segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Guiné 61/74 - P25000: Notas de leitura (1652): Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Julho de 2022:

Queridos amigos,
É uma revelação, um diário elaborado por um missionário franciscano ligado sobretudo à educação. Veja-se a solução que ele encontrou para uma prova de exame, naquela alvorada do pós-Independência, um verdadeiro achado aquelas diretivas da democracia revolucionária. Questiono muitas vezes estes documentos que tendencialmente ficaram no anonimato, e que hoje seriam contributos do maior interesse. Tirando o acervo de Amílcar Cabral e alguns esparsos deste ou daquele dirigente, caso de Filinto Barros ou Delfim Silva, é confrangedor o silêncio daqueles líderes que fizeram luta. Lembro-me de uma conversa havida com Filinto Barros, Delfim Silva, Chico Bá, no final de novembro de 2010, falava-se então com alguma expetativa do diário de Chico Mendes (Chico Té), tanto quanto se sabe não conheceu a luz do dia. Será um embaraço para os historiadores, no futuro, ter de lidar com este vazio, o tempo é implacável e os mortos não falam.

Um abraço do
Mário


Notas do diário de um franciscano no pós-Independência da Guiné-Bissau (1)

Mário Beja Santos

Na Biblioteca da Sociedade de Geografia de Lisboa chamaram-me à atenção para o número mais recente da revista Itinerarium, o n.º 227, referente ao semestre de janeiro a junho de 2020, a Itinerarium é a revista semestral de cultura publicada pelos franciscanos em Portugal. Ali aparece um artigo com páginas do diário de Frei Francisco de Macedo (1924-2006) que foi missionário na Guiné entre 1951 e 1997. O diário inclui os apontamentos do religioso sobre os primeiros anos da Independência, a matéria versada relaciona-se com a educação e as missões.

Frei Macedo começa por uma referência ao 24 de setembro de 1973, data da independência unilateral da Guiné-Bissau, com reconhecimento imediato por 80 países. E escreve quanto ao 25 de Abril: 

“Pouco depois da Revolução, a Guiné e Portugal entraram imediatamente num acordo de cessar-fogo e iniciaram as negociações para reconhecimento de jure da independência da Guiné-Bissau.”

Escreve que em 6 de setembro ele e o padre José Afonso Lopes, que estavam em férias em Portugal, regressaram a Guiné, ele continuou como reitor do liceu, o padre Afonso como diretor das Escolas das Missões de Bissau. No dia seguinte anota: 

“Vasco Cabral, ministro da Economia e Finanças, realizou um encontro com os comerciantes na Associação Comercial. Afirmou que tudo continuava na mesma: o sistema monetário, as transações, os câmbios. Reconheceu que a nova República era impotente para assumir a responsabilidade de todos os quadros. Pediu que todos os europeus continuassem, pois precisavam da colaboração em especial técnica e cultural.”

A datação dos acontecimentos prossegue, 10 de setembro é o reconhecimento por Portugal do novo Estado independente, 2 dias depois a transferência de poderes que se realizou gradualmente pelo interior do país, em que os quadros da administração portuguesa eram substituídos pelos quadros do PAIGC. Escreveu em 16 de setembro o teor da reunião havida com os responsáveis da Educação, Mário Cabral, Lilica Boal, Domingos Brito dos Santos, com os professores do ensino secundário, já se tinha realizado a 14 a reunião com os professores do ensino primário.

Mário Cabral reconheceu as inúmeras dificuldades, especialmente para preencher os quadros dos professores. Falou na necessidade de descongestionar Bissau, criando escolas do Ciclo e Liceus, sobretudo em Canchungo e Bafatá. 

“No liceu, no próximo ano, os livros e os programas continuarão mais ou menos, apenas com ligeiras alterações nas disciplinas de História e Geografia, em que ocuparão lugar de relevo a Guiné-Bissau e a África com todos os seus povos. Haverá adaptações da gramática portuguesa. Na instrução primária serão já adotados os livros editados pelo Partido. Na impossibilidade de terem já uma universidade, os alunos candidatos a cursos superiores irão para as nações que oferecem bolsas de estudo.”

Digno de nota é o que ele vai escrever a 16 de setembro, quando se iniciaram os exames da 2ª época, foi Frei Macedo quem elaborou a prova de Português do curso geral, vai servir-se de um texto extraído das Palavras de Ordem, de Amílcar Cabral:

“Diretivas da democracia revolucionária

Cada responsável deve assumir com coragem as suas responsabilidades, deve exigir dos outros o respeito pela sua atividade e deve respeitar a atividade dos outros. Não esconder nada às massas populares, não mentir, combater a mentira, não disfarçar as dificuldades, os erros e insucessos, não acreditar em vitórias fáceis nem nas aparências. A democracia revolucionária exige que devamos combater o oportunismo, a tolerância diante dos erros, as desculpas sem fundamento, as amizades a camaradagem com base em interesses contrários aos do Partido e do povo, a mania de que um ou outros responsável é insubstituível no seu posto. Praticar e defender a verdade, sempre a verdade diante dos militantes, dos responsáveis, do povo, sejam quais forem as dificuldades que o conhecimento da verdade possa criar. A democracia revolucionária exige que o militante não tenha medo do responsável, que o responsável não tenha receio do militante nem medo das massas populares. Exige que o responsável viva no meio do povo, à frente do povo e atrás do povo, que trabalhe para o Partido ao serviço do povo.

I Depois de ter lido com atenção o texto do camarada Amílcar Cabral, onde se estabelecem as diretivas do princípio da democracia revolucionária, procure responder às perguntas seguintes […]

Redação

Como sabe, a República da Guiné-Bissau é o mais jovem país africano. Servindo-se dos conhecimentos que tiver sobre esta jovem nação e sobre o grande herói pela sua independência, o camarada Amílcar Cabral, redija uma pequena composição.

Observação. Este ponto foi muito simples e foi elaborado um tanto à margem do programa, que era igual ao de Portugal, mas adaptado ao momento histórico que se vivia na República da Guiné-Bissau.”


Em 20 de setembro tem lugar uma reunião no gabinete do secretário de Estado da Educação e Cultura, preside Mário Cabral e estão presentes os principais responsáveis dos missionários que têm trabalhado na Guiné, caso de Monsenhor Amândio Neto, padre Ermano Battisti, padre Settimio Ferrazzeta, padre Afonso José Lopes e padre Francisco Macedo, ainda está presente o pastor dos Adventistas, Francisco Caetano. Mário Cabral elogia o trabalho dos missionários, realçando o seu valor no campo da educação. Ele próprio fez a sua instrução primária nas Escolas das Missões de Bissau, Dona Berta Craveiro Lopes. Pede a colaboração dos missionários no campo do ensino. 

“Todo o ensino seria oficializado e todos os professores seriam nomeados por eles. O seu Estado era um Estado laico, com plena liberdade religiosa. Referiu-se ao problema das escolas islâmicas, dizendo que o seu governo pensava criar mais tarde um instituto islâmico.”

Talvez valha a pena trazer aqui à consideração do leitor um artigo publicado no nosso blogue envolvendo outro missionário, veja-se o post “Guiné 61/74 - P21595: (De)Caras (166): Frei José Marques Henriques, da Ordem dos Frades Menores, 44 anos de vida sacerdotal na Guiné-Bissau, antes e depois da independência, como capelão militar e missionário”.

(continua)
A trabalhar na leprosaria desde 1955, os frades franciscanos só em maio de 1969 veem o Governo da Colónia entregar-lhes oficialmente o complexo hospitalar e os terrenos adjacentes. É o Governador Pedro Cardoso que em 20 de maio de 1969 manda publicar o decreto que institui formalmente o que a Missão de Cumura é hoje:

Considerando que os Missionários Franciscanos de Veneza que vieram a esta Província para tratar da lepra no Hospital-Colónia de Cumura se adaptaram às exigências do tratamento dos leprosos, revelando muita dedicação, espírito humanitário e de sacrifício, realizando um trabalho notável sob todos os pontos de vista, devendo destacar-se os trabalhos de carácter religioso e social durante a breve permanência neste Hospital-Colónia... o Encarregado do Governo da Guiné decide: 

Que os terrenos que faziam parte da reserva do Estado a cargo da Missão contra a Tripanossomíase, com a área de 108,2 hectares, situados na região de Cumura, do posto administrativo de Prábis, sector de Bissau, confinante a norte e oeste com o Rio Péfine e a sul com o terreno agrícola e a Missão católica de Cumura, passem a constituir uma reserva parcial para o tratamento da lepra, a cargo da Missão católica de Cumura.

O Pe Settimio reconhece que esta doação significa "mais trabalho para nós, mais responsabilidade diante do Governo, a sociedade civil e a Igreja; mas finalmente ficaremos livres para pedir ajudas económicas a tanta gente de boa vontade que terá a satisfação de ver dentro de pouco tempo as barracas de pedra e palha mudadas em pavilhões e aldeias novíssimos, dignos da nossa civilização, fornecidos de água, energia elétrica, de campos de jogos, de modernas enfermarias, de nova cozinha e serviços higiénicos"
.

Liderados pelo Pe Ferrazzeta os frades lançam-se à obra:
Extraído do site da Missão da Cumura, com a devida vénia
Missão franciscana em Canchungo
____________

Nota do editor:

Último poste da série de 22 DE DEZEMBRO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24987: Notas de leitura (1651): O Santuário Perdido: A Força Aérea na Guerra da Guiné, 1961-1974 - Volume II: Perto do abismo até ao impasse (1966-1972), por Matthew M. Hurley e José Augusto Matos, 2023 (4) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

antonio graça de abreu disse...

Era o tempo das utopias revolucionárias, com Amilcar Cabral como seu mestre de proa. Algo se fez, com certeza, com tanta dedicação e esforço. A não esquecer a bondade franciscana, a maldade dos homens.

Abraço,

António Graça de Abreu

Cherno Baldé disse...

Caros amigos,

A maior parte dos quadros dos partidos e movimentos de libertação eram pessoas que tinham passado nas poucas escolas das missões católicas que existiam antes da sublevação, porque eram as únicas que existiam no território, pelo que sentiam a necessidade de mudar algumas coisas, mas não existiam sentimentos de revanchismo, pelo contrário queriam colaborar com a igreja na formação do novo homem guineense.

Num dos últimos parágrafos do texto diz-se que foi o governador Pedro Cardoso que, em 1969 fez a doação do complexo e terrenos adjacentes da leprosaria de Cumura à Igreja católica. Penso que deve ser um lapso de transcrição, pois todos sabemos que o governador da Guiné no período que vai de 1968 (Maio) à 1973 (Setembro) foi o Gen. Spínola.

Um abraço amigo,

Cherno Baldé

Joaquim Luis Fernandes disse...

Alguns Postes acordam-me memórias a que não posso ser indiferente. Este é um deles.

Visitei a leprosaria de Cumura, em 1974, quando estava em Bissau. Recordo a modéstia das instalações a par do bom acolhimento e acompanhamento dado aos doentes. Fomos recebidos pelo Missionário responsável, de que não fixei o nome, mas seria decerto Frei Settímio Ferrazzeta, que viria a ser o primeiro Bispo de Bissau, que conquistou a estima e admiração dos Católicos Guineenses, e não só, também pela sua ação como pacificador, aquando da guerra dentro do PAIGC, em 1998. Ainda hoje é muito recordado e evocado, na sua palavra de ordem: " A Verdade vos libertará"

A 16 de Janeiro de 2016, voltei a Cumura e o que encontrei foi um Hospital com ótimas instalações, com os exteriores muito bem cuidados, onde não faltava um memorial a Dom Settímio Ferrazzeta.
Na proximidade do Hospital, em Cumura, visitei também a Casa de Acolhimento "Bambaran" para crianças desfavorecidas. Fiquei impressionado com o elevado número de crianças assistidas e com a qualidade da assistência que lhe era prestada.
Todo este bem fazer, da responsabilidade da Missão dos Missionário Franciscanos na Guiné Bissau, na continuidade dos Missionários Franciscanos na Colónia Portuguesa da Guiné.
Visitei também em Bor, o Hospital Pediátrico, também com ótimas condições, e igualmente da iniciativa e responsabilidade da Igreja Católica da Guiné.

A par de outros Centros de Educação de Crianças e Jovens e de apoio a parturientes, que visitei noutros locais: na região de Bafatá, Buba, Gabu, Canchungo e Cacheu, fiquei com a convicção de que na Guiné Bissau, sem as Missões e a Igreja Católica, se viveria com muito mais dificuldade e com menos esperança num futuro melhor.

Mário Beja Santos disse...

Meu caro Cherno, votos de muita saúde e prosperidades para a Guiné. A atribuição de governador a Pedro Cardoso é da responsabilidade do autor. Contudo, como bem sabes, na ausência do governador as suas responsabilidades ficavam a cargo do Encarregado do Governo, o nº2 da hierarquia civil . Terá sido o caso, o governador Spínola ausentou-se, quem despachou foi o então coronel Pedro Cardoso, general depois do 25 de Abril. Mantenhas, Mário

Joaquim Luis Fernandes disse...

Outras memórias (menos prazenteiras) me foram despertadas ao ler o nome do Perfeito Apostólico em Bissau, nos anos 1973/74, Monsenhor Amândio Neto.

Eu conto: seria abril ou maio de 1973 (antes das chuvas, o capim estava seco) no quartel em Teixeira Pinto o meu Pelotão estava de Piquete. Uma Secção fora destacada para a pista de aviação para assegurar a segurança na pista. Da parte da tarde, uma avioneta sobrevoa a pista e prepara-se para aterrar, os soldados asseguram-se que a pista estava livre (por vezes era frequentada por animais que pastavam no local) e agacham-se entre o capim para sua segurança.
No ato de aterragem, um dos soldados instalado à beira da pista, por lhe parecer que a avioneta estava a demorar a passar por onde estava, levantou-se para ver o que se passava. Nesse momento, a avioneta atingiu na cabeça com a ponta da asa, provocando-lhe traumatismo craniano.

O estado do soldado foi considerado grave e foi pedido de imediato a sua evacuação para o Hospital Militar de Bissau, o que aconteceu sem demoras.

Pilotava a avioneta o Perfeito Apostólico em Bissau, Monsenhor Amândio Neto, em visita à Paróquia de St. António em Teixeira Pinto, em que era Pároco o Pe. Simões.

Desse acidente, fui nomeado pelo Comandante do Batalhão para elaborar o respetivo auto de averiguações, tendo-me deslocado a Bissau, pouco dias depois, para ouvir em declarações o Perfeito Apostólico. Visitei também no Hospital Militar o soldado que estava internado, mas não tenho memória de o ter ouvido em declarações para o Processo. Penso que o seu estado o não permitia. Entretanto foi evacuado para o Hospital Militar de Lisboa, onde recuperou, mas não voltou à Guiné. Foi a única baixa do meu Pelotão.
Há poucos anos tive oportunidade de falar com ele por telefone e estava aparentemente bem, apesar de alguns traumas, de que sofria, causados pelo grave acidente.

Em 2013, 40 anos após esse acidente, participei a convite da comunidade guineense em Lisboa, na homenagem ao Missionário Franciscano na Guiné, Pe. José Marques Henriques, regressado a Portugal depois de 4 décadas de serviço na Guiné, onde granjeou admiração, respeito e gratidão entre o povo que serviu e evangelizou.

Em amena conversa, contei-lhe um pouco dos episódios que tinha vivido na Guiné nos anos de 1973/74. Vim então a saber, que era ele, Pe. José Henriques, que acompanhava nessa viagem do acidente, a Teixeira Pinto, o Perfeito Apostólico em Bissau, Monsenhor Amândio Neto.

Anónimo disse...

Caro Mário Beja Santos,

Como se costuma dizer "dá ao César o que é de César", o Pedro Cardoso era Secretário geral da colónia e esse facto não o fazia Governador mesmo na ausência do Gen. Spínola, mesmo assinando em seu nome e, convenhamos, a decisão final sobre o processo cabia, com todo o mérito, ao governador em exercício e não ao seu Secretário. É só uma opinião.

Cherno AB