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quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25982: Timor Leste: Passado e presente (23): Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) - Anexo II: O tenente, e depois capitão, António de Oliveira Liberato











Notas de leitura do livro do médico José dos Santos Carvalho, "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (1972, 208 pp.) 

Anexo II:  O tenente, e depois capitão, António de Oliveira Liberato
 
 

1. Não fazia a mínima ideia da existência do tenente (e depois capitão) António de Oliveira Liberato, até começar a ler algo mais sobre a história de Timor.

Afinal foi um dos heróis portugueses de Timor durante a II Guerra Mundial. Era tenente de infantaria, adjunto do comando da Companhia de Caçadores de Timor (constituída por praças indígenas), cujo comandante, cap inf António Maria Freire da Costa (ex-aluno da Escola de Guerra,  incorporado em 1917 para Infantaria, e natural de Lisboa) se terá suicidado, em Aileu, em 1 de outubro de 1941, juntamente com a esposa Maria Eugénia Freire da Costa, e mais outros três portugueses que estavam nessa noite em sua casa, incluindo o médico dr. Dinis Ângelo de Arriarte Pedroso (*).

O António de Oliveira Liberato tem dois livros de memórias sobre esse trágico período, os quais são abundantemente citados pelo médico de saúde pública José dos Santos Carvalho, seu companheiro de infortúnio, autor de "Vida e Morte em Timor durante a Segunda Guerra Mundial" (Lisboa, 1972, 208 pp.), disponível em formato digital no Internet Archive.

Temos curiosidade em saber algo mais sobre alguns dos homens e mulheres, portugueses e timorenses,  que conseguiram resistir, ativa ou passivamente, à ocupação estrangeira do território (entre dezembro de 1941 e setembro de 1945), e nomeadamente à ocupação japonesa. Vamos,  assim, continuar a publicar mais algumas notas de leitura do livro do citado José dos Santos Carvalho. (*)



 António Oliveira Liberato, capitão: capas de dois dos seus livros de memórias: "O caso de Timor" (Lisboa, Portugália  Editora, s/d, c. 1946, 242 pp.)  e "Os Japoneses estiveram em Timor" (Lisboa, 1951, 336 pp.). São dois livros, de difícil acesso, só dispossiveis em alguns alfarrabistas e numa ou noutra biblioteca pública.


Capa do livro "Quando Timor foi Notícia", de Cacilda dos Santos Liberato (Braga, Editora Pax, 1972, 208 pp.). Encontrei um exemplar na Biblioteca Municipal da Lourinhã. Já o li de um fôlego.   Cacilda foi uma "mãe coragem: viúva de Júlio Gouveia Leite, secretário da administração de Aileu (vítima do massacre de Aileu, em 1/10/1942, a que sobreviveu), irá casar depois  com o tenente António Oliveira Liberato, também ele viúvo, e com um filho de 12 anos, Luís Filipe,  no campo de concentração de Liquiçá, em 1943. Viu a morte á sua frente por diversas vezes. Publicou as suas memórias trinta anos depois. 



 2. A par do advogado portuense, deportado por razões políticas em Timor, Carlos Cal Brandão ("F
uno: guerrra em Timor", Porto, edições "AOV", 1946, 200 pp.),  o tenente António de Oliveira Liberato foi o primeiro a publicar  um relato circunstanciado dos acontecimentos  ocorridos em Timor, entre finais de 1941 e setembro de 1945 ("O caso de Timor" Lisboa, Portugália  Editora, s/d,  c. 1946, 242 pp.).

O que aconteceu depois do seu regresso a Lisboa, aonde chegou a 15 de fevereiro de 1946 ? (*)

É um dos portugueses de Timor que é louvado pelo Governador Manuel de Abreu Ferreira de Carvalho, no final do seu mandato, em 10 de outubro de 1945, 

Estranhamente não há qualquer referência à sua prisão pelos japoneses em 9 de abril de 1944, e à sua deportação, três meses depois, em 11 de julho de 1944, para a  ilha holandesa de Alor, juntamente com o engenheiro geógrafo Artur do Canto Resende, o gerente do BNU João Jorge Duarte e o aspirante administrativo José Duarte Santa. Eram todos "suspeitos" de colaborar com o inimigo (os Aliados).

Só o José Duarte Santa e o tenente Liberato sobreviveram, ao isolamento, aos maus tratos, à fome e à falta de assistência médica. Os dois sobreviventes só foram libertado em 28 de agosto de 1945.

Teor do louvor:

(...) Determinou, S. Ex. a o Ministro das Colónias que, pelo seu especial interesse fossem publicadas no Boletim as seguintes três portarias subscritas pelo Sr. governador de Timor:

PORTARIA N.° 1:137-A

Ao tornar a entrar a Colónia na sua vida normal, pelo restabelecimento pleno da autoridade portuguesa em todo o seu território, é dever do governador da Colónia não esquecer aqueles que, durante um período de extremas dificuldades, bem souberam cumprir o seu dever de portugueses e de funcionários, ocupando através de tudo os postos que as circunstâncias impuseram, trabalhando e sacrificando-se pelo bem comum, não hesitando nas mais rudes provações e dando tudo para serem úteis. 

Todos os portugueses que em Timor se conservaram, souberam, de uma maneira geral e com um elevado espírito de patriotismo, cumprir o seu dever. Para eles são dirigidos neste momento os agradecimentos do governador da Colónia. Alguns houve, porém, e felizmente em número apreciável, que souberam cumprir esse dever por forma a bem merecerem ser distinguidos e terem individualmente público testemunho de louvor.

Nestes termos: O governador da Colónia de Timor, no uso das faculdades que lhe são atribuídas pelo artigo 31.° do Acto Colonial e pelo n.° 21.° do artigo 33.° da Carta Orgânica do Império Colonial Português, determina: 

Que sejam louvados: (...)

— O tenente de infantaria António de Oliveira Literato, pela forma como sempre desempenhou as suas funções de subalterno da Companhia de Caçadores de Timor durante o período da ocupação da Colónia e especialmente pela sua actuação como comandante da força incumbida da repressão da revolta de indígenas da Circunscrição da Fronteira em Agosto, Setembro e Outubro de 1942, em que deu provas de tacto, energia e desprezo pelo perigo que o afirmam como óptimo oficial, com uma nítida compreensão dos seus deveres para com a Pátria e para com os seus chefes. (...)

Fonte: Excerto de "O restabelecimento da Autoridade Portuguesa de Timor", in José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972,  pp. 132-141.

O governador também louvou seis deportados mas nenhuns dos portuguese que alegadamente se suicidaram.


3. Sobre o tenente Liberato e outros "prisioneiros de guerra", escreveu J. S. Rocha (2022) (**):

(...) Se dúvidas houvesse, sobre o tratamento dado pelos japoneses aos portugueses e timorenses acusados de colaborarem com as forças australianas, atente-se no caso do tenente Liberato. 

No dia 10 de julho de 1944 um militar português, tenente António Oliveira Liberato, e três destacados funcionários civis também portugueses, foram, após detenção e interrogatório pela polícia militar nipónica, a temida kempeitai, transferidos por via marítima para um local de cativeiro situado na ilha de Alor designado Kalabai, onde ficaram detidos numa casa rudimentar, rodeada de arame farpado, à guarda de indígenas armados comandados por um militar japonês. 

"O tenente Liberato, como outros habitantes, acusado de colaboração com as forças australianas e holandesas, tinha sido detido dois meses antes e durante o seu cativeiro em Díli foi sujeito a apertado interrogatório onde não faltaram sessões de tortura, 'suplícios de inenarrável desumanidade'...

"De acordo com diversos relatos, amarrados pelos pulsos com uma corda os prisioneiros eram em seguida pendurados nas grades do cárcere e içados de modo que os pés não tocassem o solo. Seguiam-se sessões intermináveis de interrogatórios e espancamentos, apenas interrompidos por breves períodos para rotação do interrogador ou então, seguindo um qualquer programa de ação psicológica sobre o prisioneiro que passava, depois de espancado, sentá-lo à mesa, conversar amistosamente com ele, fornecer-lhe algum alimento e cigarros sendo em seguida novamente pendurados nas grades. 

"Aos prisioneiros timorenses era também aplicada a chamada 'tortura da água' que consistia em deitar o prisioneiro '(...) de costas, sobre um estrado, amarrados de pés e mãos, na boca um funil introduzido, à força, entre dentes, enchiam de água o estômago do paciente. Expelida pela boca, pelas narinas e pelos ouvidos a primeira dose, repetia-se outra (...).' 

"Em 23 de fevereiro de 1945 faleceu o primeiro português (eng. Canto Resende). Observados por um médico em 20 de março de 1945, aos restantes três portugueses foi diagnosticado beribéri e paludismo sem que, contudo, lhes fosse fornecido qualquer tipo de tratamento. Em 25 desse mês faleceria outro português (gerente do BNU João Duarte) inchado e com graves dificuldades de locomoção. 

"Viriam a deixar a ilha de Alor em 23 de agosto de 1945, chegando a Díli no dia 28 do mesmo mês. Só no dia seguinte, e após intervenção do Governador junto Cônsul japonês, seriam definitivamente libertados." (...) (**)

As autoridades portugueses, já no pós-guerra, em meados de 1946, não se terão mostrado recetivas e colaborantes com a comissáo australiana para a investigação de crimes de guerra cometidos no território.

 (...) Por outro lado, e "no que respeita ao reconhecimento dos actos valerosos levados a cabo por portugueses e timorenses em Timor durante a ocupação japonesa, ele foi efetivo por parte das autoridades australianas e inexistente por parte das portuguesas que se revelaram mais empenhadas em punir exemplarmente muitos dos resistentes de Timor. 

"Ainda antes da invasão japonesa, em janeiro de 1942, o Governador de Timor proibira a população em geral de apoiar as forças australianas e holandesas que tinham entrado no território ilegalmente. Essa proibição voltou a ser anunciada publicamente em agosto e setembro de 1943 passando a contemplar também todo e qualquer apoio prestado às forças militares japonesas. (...) (**) 


4. Não sabemos mais pormenores sobre o  passado miltar do António de Oliveira Liberato. (Teria feito parte do CEP - Corpo Expedicionário Português, 1914/1918, como soldado  ? ... Ao que parece, terá chegado a Timor nos anos 30. Em 1941 era viúva e tinha um filho de 12 anos. Pelas nossas contas, terá nascido em finais do séc. XIX. )

Encontrámos apenas um artigo  sobre o "Capitão Oliveira Liberato", no   Correio de Nisa, 9 de janeiro de 1965 (e que  reproduzimos acima). 

Na altura acabava de se reformar, era "capitão de infantaria QR" , tendo sido louvado, em setembro de 1964, pelo Comando Geral da PSP,  pelos 17 anos dedicados àquela corporação como oficial, ou seja, desde 1947 até 1964.  Era, além disso,  o delegado distrital da Censura.




Regresso  a Lisboa, do tenene Liberato, em 1946, a bordo do N/M Angola, Foto do arquivo de Helena Oliveira Liberato, filha de Cacilda e de António Oliveira Liberato, já falecidos, nascida em Portalegre em 1952. Com a devida vénia à Visão História nº 8, abril de 2010.



5, No blogue A Voz Portalegrense, há um artigo de 20 de junho de 2010, sobre o "Capitão Liberato", da autoria de Mário Casa Nova Martins,

A propósito da nº temático dedicado a “Portugal e a II Guerra Mundial”,   pela revista Visão História n.º 8 , abril de 2010, diz o autor:

 (...) 'Este número fala sobre o caso de Timor, no tempo da ocupação japonesa. E ao fazê-lo, refere o então tenente António de Oliveira Liberato.

"Aquela figura militar foi uma personalidade importante em Portalegre após aquele episódio da História de Portugal, no qual foi interveniente e do qual deixou em dois livros o relato dos factos que protagonizou.

"Conhecemo-lo em Portalegre, no posto de capitão, sem no entanto, e dado a larguíssima diferença de idade, alguma vez lhe tivéssemos dirigido a palavra. (,...)  

"Era uma figura importante do Estado Novo em Portalegre, e recordamo-lo como uma pessoa simpática. Que nos lembre, pertencia à Legião Portuguesa e era responsável pela Censura.

"Como seria de esperar, teve dissabores após a Revolução do 25 de Abril de 1974, tendo estado preso.

"Mas quando regressou, teve sempre o respeito e consideração da maioria das gentes de Portalegre." (...)

E é tudo o que por ora sabemos deste militar, herói de Timor na II Guerra Mundial.
 


Capa do livro de José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, 208 pp. Cortesia de Internet Archive. O livro é publicado trinta anos depois dos acontecimentos. O autor terá nascido na primeira década do séc. XX.



Capa do livro de Carlos Vieira da Rocha,
" Timor: ocupação japonesa durante a Segunda Guerra Mundial,
2ª ed rev e aum, Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 1996,  309 pp.




Mapa de Timor em 1940. In: José dos Santos Carvalho: "Vida e Morte em Timor Durante a Segunda Guerra Mundial", Lisboa: Livraria Portugal, 1972, pág. 11. (Com a devida vénia). Assinalado a vermelho a posição relativa de Maubara e Liquiçá, a oeste de Díli, onde se situava a zona de detenção dos portugueses, imposta pelos japoneses (finais de 1942 - setembro de 1945)

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2024)

 
(Seleção, fixação/ revisão de texto: LG)
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Notas do editor:


(**) Rocha, J. S. (2022). Guerra irregular em Timor: a resistência contra o invasor japonês (1942-1945). In Jorge Silva Rocha (Ed.), Atas do XXX Colóquio de História Militar “A guerra irregular em Portugal: da fundação à atualidade”. (pp. 421-445). Lisboa: Comissão Portuguesa de História Militar. (Disponível em formato pdf, https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/28198/1/conferenceObject_95242.pdf )

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25981: Ser solidário (274): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (10): O mel da Guiné-Bissau (Renato Brito)



1. Mensagem datada de 22 de setembro de 2024, de Renato Brito, voluntário, que na Guiné-Bissau integra um projecto de construção de uma escola na aldeia de Sincha Alfa, com mais uma Cartolina, esta que nos fala do mel da Guiné-Bissau:

Boa tarde Carlos Vinhal,
partilho mais uma “cartolina” anunciando mais um “mercatino dell’usato”com o objectivo de recolher fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa na Guiné-Bissau.

Este bilhete-postal fala sobre um néctar dos deuses - o mel da Guiné-Bissau.

Informo ainda que está a nascer mais um projecto (África Sacra) que visa fazer chegar a Itália produtos africanos como a polpa e o óleo de baobab, o hibisco e o Cajú.

O catálogo pensado para divulgar estes produtos, onde uma parte das vendas reverte também para a construção da escola, está disponível para consulta neste site:
https://sostegnoguineabissau.weebly.com/prodotti-africa-sacra.

Cumprimentos,
Renato

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Vd. post de 2 de junho de 2024 > Guiné 61/74 - P25593: Ser solidário (270): Bilhete-postal que vai dando notícias sobre a "viagem" da campanha de recolha de fundos para construir uma escola na aldeia de Sincha Alfa - Guiné-Bissau (8): Arquitectos da natureza (Renato Brito)

Último post da série de 13 de setembro de 2024 >
Guiné 61/74 - P25938: Ser solidário (273): Concerto da Orquestra Médica Ibérica, no passado dia 8, no Porto, a favor de uma ONGD que trabalha na área da saúde em Moçambique (Health4Moz) - Parte I

Guiné 61/74 - P25980: Historiografia da presença portuguesa em África (444): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de julho de 2024:

Queridos amigos,
Estamos em 1883, o Governador Pedro Ignácio de Gouveia revela-se um homem de mão cheia, continua o programa de concessões de terreno, o exemplo que aqui se cita vem do chão manjaco, chovem os regulamentos e os regimentos, pretende-se instituir uma biblioteca, o governador tem mão pesada para capitães delituoso, pensa-se no embelezamento e na higiene de Bolama e arredores, o comandante militar de Bissau vai até à ilha de Jeta celebrar tratado com o régulo das Ilhetas, é um documento de grande valor, de que aqui se deixa uma citação, e o alferes Francisco Marques Geraldes, comandante do presídio de Geba, face ao rapto de umas bajudas em S. Belchior, mete-se ao caminho com civis até ao Indornal, estamos em 1883, vamos vê-lo percorrer a região do Casamansa, passou por terras onde lhe pediram para ele se despir, nunca tinham visto um ser humano de pele branca. É texto que já publicámos no blogue, bem como a sua sequência, um texto não menos notável de Pedro Ignácio de Gouveia para o Ministro da Marinha e do Ultramar.

Um abraço do
Mário



A Guiné Portuguesa
Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, inícios de 1883 (3)


Mário Beja Santos

1883 revela-se um ano de profusa legislação, como se exemplifica: regulamento das alfândegas da província da Guiné Portuguesa; regimento para as delegações da junta da Fazenda da província da Guiné; regulamente para o serviço marítimo da Guiné Portuguesa; regulamento do Ministério Público nos tribunais militares. O Governador é Pedro Ignácio de Gouveia, logo no Boletim Oficial n.º 1, de 6 de janeiro, chama a atenção a Nota do degredado chegado a esta província em 17 de dezembro de 1882, vindo da província de Cabo Verde no vapor Angola: Lourenço Rodrigues d’Almeida, condenado a trabalhos públicos por toda a vida, por acórdão da Relação de Lisboa por crime de homicídio voluntário. No Boletim seguinte, de 13 de janeiro, chama a atenção o pedido de conceção no rio denominado Mampatas, no território manjaco e o Governador “hei por conveniente, com o voto do Conselho do Governo, conceder 500 hectares de terreno a Ernesto Gourdau em cada um dos pontos seguintes: Pelundo, Babaque, Padim, Tamé, Canhobé, Mata dos Elefantes, Cajegut, Tumatte e Palufe, sendo a última na embocadura do rio dos Brames".

Não menos curiosa é a publicação neste mesmo Boletim Oficial n.º 2 a necessidade de criar uma biblioteca, o texto de Pedro Ignácio de Gouveia é de uma enorme elegância:
“Sendo de reconhecida vantagem e conveniência a instituição de uma biblioteca, para desenvolvimento intelectual de todos, e em que cada um possa compulsar os diferentes autores para aumentar os seus conhecimentos, desenvolvendo a sua instrução.
Sendo certo que a prosperidade, riqueza e bem-estar social é função de estado intelectual dos seus habitantes; e tendo em vista, que na classe civilizada dos habitantes da província, se encontra, em regra, o gérmen da aplicação que apesar dos poucos recursos que alguns dispõe procuram cultivar o espírito nas horas de ócio que as suas ocupações lhes deixam;
Considerando que se pode assim mais facilmente desenvolver o estudo, esse campo vasto onde a inteligência não encontra limites tangíveis, e pelo qual o homem pode crer na sua proficuidade, pela utilidade de que é alvo, e pelos benefícios que a seus concidadãos pode prestar, pelo derramamento de luz que só a cultura intelectual pode dar, etc. etc. Hei por conveniente nomear uma comissão para ver qual a maneira possível de instituir uma biblioteca.”
Nesta composição figurava o vigário-geral da Guiné Marcelino Marques de Barros.

Era visível que o novo Governador vinha disposto a cortar a direito, no despacho n.º 1 emitido no quartel-geral em Bolama, em 13 de janeiro, dava-se a saber que foram considerados presos para conselho de guerra os capitães Pedro Moreira da Fonseca e Boaventura Ribeiro da Fonseca. Falece em Buba na noite de 13 o tenente do batalhão de caçadores n.º 1 José Joaquim Sertório de Almeida, seguia-se uma alocução falando num crime hediondo, o tenente fora assassinado quando rondava as sentinelas postadas na praça de Buba, assassinado por um soldado, caso que enodoava o Exército; fora exonerado o capitão Caetano Filipe de Sousa, que era comandante militar e administrador do concelho de Buba; e quanto à prisão dos dois capitães, dizia-se que não tinham recebido a prisão imposta com respeito e acatamento devido, cantando até depois de recolher ao quarto que lhes servia de prisão, pelo que lhe fora agravada a pena com a proibição de receber visitas, sofreram uma prisão rigorosa de 30 dias.

No Boletim n.º 19, de 12 de maio, nova medida enérgica: “Tendo chegado ao meu conhecimento um ofício do comandante militar de Cacheu em que participa que o chefe do presídio de Farim, Luiz Xavier Monteiro tem praticado actos que podem considerar-se criminosos, a serem verdadeiros; hei por conveniente, em harmonia com o código administrativo suspender do exercício de funções e vencimentos ao mencionado chefe, devendo permanecer em Cacheu sob a vigilância da autoridade local enquanto se procede à sindicância que nesta data lhe é mandada instaurar.”

Passando agora para o Boletim n.º 22, de 2 de junho, vem publicado um interessantíssimo relatório assinado pelo comandante militar de Bissau, Carlos Maria de Souza Ferreira Simões, que foi celebrar um tratado de paz com um régulo das Ilhetas, ilha de Jeta, Adju Pumol. É texto extenso, aqui fica uma passagem:
“Disse finalmente o régulo Adju Pumol que as provas de confiança e consideração que acabava de receber do Governo português enviando aos seus domínios um delegado seu para tratar com ele e com o seu povo, lhe impunha o dever de ser sempre grato e leal aos portugueses e de lhes prestar todo o auxílio de que pode expor sempre que lhe por qualquer forma se ofereça para isso ocasião. Terminado o discurso, convidei o régulo para ir connosco a bordo da canhoneira Guiné, convite que ele aceitou sem hesitação, a despeito de algumas manifestações em contrário que involuntariamente deixaram perceber dois ou três dos seus grandes, e principalmente uma das suas mulheres, que chegou a segurá-lo por um dos braços para o não deixar ir, e à qual ele disse que ia porque tinha confiança nos portugueses e se morresse era apenas uma vida que se perdia. Acompanharam-no um filho mais velho e um dos grandes.

Chegado a bordo, o comandante foi mostrar-lhe o navio, pelo que ele se sentiu muito reconhecido, examinando tudo com muita atenção e fazendo algumas perguntas. Ceou connosco, e quando depois da ceia lhe perguntámos se queria ir para terra ou ficar a bordo, respondeu que preferia ficar a bordo, e ir para terra de madrugada. Dormiu sossegadamente num dos almofadões da câmara do navio.”

No Boletim n.º 81, de 4 de agosto, consta o relatório apresentado pelo chefe do presídio de Geba acerca da sua viagem ao Indornal, há alguns anos publicou-se no blogue este notável documento assinado pelo alferes Francisco Marques Geraldes e qual a informação dada por Pedro Ignácio de Gouveia ao Governo em Lisboa.

Voltando um pouco atrás, e dentro daquele vasto plano de regulamentações de que inicialmente se fez menção, penso que é útil referir que no Boletim n.º 13, de 31 de março, o Governo reconhece a grande vantagem e conveniência para a regularidade e embelezamento da capital da província e de outras terras secundárias, estabelecer-se um plano definitivo de edificações em que se atendam às condições de higiene, ventilação, perspetiva e outras. E assim fora adotado com o voto unânime do Conselho do Governo o plano de edificações e reedificações em Bolama. O seu artigo primeiro anuncia que o Governo mandará imediatamente proceder a um plano geral dos melhoramentos da capital, atendendo neles ao das suas praças, jardins e edificações existentes, e à construção e abertura de novas ruas, praças, jardins e edificações com as condições de higiene, decoração, cómodo alojamento e livre-trânsito do público. Esse plano seria elaborado pela comissão composta do diretor de obras públicas, um vogal proposto pela Câmara Municipal e um vogal da Junta de Saúde Pública. Texto minucioso em que se chega ao cuidado de referir a altura das edificações determinada pela largura das ruas.

Pedro Ignácio de Gouveia, distintíssimo oficial da Armada, sucede a Agostinho Coelho como Governador da Guiné (será Governador entre 1881 e 1884). A primeira vez que me confrontei com a sua prosa, e que muito me impressionou, foi a carta que ele dirigiu ao ministro da Marinha e Ultramar referindo a viagem do alferes Marques Geraldes até Selho (hoje no Senegal), para ir buscar mulheres raptadas de um parente do régulo local, é um belíssimo documento.
Estabelecimentos portugueses em Buba, no Rio Grande, profundamente afetados pela guerra do Forreá
A canhoneira Guiné, 1879-1883
Igreja católica na Guiné Portuguesa, imagem muito antiga retirada do site da Casa Comum
Bajudas Fulas lavrando a bolanha, imagem antiga retirada do site Casa Comum

(continua)
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Notas de editor

Vd. post de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25954: Historiografia da presença portuguesa em África (442): A Guiné Portuguesa - Boletim Official do Governo da Província da Guiné Portuguesa, 1881 até 1882 (2) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 18 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25955: Historiografia da Presença Portuguesa em África (443): a história (atribulada) de Bolama, segundo o Padre J.A.V (1938)

Guiné 61/74 - P25979: Manuscrito(s) (Luís Graça) (255A): Tabanca de Candoz. Vindimas de 2024 - Parte II: à mesa, para 2 dezenas de "bicos", o prato forte foi dobrada à moda da "chef" Alice, uma variante mourica, com coentros, das tripas à moda do Porto


Foto nº 15 > A nossa "tabuleta"...


Foto nº 16 > Da colheita do ano passado, fez-se uma edição de apenas 500 garrafas, com a marca "Nita", e o selo da Comissão Viticultura da Região dos Vunhos Verdes...  KJá estamos registados como produtores-engarragafadores. E em breve vamos lançar a página www.quintadecandoz.com... Masi do que uma carolice, tudo isto  é um ato de amor, uma passagem de teste,munnho, uma desafio para a novas gerações da fanília... Na foto , o Tiago e o Pedro, já nossos "herdeiros"...


Foto nº 17 > O "estado-maior" da Op Vindimas 2024 > O Gusto, o Zé (outro antigo combatente, esteve em Angola, em 1970/72) e o Adriano... De costas, o Xico... Junto ao lagar onde se faz o vinho branco de bica aberta, que segue depois para as cunbas de inox, num piso inferior (a "loja"), onde fermenta (ou "coze", como aqui se diz) ...


Foto nº 18 > O repouso dos "vindimadlores": o Filipe e o Xico




Foto nº 19 >  O Adriano, um colaborador e um amigo da família de há mais de 30 anos...



Foto nº 20 > A nossa melhor "podadora", a Susana, e a mais despachada das vindimadoras...



Foto nº 21 > Z São, esposa do António Novais Ribeiro, antigo combnatente na Guiné, que este ano veio dar uma ajuda... (O casal mora na Senhora da Hora, Matosimhos: a São é mana do nosso infortunado camarada José Manuel Ferreira de Jesus Tomé, 1º GR FZE, do DFE nº 8, morto na Guiné por acidente em 9/12/1971.)


Foto nº 22    > O avô do Manel, o Eduardo, marido da Zezinha, bancário reformado e "andrade" ferrenho...


Foto nº 23 > O lagar, a "ferver", com a adição de "gelo seco" para manter a temperatura baixa...




Foto n º 24 > Um inovação tecnológica já introduzida o ano passado: o controlo da temperatura da massa vínica


Foto nº 25 > A Carolina de 9 anos adora andar com o avô Gutso  no tractor a "acarretar" os cestos de uvas... Mas chega ao fim do dia cansada, com tantas descidas e subidas.



Foto nº 26 > Este ano não chegou ao quarteirão o pessoal da vindima...Mas o almoço das vindimas é sempre uma hora de festa.. E a mesa, comprida, tem que ser disposta em L... 



Foto n º 27 > O  prato forte este ano foi a dobrada à moda da "chef" Alice (uma variantes mourisca, com coentros,  das "tripas à moda do Porto")

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2024). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

Guiné 61/74 - P25978: O melhor de... A. Marques Lopes (1944-2024) (9): a última foto do cap art Manuel Guimarães, cmdt da CART 1690, tirada instantes antes de morrer, na estrada Geba-Banjara, vítima de uma mina A/C, em 21 de agoto de 1967


Guiné > Região de Bafatá > Estrada Geba-Banjara > 21 de agosto de 1967 > A última foto do capitão: "A mina rebentou. O capitão e o Domingos Gomes, à esquerda, morreram.  Eu (de faca) e o Laminé Turé (à direita) ficámos feridos". Foto de um furriel da companhia.  



Guiné > Zona Leste > Geba > CART 1690 > 1967 > O cap art Manuel Carlos da Conceição Guimarães, primeiro comandante da CART 1690 (Geba, 1967), então com 29 anos. Morreu, em combate, na estrada Geba-Banjara, em 21 de agosto de 1967, na sequência de deflagração de uma mina A/C. Foi um dos 26 capitães que morreram no TO da Guiné. (55,3% do total dos 47 Oficiais oriundos da Escola do Exército e da Academia Militar. mortos nma guerra do Ultramar.) (*)

Entrou para a Escola do Exército (hoje Academia Militar), ni último trimestre  de 1954. Esteve na Índia como alferes e depois tenente, entre maio de 1959 e março de 1961. (Esteve, pois, também como prisioneiro de guerra na Índia). Tinha chegado ao CTIG em 15 de abril de 1967. Era a sua primeira comissão em África, como capitão.

Fotos (e legendas): © A. Marques Lopes (2023). Todos os direitos reservados. [Edução e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1.  A foto de cima é a última do cap art Manuel Guimarães (1937-1967), tirada uns minutos ou uns instantes antes  de morrer, em 21 de agosto de 1967. O nosso saudoso A. Marques Lopes fez dele (o "capitão Mendonça")  uma das principais personagens do seu livro de memória, "Cabra Cega" (2015).  

Estamos a reproduzir alguns excertos do melhor que o A. Marques Lopes nos deixpou escrito, nomeadamente no seu livro de memórias "Cabra Cega" (**).

Seguimos o texto, respeitando a seleção que ele próprio fez na sua página do Facebook, na postagem de 11 de maio de 2023, às 23: 45.
 
Aqui a narrativa é já feita na 1ª pessoa do singular, assumindo o autor que o "Aiveca" do livro (edição de 2015) era o seu "alter ego", ou seja, o alferes Lopes.

No livro, na edição de 2015,  o alf mil Domingos Maçarico é o Zé Pedro. O alf mil A. Marques Lopes é o Aiveca. O cap Manuel Guimarães é o Mendonça. O seu guarda-costas, o Calmeiro, é o Domingos Gomes. O guarda-costa do Lopes, o Laminé Turé, é o Carmelita. 

O comandante do batalhão a quem o cap art Manuel Guimarães "queria oferecer" a mina A/C, levantada por ele, não vem identificado. A CART 1690 pertencia ao BART 1914 (que teve  três comandantes: Ten cor art Artur Relva de Lima; ten cor inf Hélio Augusto Esteves Felgas: e ten cor cav António Maria Rebelo. Mas no setor de Gaba, de abril de 1967 a novembro de 1968,  ficou sucessivamente integrada no dispositivo e manobra do BCaç 1877 e depois do BCav 1905 e ainda do BCaç 2856.
 
Mas em agosto de 1967 a CART 1690 dependia do BCAÇ 1877, sediado em Bafatá, e tendo como comandante o ten cor inf Fernando Godofredo da Costa Nogueira de Freitas. O Comando de Agrupamentpo era o nº 1980  (Bafatá, fev67/nov68) (cmdts: cor inf José Frederico Porto Assa Castel-Branco; e ten  inf Hélio Augusto Esteves Felgas).
 
O A. Marques Lopes, na sua página do Facebook, transcreveu este episódio, por duas vezes, em 15 de maio de 2019, e uns meses antes de morrer (de cancro no estômago), em 21 de agosto de 2023 (56 anos depois!).

O excerto que transcrevemos corresponde, grosso modo, às pp.  434-439 (com algumas alterações e pequenos cortes: em 2015, no livro, as personagens sáo identificadas por nomes fictícios; nos  excertos publicados no Facebook, a narrativa é feita na primeira pessoa do singular).


A Mina , 21 de Agosto de 1967

por A. Marques Lopes (1944-2024)

 
(... ) O  [Domingos] Maçarico saiu com a coluna no dia seguinte, logo de manhã muito cedo. Eu e o Guimarães ficámos no bar-barraco a tomar o pequeno-almoço juntamente com dois furriéis. O do capitão era a habitual fresquíssima garrafa de vinho verde e uns cachorros. Maravilha, dizia ele, o frigorífico a petróleo até estava a funcionar. E ele, assim fresquinho, bebia-o mesmo bem. Eu estava agarrado a uma sandes de queijo que acompanhava com uns goles de café.

Eis se não quando chega um Unimog e vimos o Maçarico saltar dele todo agitado:

− Meu capitão, encontrámos uma mina  comunicou, ainda afogueado.

 Deflagrou? 
− perguntou o capitão.

− Não. Os picadores detctaram-na e agora está tudo lá parado.

 
− Então vou lá ver isso aqui com o Lopes. Vamos.

Nem me perguntou se queria ir ou não. Chamou o seu guarda-costas. Fiz o mesmo. Fomos no mesmo Unimog até para lá um bocado depois de Sare Banda, a tabanca dos milícias. Quando chegámos vimos a coluna parada. Os furriéis, alguns soldados e os milícias picadores estavam à volta da mina. Era outra TMD. O capitão ficou excitado, parecendo uma criança a quem deram um brinquedo desejado. Deu ordem para se afastarem todos para longe.

− Só eu e o alferes Lopes mais os guarda-costas é que ficamos aqui. Vamos ver isto.

Ajoelhámo-nos os quatro à volta da anticarro.

− Lopes, esta vamos levantar e vamos oferecê-la ao nosso comandante de batalhão. Além disso isto dá dinheiro.

Estava todo entusiasmado mas eu não sabia quanto é que dava e não estava nada interessado em ganhar dinheiro dessa maneira. Como estava lixado com os mandões do batalhão e do Agrupamento, porque me estavam sempre a mandar para a boca do lobo, também não estava nada virado para lhes oferecer prendas.
Mas, enfim, a prenda era dele, que se lixasse. Peguei na minha faca de mato e comecei a escavar à volta da mina. Era uma TMD, soviética.

Chegou-se, entretanto, um furriel ao pé de nós e tirou uma fotografia. O capitão enxotou-o:

 Já disse para saírem daqui!

Continuei a escavar. Quando já não havia terra nenhuma à volta da mina, achei por bem dizer:

− Não vejo nada aqui à volta, meu capitão. Mas eu não sou especialista nestas coisas e parece-me que é melhor rebentá-la com uma granada ou puxá-la de longe com uma corda. É melhor não arriscar.

−  Nada disso, pá. Vai ser um ronco e quero oferecê-la ao comandante de batalhão. Vamos levantar isto.

Estava obcecado pela prenda ao comandante e devia estar arrependido de não ter feito isso com a outra. Aquilo podia estar mesmo armadilhado, até me tinham dito que, muitas vezes, só quem montou a armadilha é que sabe como está. E eu, ainda por cima, não percebia nada daquilo. Tinha de o avisar novamente.

− Ó meu capitão, não faça isso. É um grande risco que é melhor não correr. Atamos uma corda e puxamos de longe com um Unimog.

 Deixe-se disso. Vamos levantar.

− Então, não sou eu que pego nisso  − disse decididamente, levantando-me.

Lamine Turé, o meu guarda-costas, já se tinha levantado também, estava agora ao pé de mim e olhava-me com aprovação.

Ficou o capitão e disse ao Domingos Gomes, guineense de Bissau e seu guarda-costas, para pegar na mina. Foi quando eu e o Lamine recuámos uns passos.

Foi outra dimensão. O trovão e a faísca rápidos que me lançaram no vazio, sem passado nem presente, nem nada pela frente. Não senti dor ou sofrimento, nem tive qualquer pensamento. Era a forma rápida de sair da vida para o nada.

Não soube nem deixei de saber o que se passara, não soube se morrera ou se ficara ferido, não soube se fui para o inferno ou para o céu, não vi o velho das barbas nem o cornudo de rabo comprido. Houve momentos em que não existi. 

Nem soube quanto tempo tinha sido quando deu por mim deitado no chão da mata, fora da picada.

Levantei-me e vi ao pé o capitão também deitado. Não se mexia, a farda tinha desaparecido quase toda, a perna direita estava pegada ao joelho por uma tira de pele, os testículos estavam desfeitos. Mais à frente estava o Laminé, que se tinha levantado e parecia não ter nada. Perguntei-lhe como estava. Disse-me que só tinha uns estilhaçositos. Fui até ao buracão da mina, olhei para o fundo e viu lá bocados de uma granada de morteiro. Tinha sido assim, um rebentamento por simpatia. Vários elementos da coluna tinham-se aproximado. O Maçarico olhou para ele estarrecido.

− Estás a deitar sangue dos ouvidos.

Ouvi-o mal mas ainda percebi e levei lá as mãos. Vieram cheias de sangue. Vi também que o poncho que envergara tinha desaparecido, só tinha um bocado à volta do pescoço.
 
− E o guarda-costas do capitão? − perguntei-lhe.

− Já o procurei mas não o encontro 
− respondeu o Maçarico

Decidimos colocar o capitão em cima dum poncho e levá-lo para a sede do batalhão, onde havia um médico. Na nossa companhia não havia. Ainda pensámos que podia estar vivo. Por isso vimos que não havia tem po de procurar o homem que levantara a mina, o qual, concluímos, devia ter os bocados espalhados no meio da mata. Depois se veria.

Ouvia-me ao longe, mas sei que fui todo o caminho a chamá-los turras filhos da puta, cabrões, hei-de fodê-los… e montes de impropérios, misturados com várias lágrimas.

O médico do batalhão disse que o capitão estava morto. Viu o meu guarda-costas e confirmou que tinha dois pequenos estilhaços, retirou-os e tratou dele. Com dificuldade, mas ouvi-o a dizer-me que tinha dois estilhaços no peito, tirou-mos e olhou-me:

Estes não têm importância. Mas olhe que você teve uma sorte do caraças. Há um que lhe passou na virilha direita, deixou aí um traço mas não atingiu nada de importante. 

Sorriu-se mas eu não achei piada nenhuma.

− De qualquer modo tem de ser evacuado porque tem os dois ouvidos furados.

E fui. Veio um helicóptero e levou-me para o HM241, em Bissau. Fiquei lá uma semana, tratado a mais de 15 comprimidos por dia. Hão-de ter-me feito bem a alguma coisa, não duvido, mas ao fim de alguns dias o meu estômago nem a água aguentava. 

No fim dessa semana fui evacuado para o HMP, para Lisboa. (...)

(Seleção, revisão / fixação de texto: LG)

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Notas do editor:

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Guiné 61/74 - P25977: (In)citações (263): Eduardo Estrela, espero poder dar-te um abraço, ao vivo, com um atraso de 55 anos (!), na próxima quinta feira, em Algés, no 57º Convívio da Magnífica Tabanca da Linha (Luís Graça, editor)

1. Mensagem do Eduardo Estrela (ex-fur mil at inf, CCAÇ 2592/CCAÇ 14, Cuntima e Farim, 1969/71; vive em Cacela Velha, Vila Real de Santo António; membro da Tabanca Grande desde 29/2/2012;


Data - quarta, 18/09/2024 14:29 
 
Assunto - Afastados e tão próximos (*)

Luís!!

Há 55 anos, uns mal encarados indivíduos inscreveram-nos numa viagem para a qual não nos tínhamos voluntariado.

Durante o tempo da mesma fomos companheiros de mais de mil jovens portugueses lançados para a defesa da pátria e do império, tendo a casa Gouveia como seu representante local. 

Quantas vezes nos teremos cruzado no Niassa, no bar ou na sala de jantar. Quantas vezes teremos assistido à trágica e criminosa forma de transportar pessoas amontoadas como bichos nos porões do navio. 

Antes já tinhamos sido contemporâneos no CISMI em Tavira, durante o quarto trimestre de 1968.

Não obstante, não nos conhecemos pessoalmente.

Na Guiné reforçámos a nossa revolta perante uma situação absolutamente irracional e que continuava a contribuir para aumentar a perda de vidas e de estropiados.

Fomos capazes de regressar, com o beneplácito dos bons irãs e da fé que transportamos connosco duma forma ou outra.

Deixámos dois dos nossos melhores anos de juventude nos tarrafes e bolanhas da Guiné. Ainda hoje há mosquitos descendentes dos que nos golpearam.
 
Sofremos, lutámos, embebedámo-nos com álcool e com companheirismo.

No blogue que,  em hora de felicidade criaste,  é possível o reencontro. É possível falar, é possível trocar ideias contrárias e é possível aumentar a carga emocional de amor pela terra vermelha e pelas gentes que lá vivem e que trazemos no coração.

Bem hajas.
Um dia destes vamos poder dar um abraço fraterno.

Eduardo Estrela





N/M Niassa > Navio misto (carga e passageiros), de 1 hélice, construído em 1955, na Bélgica, registado no Porto de Lisboa, e abatido em 1979. Dados técnicos:  (i) comprimento: mais de 151 metros; (ii) arqueação bruta: c. 10.742 toneladas; (ii) potência: 6.800 cavalos ;  (iv) velocidade normal: 16,2 nós; (v) alojamentos:  22 em 1ª classe, 300 em classe turistica, no total de 322 passageiros; (vi)  nº de tripulantes: 132;  (vii) armador; Companhia Nacional de Navegação - Lisboa. 

Tendo embarcado no Niassa a 24 de maio de 1069, a CCAÇ 2590 (futura CCAÇ 12), juntamente com outras Companhias independentes como a 2591 e 2592 [futuras CCAÇ 13 e 14], chegou ao CTIG em 29, pelas 21h00, tendo desembarcado em Bissau no dia seguinte de manhã.





Lista (ainda) provisória dos 71 inscritos no 57º Convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Algés, 5ª feira, dia 26 de setembro de 2024 (**). Quatro deles pelo menos (António F. Marques, Eduardo Estrela, Humberto Reis e Luís Graça) partiram do Cais da Rocha Conde d' Óbidos, para o CTIG, no mesmo dia e no mesmo T/T, o Niassa, em 24 de maio de 1969.


2. Comentário do LG:

Eduardo,  estivemos juntos em Tavira, no 4º trimestre de 1968,  e partimos para a Guiné, no mesmo navio, o T/T Niassa, em 24/5/1969, tu integrado na CCAÇ 2592 e eu na CCAÇ 2590... 

No meio de 1735 homens, entre oficiais, sargentos e praças, não deu para  nos conhecermo-nos pessoalmente; foi afinal o blogue que nos aproximou... Espero poder dar-te  um abraço, ao vivo, com o atraso de 55 anos!... A ti, e aos demais passageiros desse "cruzeiro inesquecível", que vão estar connoso (o António F. Marques  e o Humberto Reis)... Até 5ª feira, em Algés, na Magnífica Tabanca da Linha (**)
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Notas do editor:

(*) Último poste da série > 23 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25974: (In)citações (262): "No dia em que deixarmos de sonhar, mandem-nos flores brancas!" (Tony Borié, ex-1.º Cabo Op Cripto do CMD AGR 16 - Mansoa, 1964/66)

(**) Vd. poste de 22 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25965: Convívios (1006): 57º Convívio da Magnífica Tabanca da Linha, Algés, 5ª feira, 26 de setembro de 2024: 60 inscritos até hoje

Guiné 61/74 - P25976: (De) Caras (220): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de setembro de 2024:

Queridos amigos,
Esta carta do tenente Barbieri para o seu irmão, Paulo António, em Lisboa, terá a ver com uma viagem que este oficial da Armada fez a caminho de Luanda com paragem em Bissau. Não deixa de surpreender a riqueza da informação que foi prestada, certamente no Comando de Defesa Marítima da Guiné. Há, evidentemente, dados arbitrários, discutíveis, desde os 10% do domínio territorial do IN, passando pelo gasto de 80 granadas de morteiro numa operação de emboscada, até ao poderio naval do IN, nesta data o PAIGC já deslocava pela calada da noite embarcações no Sul, daí as operações com êxito efetuadas pelo comandante Alpoim Calvão, a previsão do tenente de Barbieri quanto a um poderio naval no Sul nunca se concretizou, bem como o sistema antiaéreo que ele refere na região do Quitafine acabou por ser aniquilado. Este documento, à semelhança da correspondência para Paulo Barbieri, prendendo-se sempre com o tema da guerra colonial, será posteriormente entregue no Arquivo Histórico-Militar.

Um abraço do
Mário



Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (2)

Mário Beja Santos

Dei conta ao leitor que nas minhas deambulações pela Feira da Ladra conto sempre cumprimentar potenciais fornecedores, um deles dispõe em cima da sua banca álbuns fotográficos, caixas com velhos bilhetes-postais, fotografias avulsas, maços de aerogramas (infelizmente só de Angola e Moçambique), material avulso, desde programas de ópera a teatro de revista, tudo para satisfazer a clientela de colecionistas, que ali aparece em número apreciável. Bato quase sempre com o nariz na porta, mas desta feita apareceram para ali quatro cartas destinadas a Paulo António Osório de Castro Barbieri, duas escritas pelo seu irmão na Guiné, Nuno Barbieri, e outras duas escritas por um alferes na Guiné, seu amigo, Pedro Barros e Silva, SPM 0368. Já aqui se publicou a primeira carta de Nuno Barbieri para Paulo António, vejamos agora a segunda, com data de 12 de maio de 1967:

“Meu caro Paulo:

Deixei Bissau ontem à tarde sob a ameaça de um tornado, que não tardou a desabar sobre nós no canal de Geba e que veio anunciar a época das chuvas por estas paragens. No momento presente o céu está aberto e o Sol começa a escaldar e isto a umas escassas milhas da costa, pois há cerca de 1 horas passámos pelo través do Cabo Verde. Não só este regime é instável, como também estamos em presença de um microclima, o da Guiné.

Devo dizer-te que um dia antes de chegarmos à Guiné a cor do mar sofreu uma alteração sensível de azul para verde-sujo e isto seria uma amostra da cor das águas marinhas daquela costa. Quando nos levantamos verificamos com desagrado que o mar passara a cor de água de charco. Costa não se via ainda, embora pouco mais tarde nos aparecesse misteriosa, encoberta por um véu de neblina que nós atribuímos ao facto de ainda ser manhã cedo.

A nossa chegada a Bissau foi um acontecimento para as forças navais, que nos vieram esperar sob formatura, com todas as pequenas e ‘grandes’ unidades disponíveis no momento. Era uma da tarde e Bissau continuava encoberta por uma neblina agora parda e apenas nos deixava ver a orla costeira de edifícios e árvores. Sob os nossos pés a chapa de aço fazia arder os sapatos e começava a tornar-se incomodativo para quem como nós tínhamos de estar parados em formatura. Devo dizer-te também que no dia anterior à nossa chegada já a noite se apresentou húmida embora estivesse longe da costa e isso não se parecesse nada com o que nos esperava: 93% de humidade na atmosfera!

Tirando os habitantes e os arredores, Bissau parece uma cidade portuguesa de província onde a desmentir tal facto existe talvez um excesso de geometria no traçado das ruas e um elevado número de cores no tipo de moradias. No entanto, existe qualquer coisa que nos lembra imediatamente que estamos numa terra sob a nossa influência. A presença islâmica é aqui verdadeiramente notável, tendo dado ao negro não só uma aparência de dignidade como também uma mobilização humana orientada que nos pode ser útil ou difícil de suportar, conforme a soubermos manejar.

Etnicamente a Guiné compõe-se de Fulas, Futa-Fulas no Leste, Balantas na faixa central, Mandigas na zona de Como e Cantanhez, Papéis e Balantas ao pé de Bissau e Manjacos no Noroeste. Os Fulas não podem com os Balantas e vice-versa, no entanto as nossas autoridades esforçam-se para a pacificação e é nesse sentido que se procura encarar a fraternização dessas duas etnias. 

Se se perguntar qual a razão por que o terrorista se estabeleceu com tanta força no Sul, e se encarniça a defender essas terras, é porque essa é a zona mais rica em agricultura da Guiné, arroz, e também porque pode receber diretamente da República da Guiné o apoio de que necessita.

As vias de abastecimento do IN são nossas conhecidas e de vez em quando flageladas. Tal conhecimento não nos impede, no entanto, de permitir outras vias sob pretextos humanitários, de tratamentos médicos à população do Senegal que ‘pacificamente’ entra na Guiné para receber tratamento.

Chega-se agora à conclusão da necessidade de organizar a nossa administração sob o tipo de hierarquias paralelas, como único meio de fazer frente à forte organização IN. Este realiza um esforço triplo: de informação, de abastecimento em pessoal e material, e finalmente o de guerra.

 A sua informação na maioria dos casos é superior à nossa e a tal ponto que o fator surpresa não conta praticamente para o nosso lado. O seu abastecimento é bastante eficiente pois material não lhes falta, nem tão pouco munições. É vulgar o IN gastar numa operação de emboscada 80 granadas de morteiro. Como sabes, apareceu agora como novo elemento na dança o canhão sem recuo, que é transportada às costas até ao local da emboscada. Ao longo das principais do IN encontram-se peças antiaéreas duplas que tornam praticamente ‘impossível’ o voo da FAP.

Existe também um contra às nossas ações que é dado pela uniformidade de relevo da Guiné. A falta de pontos conspícuos torna difícil a navegação marítima e terrestre. Sempre que uma força é obrigada a desvia-se de estradas ou picadas por razões de surpresa ou de segurança, tem de se fazer navegação por bússola aproveitando o tipo de vegetação como elemento auxiliar na identificação da posição.

A navegação costeira é feita a olho assim como a determinação dos pontos de reunião de forças desembarcadas com as unidades navais de recuperação. Tal facto apresenta o inconveniente da escolha obrigatória de pontos de desembarque e de reunião, facilmente identificados pelo IN.

Logo que os informadores de Bissau assinalam a partida de uma força anfíbia ao Sul, para o Norte, pelo Geba acima, imediatamente as posições prováveis de desembarque e de ação se tornam identificadas. Para fugir a este inconveniente, o desembarque realiza-se muitas vezes acima de um arbusto, quase arbóreo, que pela sua densidade forma uma massa impenetrável. É o tarrafo, que separa a linha de água da terra firme, numa margem de cerca de 300 m e que é necessário percorrer de ramo em ramo com o material às costas e de regresso, com feridos, prisioneiros e material apreendido. Assim consegue-se desembarcar em qualquer lugar do rio ou da costa e ganha-se segurança. 
Porém, o desgaste físico é violentíssimo e a operação de desembarque demora por vezes 45 minutos. 

Outro aspeto característico da Guiné é a quantidade de líquidos que se absorve e o facto de nunca se conseguir ter o corpo seco. Qualquer gole de água que se beba parece que nos sai logo pelos poros da pele. O calor é muito violento, embora exista sempre uma aragem do mar que no nosso suor nos dá uma sensação de frescura. É apenas uma ilusão provocada pela evaporação do suor e talvez mesmo um meio de defesa.

Tudo isto se conjuga para nos dar a ideia de que a Guiné não é para nós a não ser um divertimento ou uma escola militar. É importante salientar o facto de que as populações indígenas constituírem no interior sistemas de autodefesa bastante eficientes e que por vezes por sua iniciativa tomam parte em ações deliberadas contra o adversário. Além disso, existe na Guiné a milícia que tem feito grandes ações e dado provas de bravura muito superiores a algumas das nossas forças.

Como sabes, o terrorista esforça-se para dominar as zonas ricas de gado e agricultura, não só para debilitar a economia da província como para resolver os seus problemas. Assim, pelo domínio substitui a nossa hierarquia administrativa pela sua, que compreende técnicas especializadas em assuntos agrícolas. Aonde o seu domínio não pode ser efetivo, o terrorista em ações isoladas vai subtrair às populações pela força o arroz de que tem necessidade. Porém, isso autoriza a nossa propaganda a classificá-lo como IN. 

Para fugir a tal classificação, o exército popular da libertação da Guiné começa a vir às nossas zonas comprar o arroz às populações com a nossa moeda, o que significa possuírem dinheiro suficiente para nos fazer concorrência ao nosso poder de compra!

Para terminar, basta dizer que o nosso espírito é o do saudosismo pela causa abandonada na metrópole. Felizmente ainda existem casos de reação e de vontade e que com a escassez de meios ao seu dispor conseguem equilibrar e, ultimamente, obter lenta vantagem militar.

Encontrei o Pedro
(adquiri na Feira da Ladra duas cartas do alferes Pedro Barros e Silva também dirigidas a Paulo António Barbieri, delas se fará referência adiante) no Quartel-General onde trabalha numa repartição de nome estranho e pouca importância. 

Persiste no bigode, embora mais curto para substituir as penosas operações militares dedica-se por vezes a pequenos distúrbios. Basta dizer-te que apanhou com uma garrafa na cabeça, mas segundo ele o adversário ficou pior! Saudoso de casa, isto é, da Europa e certos alimentos, o Pedro espera ardentemente livrar-se da Guiné. Faz projetos de férias que, suponho, te vai participar na próxima carta. 

Quanto ao seu aspeto físico achei-o bom embora com aquela cor um pouco verde da gente que aqui vive. As suas taras mantêm-se vivas e julgo que contraria outras bem mais numerosas. Jantei com ele no batalhão de engenharia por convite do coronel Branquinho e esposa. O comandante situa-se perplexo durante a guerra e diz-nos que a nossa ação será difícil. Esquece, porém, uma coisa, que estamos perante um teatro de operações que é do tamanho das nossas terras a Sul do Tejo e que de todo esse teatro só 10% está nas mãos do IN. 

Embora o terreno seja realmente difícil de atuar, as suas dimensões são, por outro lado, um auxílio nosso. A 20 km de Bissau as tropas estão em guerra o que mostra da parte do adversário o conhecimento que as dimensões estão contra ele. Obrigado por razões de economia a estabelecer-se em força no Sul, espalha-se pelo resto do território para evitar que esses 10% de espaço ocupado e de ação se situem numa zona delimitada, fácil de cercar e estrangular pelas suas pequenas dimensões.

Tudo isto é razão de sobra para a nossa atitude de boca aberta. Enquanto os comandos militares sofrerem de admirações e indecisões deste tipo, julgo que a supremacia será deles.

De todos os seus problemas talvez o das vias de comunicações seja o maior. Este traz problemas de atraso de abastecimentos e das informações e ordens, ao mesmo tempo que só são verdadeiramente possíveis deslocações no sentido Oeste-Leste. Norte-Sul implica o atravessar de numerosas vias de água, esta é a menor dimensão da Guiné logo para azar dos turras. Imposição por virtude de necessidades, de atravessar vias de água obriga os turras a lançarem mão de construção naval: pirogas, porém, uma vez obrigados a aceitar água, o turra serve-se dela para acelerar o abastecimento e a informação no sentido longitudinal, reduzindo assim uma combinação de deslocamentos terra-água o comprimento da Guiné para efeitos de tempo.

Parece-me nunca ser possível ao IN a utilização de outro tipo de embarcação, a não ser que a consolidação das suas posições no Como e no Cantanhez permita a instalação de artilharia de costa e assim estabelecer águas territoriais independentes ao Sul.

Essas águas independentes serão a porta de entrada de embarcações de guerra bem equipadas que a República da Guiné lhes queira fornecer. Primeiro como base naval, depois como irradiação do poderio naval para o interior, o Sul apresenta-se hoje como uma pedra-chave ao poderio do IN. 

A nossa fiscalização, embora dificultada pela ação das margens, não tem encontrado reação pelo próprio meio. Esta inicia-se agora por meio de minas nos rios, já tendo sido danificada uma lancha de desembarque, a ação no próprio meio a longo prazo e depois em ação direta do poderio naval. Isto obrigará da nossa parte a um aumento do custo da guerra, o qual deixará de ser compensado pelo nosso fraco objetivo ideológico.

Julgo ter-te dito tudo quanto consegui concluir no prazo de 2 dias em que aqui permaneci. Dá à família os carinhos devidos e insiste no estado perfeito da minha saúde, Nuno".


(continua)

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Nota do editor

Post anterior da série de 17 de setembro de 2024 > Guiné 61/74 - P25951: (De) Caras (219): Correspondência da Guiné para Paulo Osório de Castro Barbieri (1) (Mário Beja Santos)