1975), cada um dos três movimentos nacionalistas proclamou a independência de Angola em sítios e datas diferentes: a FNLA no Uíge, a UNITA no Huambo e o MPLA em Luanda.
Essa emboscada (com apoio de artilharia) poderia ter sido quando as forças sul-africanas, que invadiram Angola, chegaram até ao sul do Ebo, na província do Cuanza Sul, ameaçando Luanda. Os angolanos e os cubanos destruiram as pontes e sustiveram o avanço dos invasores justamente no Ebo (município a 300 km de Luanda).
Segundo o depoimento do teu motorista, nessa emboscada, as viaturas foram todas destruídas, as FAPLA tiveram cerca de 2/3 de baixas mortais, incluindo 7 cubanos.
As praias estavam "limpas", contrariamente ao que se via há uns anos atrás... A zona agora era "turística" (sic), as barracas dos pescadores havia desaparecido, sob as "buldozers"... Enfim, a cidade mudara, "para melhor", havia obras por todo o lado... "Bandido é no musseque onde a polícia não entra" (sic). Também por delicadeza não abordaste a questão dos "esquadrões da morte", de que ouviras falar, e que ele acabava de confirmar.
Percebeste então melhor porque é que os teus novos amigos angolanos, eram pessoas que viviam com tanta intensidade o dia que passava e manifestavam publicamente a sua felicidade, através da comida, da bebida, do sexo, da música, da dança.
É sabido que o movimento do Galo Negro recebeu apoio dos EUA e da África do Sul, na luta contra o MPLA, que por sua vez era apoiado pela União Soviética e Cuba. Estava-se em plena guerra fria. Angola era uma peça importante no tabuleiro do xadrez da geopolítica mundial, sendo cobiçada pelas potências neocloniais pelas suas riquezas (o petróleo, os diamantes) mas também era fundamental para a sobrevivência do regime de supremacia branca na África do Sul...
A batalha de Cuito Cuanavale terá sido o maior confronto militar da guerra civil angolana. Foi um batalha sangrenta e prolongada durante mais de 4 meses, entre 15 de novembro de 1987 e 23 de março de 1988.
Foi aqui , na província de Cuando Cubango , e mais concretamente no munícipio de Cuito Cuanavale, que as FAPLA, apoiadas pelos cubanos e com armamento soviético, se confrontaram com as forças da UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola), apoiada pelo exército sul-africano.
Foi considerada a batalha mais longa travada no continente africano desde a Segunda Guerra Mundial. Nesta batalha de Cuito Cuanavale, foi posto em cheque o mito, aos olhos dos angolanos, da invencibilidade do exército "racista" da África do Sul, garantiu-te, com visivel orgulho e patriotismo, o teu motorista.
Isso explicará a posterior assinatura dos Acordos de Nova Iorque, ponto de partida para o fim de um conflito que afinal não era apenas uma guerra civil, nem um simples conflito regional.
Em 2913 ainda pensavas voltar a Angola (o que aonteceu até à pandemia) , e esperavas poder reencontrar, vivo e com saúde, o teu amigo motorista, que servira duas pátrias. Imaginava-lo, dez anos depois, ele os seus 70 anos e tu um pouco mais... Se possível com a mesma sabedoria e alegria de viver do homem comum angolano. E imaginavas poder continuar a tua conversa, agora à mesa de uma esplanada de um bar da ilha de Luanda com vista para o nosso comum oceano Atlântico....E, de preferência com um bom copo de vinho tinto português.
(...) "O que o General António dos Santos França, na altura Comandante N´Dalu, não mencionou, talvez por não lhe ter sido perguntado, foi a constituição da 9ª Brigada . Estavam incluídos nela os melhores guerrilheiros das então FAPLA, e principalmente militares angolanos desmobilizados das forças portuguesas, onde se incluiram também paraquedistas e comandos portugueses.
Era constituída pelos municípios de Calai, Cuangar, Cuchi, Cuito Cuanavale, Dirico, Mavinga, Menongue, Nancova e Rivungo. O clima é tropical no norte da província e semi-árido no sul. Esta região de Angola, "terras do fim do mundo", é conhecida atualmente como "terras do progresso», devido ao seu grande potencial económico, praticamente por explorar.