Como é do vosso conhecimento, tenho entre mãos as Memórias do Amadu Djaló.
São quatro maços A4, de um lado e doutro, escritos pela mão dele, em letra grande. Do mal o menos. Sempre seguido, nada de vírgulas nem pontos, tudo de rajada. A escrita é de um negro, com muito pouca instrução escolar, como a maioria que conviveu connosco. Mas escrita de dentro de uma Alma grande, com sabedoria, com o senso e a inteligência, que muitas vezes presenciámos naqueles nossos companheiros de armas.
Ver o Amadu a descrever as peripécias em que se envolveu, está a ser muito mais que um descobrimento. Não me vêm as lágrimas aos olhos, mas em cada linha do que escreve é como se eu tivesse estado lá também. E em duas ou três, estive. Nas outras, felizmente para mim, ainda bem que não.
Estou a ver toda a vida dele na cidade natal, Bafatá, a conviver com o Pai, a Mãe, alguns Irmãos, o Avô e amigos mais chegados...A ir e a regressar, acompanhando um primo, feito djila como ele, ao Senegal.
A hesitar na incorporação, a tentar adiar, enquanto abria uma banca para negociar, no Mercado de Bafatá. Não pôde evitar. Fugir não fazia parte da sua maneira de ser, nem lhe cabia na cabeça deixar os Pais e a Família, para trás. Ainda faltavam uns anos para começar a guerra, mas já havia cheiro a pólvora no ar.
Depois da recruta em Bolama, as deambulações, como condutor por Cacine, Bedanda, Catió, Cufar, Farim, entre 62 e 64. Já havia minas, emboscadas, abatizes. Mas ainda era possível ir de Farim a Susana, em coluna, em viagens intermináveis.
Farto de o porem à frente, como 'rebenta minas', não só por medo, mas por uma atitude, que achou prepotente, de um alferes, sobrinho (?) do Governador Schulz, pediu a transferência para a 4ª Rep, do QG, em Bissau.
Foi-lhe concedida. No parque das viaturas da CCS do QG teve a sorte e o contentamento de encontrar o seu amigo, o Tomás Camará, que estava no Gr Cmds do então alferes Saraiva.
Comandos? Que é isso de 'comandos de Saraiva'?
Não precisou de muitas respostas, para uns tempos depois, estar em Madina do Boé com o grupo. Para participar e de que maneira num acontecimento que o marcou para sempre: a mina em Madina, que matou toda a gente, menos um, que vinha na 2º e última viatura.
Um grupo de 20 homens, repartido em duas viaturas, de um momento para o outro, estava reduzido a metade. Não podiam ir todos buscar socorro a Madina, a 30 kms de distância. Alguém tinha que ficar ali, a amparar os feridos, a ficar com os mortos.
Uma das equipas dos "Fantasmas", antes de Madina do Boé. Sold. ??, Carreira (único sobrevivente), Furr Artur, Sold Artur e Sold Godinho.
Uma tarde que pareceu um ano, junto à estrada para Madina, a assistir ao morre este, agora aquele, atè à noite, quando chegou o socorro.
Depois, foram ao Como. Outra odisseia. O 'grupo de Saraiva' despedia-se numa operação, a que puseram o nome de 'Ciao'. Tudo correu bem a princípio. Depois, já na retirada, o alferes Saraiva não quis sair de lá sem trazer a MP, que alguns afirmavam ter sido usada contra eles. Obrigou-os a voltar a um acampamento em chamas. Dos dez que se 'ofereceram' para voltarem ao acampamento, um morreu, com a comissão terminada há que tempos, e todos os outros ficaram feridos.
GrCmds "Fantasmas", no regresso de uma op. no Sul. Amadu Djaló está sentado, de quico na cabeça, ao lado do Tomás Camará, seu grande amigo. Vê-se também o João Parreira, na fila superior, de óculos escuros.
E, logo dois ou três dias depois, foram para o Oio e a história quase se repetiu. Porque a guerra é assim, é feita assim, de repetições, 'os que morreram já não morrem outra vez, morrem outros, os feridos é que podem ter mais sorte, podem voltar a ser feridos outra vez'.
Depois, o 'grupo de Saraiva' acabou e o Amadu achou que já era tempo de ter um pouco de paz. Afinal era um condutor encartado e era mais antigo que muitos. E como condutor ganhava mais 150 escudos que nos comados de Brá e, na altura, 150 escs. dava para comprar muito arroz.
Até que apareceu lá na 4ª Rep, um alferes, o Luís Rainha, do grupo 'Centuriões', que tinha substituído o 'grupo de Saraiva', com uma autorização da 1ª Rep para o levar, outra vez, para os comandos de Brá.
Foi. E logo, dois ou três dias depois, entrou numa nomadização, prevista para durar 48 horas, na zona de Faquina Mandinga, Sitató, na fronteira com o Senegal. Uma nomadização feita num golpe de mão. Entraram por um acampamento, sem ele e os companheiros, em que se incluíu este escriba, terem sido convidados.
O 1º heli-assalto na Guiné foi em Jabadá Beafada, em 06 Mar66. O Amadu, com mais 15 homens do grupo do Rainha também foi, a reforçar o meu grupo.
E, outra vez em Maio, tal como no ano anterior com o 'grupo de Saraiva', nova teimosia, desta vez do Rainha. Ao mesmo acampamento, no Como, para vingar as baixas que o 'grupo de Saraiva' tinha tido no ano anterior. Trouxeram armas e a pistola linda, de coronha nacarada, do Pansau Na Ina e o chapéu chinês dele, também.
Depois a CCmds do CTIG acabou. E sempre que a unidade acabava, ou alguma coisa não lhe agradava, o Amadu pedia transferência. Para a 4ª Rep, a sua eterna casa-mãe.
Tempos depois, estava em Bafatá, quando chegou uma ordem de Spínola para todos os cmds guineenses se concentrarem em Bissau, para fazerem provas e novo curso para a constituição da 1ª CCmds Africanos.
Depois de muito esforço nos treinos, começaram as operações com o capitão João Bacar Djaló, comandante da 1ª CCmds Africanos. A morte do capitão em Jufa (?) abanou-os a todos, não foi só ao Amadu. Estavam em Brá, quando chegou a má notícia. Correram logo para o Hospital Militar, a confirmarem se era verdade. Encontraram-se à entrada do HM 241 com o General Spinola. Depois, seguiram-no pelo corredor até a uma sala, onde estava depositado o corpo do João Bacar. O General levantou o lençol que cobria o capitão e eles espalharam-se pelos corredores a chorarem.
Seguiu-se a formação do BCmds com o capitão Almeida Bruno...seguiu-se Fá Mandinga, Bambadinca...
Eram ops atrás de ops. Uma vez foram a Morés, sob o comando do capitão Zacarias Saiegh e sofreram uma terrivel derrota, talvez a maior de todas que os cmds tiveram em toda a guerra na Guiné, com um saldo 'completamente' negativo, de 5 mortos e um nº de feridos, que ninguém se lembrou de contar. Uma azelhice, fruto de fanfarronice que só não acabou pior porque o Almeida Bruno foi para lá com 'lobos maus' e com quase toda a esquadrulha dos ALL para os tirar de lá de qualquer maneira e, talvez também, porque o IN já estava saciado.
E outra e mais outra ida a Morés, as três idas a Coboiana (com um pormenor, passado ao radio, com o Cor Rafael Durão, que seria delicioso, se não tivesse acabado, quase como nos cajueiros, em Morés, com a 1ª CCmds Africanos sem oficiais, todos atingidos e a cª entregue ao Sargento mais antigo, o Amadu Djaló).
Chegou a informação que o Amílcar Cabral estava com jornalistas, de visita à zona libertada de Madina. Pegaram neles e largaram-nos na zona, três dias, sem nada para comer e com água a ferver nos cantis. No regresso, desmaiaram quatro soldados, que saíram em macas dos aviões. Depois foi Gandembel...
Estavam em 'estranhos' preparativos no mar e na ilha de Soga e ficaram muito surpreendidos qiuando lhes disseram para quê. Houve recusas e hesitações que só terminaram depois das intervenções do Comandante Calvão e, principalmente, com a visita e o curto discurso do próprio Spínola.
A mudança das fardas e das armas, a partida para uma Conacri, em fim de semana, e o episódio do regresso a Bissau, após uns longos 15 dias, que nunca mais acabavam, com eles em Soga, sem saberem o que fazer, e aparentemente, também sem alguns superiores saberem como deveriam proceder com eles.
E Kumbamory, com o capitão Carlos Matos Gomes, ops atrás de ops.
E depois, porque a 'guerra é feita de muitos depois, não é?', o 25 de Abril, que alterou tudo.
A entrega das armas, a vida civil sem amigos, as prisões dos camaradas, os fuzilamentos, o caso dos 90 e tal mortos, em Farim, abafados nos antigos paióis da tropa portuguesa, a prisão dele e a escapadela numa hora que só costuma acontecer uma vez na vida de um homem, graças a um acto digno e cavalheiresco de um comandante do PAIGC.
A Bissau do Luís Cabral, em 1975, era uma cidade triste, com recolheres obrigatórios, denúncias, falta de arroz, falta de tudo, menos de 'milho para burro', que um país amigo lhes enviara num navio.
O golpe do Nino foi o renascer de uma esperança. Depois, a desilusão e a vinda para Portugal.
Uma obra que me empolga. Totalmente absorvido nesta história. Estou a fazer este trabalho, quase a tempo inteiro. A passar para o PC, a correr, todos estes caracteres.
Depois, respeitando o estilo dele, africano, doutra forma perde muito interesse, passo à redacção do texto, talvez eliminando um ou outro capítulo (depende dele) e adicionando outro/s com factos que, ele, ou quer deliberadamente omitir ou resolveu abreviar, como o caso de Conacri.
E, finalmente espero, a redacção 'definitiva', para entregar à Associação de Comandos, para publicação.
Estou a chegar ao fim da 1ª fase. Estou cansado. Mas é uma obra que me está a dar muito gosto fazer. Vou continuar o trabalho do Amadu Bailo Djaló. Sei que estes maços de folhas já andaram por várias mãos, que se cansaram e desistiram. Vou acabá-lo, conforme me foi pedido.
E vou continuar a seguir dia a dia o nosso blogue, com muitos motivos de interesse e satisfeito por termos gente nova e cheia de talento.
Espero e agradeço que me compreendam.
Um abraço grande para ti, para o Carlos e para todos os Camaradas.
vb
_________
Notas de vb:
1. Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3903: A Compª de Cmds do CTIG, 1965/66. Artigo do General Garcia Leandro na Revista Mama Sume. V. Briote
2. Amadu Bailo Djaló nasceu em Bafatá, em 1940. Aos 14 anos, o irmão mais velho levou-o para Boké, para casa de um tio. A mãe era natural de Boké e o pai de Fulamori, também da República da Guiné-Conackry.
Um ano depois, com a morte do tio, regressou a Bafatá. Aos 16 anos conheceu Bissau e um ano depois Bolama. Desde muito jovem deu sinais de querer ganhar dinheiro e de ser independente. Começou por organizar bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobrava as entradas. As meninas de então chamavam ao Amadu 'Mari Velo'.
Enquanto não foi incorporado, foi trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz e pouco mais tarde em Bafatá. Estávamos em 1958.~
Depois da recruta em Bolama, seguiu-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim, regressou à CCS/QG, depois os Comandos de 1964 a 1966, a CCS/QG outra vez, Bafatá no BCav conhecido pelo 'sete de espadas', a 1ªCCmds Africanos, o BCmds, a CCaç 21, com base em Bambadinca, o 25 de Abril...Nos princípios de Janeiro de 1959, regressou a Bafatá. Como sabia ler e escrever, puseram-no a tomar notas, na campanha da mancarra. Aos 20 anos quis dar um salto, tornar-se verdadeiramente independente. Conseguiu abrir uma banca para negociar no Mercado de Bafatá.
1. Vd. poste de 16 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3903: A Compª de Cmds do CTIG, 1965/66. Artigo do General Garcia Leandro na Revista Mama Sume. V. Briote
2. Amadu Bailo Djaló nasceu em Bafatá, em 1940. Aos 14 anos, o irmão mais velho levou-o para Boké, para casa de um tio. A mãe era natural de Boké e o pai de Fulamori, também da República da Guiné-Conackry.
Um ano depois, com a morte do tio, regressou a Bafatá. Aos 16 anos conheceu Bissau e um ano depois Bolama. Desde muito jovem deu sinais de querer ganhar dinheiro e de ser independente. Começou por organizar bailes e festas, juntamente com um primo, para a juventude de Bafatá, a quem cobrava as entradas. As meninas de então chamavam ao Amadu 'Mari Velo'.
Enquanto não foi incorporado, foi trabalhando na construção civil, primeiro no Gabu, como capataz e pouco mais tarde em Bafatá. Estávamos em 1958.~
Depois da recruta em Bolama, seguiu-se o CICA/BAC, em Bissau, depois Bedanda na 4ª CCaç, a 1ª CCaç em Farim, regressou à CCS/QG, depois os Comandos de 1964 a 1966, a CCS/QG outra vez, Bafatá no BCav conhecido pelo 'sete de espadas', a 1ªCCmds Africanos, o BCmds, a CCaç 21, com base em Bambadinca, o 25 de Abril...Nos princípios de Janeiro de 1959, regressou a Bafatá. Como sabia ler e escrever, puseram-no a tomar notas, na campanha da mancarra. Aos 20 anos quis dar um salto, tornar-se verdadeiramente independente. Conseguiu abrir uma banca para negociar no Mercado de Bafatá.
7 comentários:
Caro Virginio Briote
Se morasses tão perto de mim quanto o Luís Graça disponibilizava-me para te dar uma ajuda na passagem desse trabalho para processador de texto. Se achares que a distância se resolve estou disponível para te dar uma ajuda, se assim o entenderes.
Um abraço e bom trabalho.
Artur Conceição
Amigo V. Briote
Tens aí uma tarefa enorme, trabalhosa e absorvente, mas certamente no fim será gratificante pôr de pé essa obra que, parece-me, no fundo, percorre todo o período de tempo que durou a guerra e até mesmo uma fase do pós-guerra.
Se fôr bem conseguido será uma obra duplamente histórica.
Força, camarada|
Hélder S.
SÓ UM ABRAÇO MEU CARO CAMARADA V. BRIOTE. OS JOVENS NUNCA DESISTEM E UM COMANDO...
OS COMANDOS, DE UM MODO GERAL, OS PRIMEIROS NA GUINÉ, OS DAS COMPANHIAS DE COMANDOS AFRICANOS E EUROPEUS E,PRINCIPALMENTE, TODOS OS ANTIGOS COMBATENTES DA GUINÉ PRECISAM DESSE TESTEMUNHO.
SABES BEM AO QUE ME REFIRO...PODE LEVAR TEMPO MAS VAI VALER A PENA...CONTA TUDO...NUM -OU TUDO OU NADA!COMEÇA A CHATEAR...
UM ABRAÇO; VOTOS DE BOM TRABALHO...
EU SEI Q/VAI SER. AB/do Torcato
Virginio Briote,
Alem de um grande esforço da tua parte é uma ideia da maior importância, para que se comece a ter em atenção o que é que pensavam esses muitos milhares de africanos das ex-colónias, que é hábito acusá-los, muitas vezes gratuitamente, de que estavam do "lado errado". Será que eles não queriam tambem uma independência?
Até porque já se começa a ler alguma literatura de africanos a tentar compreender as contradições dos seus países.
Coragem V. Briote.
Antº Rosinha
Amigo Virgínio:
Não vou escrever muito.
Vou só dizer que, primeiro, é importante estares de "volta"
Segundo, avança, com toda a força de um COMANDO.
CMSantos
Mansambo
CART 2339 / 68-69
Virgínio Briote
Só posso dizer. FORÇA.
Pena é que muitos outros guineenses que estão aí por Lisboa não tenham possibilidade se fazer o mesmo.
Abraço
Jorge Picado
Caros Carlos Marques dos Santos, Torcato, Artur Conceição, Jorge Picado e mais Camaradas,
Obrigado pelo vosso incentivo.
Hoje passei a tarde com o Amadu. Soube mais dele,vou-o sabendo aos poucos.
É uma alma muito grande. Nasceu oficialmente em 1940. Mas, na verdade, veio ao mundo de Bafatá, em 1938, filho de pai de Fulamori e de mãe de Boké, ambos da Guiné-Conackry.
Tem duas mulheres a viver em Bafatá e dez filhos ao todo.
Como foi preso e sujeito a sevícias três vezes, tem receio de regressar à cidade natal.
Aqui, não lhe reconhecem o posto de Alferes que usou, vezes e vezes, durante a guerra, como soldado ou comandando grs.nas matas de Madina, do Oio, da Coboiana, até na cidade de Conackry e nas matas de Kumbamory. Três marcas no corpo e muitas feridas na alma.
Nada de reconhecimentos, nem um pão para a boca, vive do trabalho das duas filhas, aqui, em Odivelas, onde vivem quase todos os nossos Camaradas africanos.
É um homem desiludido e amargurado. Não pode deixar de o ser. Portugal recusa-o a aceitar. Nem o considera militar português, e temente da instabilidade na terra dele, Amadu receia regressar. Os cmds africanos ainda não são bem vistos, ao contrário de nós, europeus, que nos recebem, pelos vistos de braços abertos.
Vou levar o trabalho até ao fim. Depois, reformo-me também da guerra.
Um muito obrigado a todos.
vb
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