Caro Vinhal
Junto nova história, para ser incluida nas "Memórias boas da minha guerra".
Trata-se do registo de alguns bons momentos vividos junto do nosso Básico
"Beralista", apresentado como Apontador de Morteiro de Rajada.
Um abraço do
Silva
Memórias boas da minha guerra - 21
O Básico dos Básicos
Veio do Minho. Quando lhe perguntavam:
- Donde és? Ele respondia:
- A 4.800.
- Mas, que queres dizer com isso? Não percebo. 4.800 de quê? - Então ele esclarecia que 4$80 tinha sido o dinheiro que pagou no autocarro, desde a sua terra até Braga, quando foi para a tropa.
Sabia que se chamava Tono, mas depois que chegou ao serviço militar, passaram a chamar-lhe Fernandes.
Porém, logo que a tropa o topou, mudou-lhe o nome. Passou a ser conhecido pelo “Bêralista”. É que, na brincadeira, estavam sempre a dizer-lhe que ele estava de serviço e ele dizia:
- Num pode ser, é “mintira”. “Atão” estou sempre a trabalhar. Bou ber a lista. (a Ordem de Serviço).
Mobilizado para a Guiné, foi integrado na CART 1689, do BART 1913, em Vila nova de Gaia, no RASP 2.
Logo de início, fomos para a Carreira de Tiro do GACA 3, em Silvalde-Espinho, para desenvolvermos as nossas capacidades no treino de tiro. Numa das saídas para a carreira-de-tiro o “Bêralista”, interpelado por um outro soldado, informou ser “apontador de morteiro”.
– Mas tu sabes fazer fogo de rajada como o morteiro? - Resposta: - Sei, sim senhora!
Estávamos em Janeiro de 1967. Fui até junto da praia (quase privada, junto ao golfe) para ver o espectáculo daquela malta toda, em cuecas de malha, molhadas e esticadas no centro com o peso da água, até aos joelhos. Foi uma grande algazarra e um momento inesquecível para grande parte dos militares, não só pelo invulgar convívio mas, também, porque muitos deles nunca tinham visto o mar.
Regressei cedo para o Aquartelamento, para assegurar o jantar, uma vez que estava de Sargento Dia. Não havia ali ninguém. Fui ao WC e apercebi-me que andava por lá o Fernandes.
- Então, que está aqui a fazer? A malta está toda para a praia e você, aqui? Olhe que daqui a dias vamos para a guerra e temos que aproveitar tudo.
Então ele, sempre de olhos no chão e a coçar a cabeça, começou a responder:
- Este rapazinho não tem doença nenhuma. Graças a Deus. O mar? Nem pensar nisso. Deus, nosso Senhor, tem-me dado muita saúdinha e, graças a Ele, nunca foi preciso eu ir para a praia.
Como se vê, chegados à Guiné, seria um perigo entregar-lhe uma espingarda. Foi promovido a Básico, em apoio aos Furriéis e, depois, a “vigia” numa das casernas dos militares.
Logo que chegámos ao Fá Mandinga, nos primeiros dias de Guiné, o Furriel Pontes foi atacado de febre. Deitado na cama, pediu ao Fernandes que fosse à Enfermaria buscar um termómetro. Regressado da Enfermaria, o Básico informou:
- O Enfermeiro disse que num sabia dele. O Pontes, admirado:
- Oh senhor Fernandes, o termómetro tem de estar lá na Enfermaria. Lá é que é o lugar dele. Vá lá e traga-me essa merda.
Uma hora depois chega o Básico Fernandes e explica:
- Olhe que aquilo desapareceu mesmo. Lá na Enfermaria, começaram a empurrar de uns para os outros e, cá para mim, eles gastaram-no todo.
O “Bêralista” vivia muito fechado consigo mesmo. Não tinha amigos, porque desconfiava de toda a gente. Tinha a roupa guardada numa caixa, tipo salgadeira e dormia vestido com a roupa da tropa e sem lençóis.
Sentado no sofá de Fá Mandinga, aprendendo a domar macacos
Quando regressados da Guiné, no Quartel de Gaia, em fila na parada, se preparava para entregar o equipamento, verificámos que tinha mais de 70% da roupa ainda por usar. E como sempre se queixava que lhe roubavam os quicos (bonés), ele, à cautela, tinha “abarbatado” mais de meia dúzia. O Furriel Simões, vendo que ele tinha umas botas de lona por estrear, “deitou-lhe as unhas” e o “Bêralista”, perante o desespero de não poder sair da fila, soltou uns berros enormes:
- Aqui-del-rei, que me estão a roubar.
A gargalhada foi geral e o Simões aproveitou para lhe dar um par de botas velhinhas e dizer-lhe:
- Se o Sargento Viscoso te pedir as botas novas, não te esqueças de lhe dizer que fui eu que tas roubei. Eu pago tudo o que esse fdp quiser.
Já estávamos em Catió quando chegou o madeirense Rodrigues, em rendição individual. Ora o Rodrigues tinha o péssimo hábito de “deitar a mão” a quem estivesse mais “distraído”. Era Domingo e, enquanto a malta estava toda no campo de futebol, o Rodrigues está de passagem por detrás da caserna. Ao ver uma camisa pendurada no arame de secagem, olhou à volta, ao mesmo tempo que lhe “deitou as unhas”. O “Bêralista”, que estava em local apropriado, larga a correr, de pau na mão:
- Ah, Madeirense , seu ladrãozito, que te mato. O Rodrigues, imperturbável, respondeu, com ar ofendido:
- Cuaralhe, esconfiado, a gente nem pode ver se a roupa está seca.
Canoista em Catió
Um dia, o Fernandes, que era um dos analfabetos protegidos pelo “escrivão de apoio” Celorico, levou uma carta à Secretaria, dizendo que era para ser enviada para a sua terra. O envelope estava cheio de selos, colados de um lado e do outro.
- Então, Fernandes, para que são tantos selos? Perguntou o Cunha. – Resposta do Fernandes:
- Como andam a perguntar se não tenho dinheiro para selos, quero mostrar que este rapazinho ainda tem dinheiro para mais alguma coisa.
Naquela altura, o comando da Companhia caiu, pontualmente, no Alferes Clarinho. Como era brincalhão, alinhou numa trama que montámos ao Fernandes. Fizeram chegar uma carta, supostamente vinda de uma rapariga da sua terra. Alegava ela que estava grávida do Fernandes. O Alferes chamou-o ao gabinete para se certificar das “devidas responsabilidades”.
No interrogatório, o Fernandes dizia que não tivera nada com a queixosa. No entanto, depois de prolongado interrogatório, admitiu poder ter a gravidez sido causada através do “encosto” que o Fernandes fizera ao traseiro da moça durante a celebração da missa, lá na terra. Admitia ter sido essa a única oportunidade de ela poder ter engravidado. Não ficaram dúvidas quanto à responsabilidade do Fernandes, que confessou:
- Só ser for isso.
Não fosse a chegada do novo Comandante, teria sido feita a encenação de “casamento celebrado por procuração”, confirmado pelo comandante interino.
Silva da Cart 1689
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Agosto de 2011 > Guiné 63/74 - P8673: Outras Guerras (José Ferreira da Silva) (1): O Herói de Maiombe
Vd. último poste da série de 29 de Julho de 2011 > Guiné 63/74 - P8617: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (20): Uma Grande Mulher (ou uma imagem de uma geração)
4 comentários:
Não é o retrato de uma geração nem de um país, mas que é verdade que o "Beralista" era um dos nossos... José Ferreira, não tenho o teu talento para contar histórias "boas" da guerra, como tu... Pícaras, divertidas, bem humoradas, humaníssimas... Confesso que gostaria de ter escrito esta, na minha série "Galeria dos meus heróis"... Tens uma especial sensibilidade em relação a estas situações do nosso quotiodiano e a estes camaradas, sem nome, nem currículo, sem história. É uma justa homenagem a esses "básicos desconhecidos" que estiveram connosco na Guiné... LG
Caro Zé, eramos todos bons rapazes.
Um abraço
Caro José Ferreira da Silva
Estes retratos que produziste sobre o "Beralista" são momentos fantásticos da forma como, estes mesmos elementos, na sua singeleza e, chamemos assim, "simplicidade de conhecimentos", eram fonte de alegria e algum gáudio, para os outros camaradas, mas também eram protegidos por todos, face às suas limitações. Em todas as companhias, julgo eu, existiam "cromos" semelhantes. Naqueles tempos era difícil escapar ao funil do recrutamento, mesmo com estas evidências de limitações....E recebiam uma arma e alguns até eram atiradores.
O que aqui se realça também e como diz o Luís Graça é que estes camaradas estiveram connosco na Guiné.
Um abraço.
Luís Dias
Caro camarigo J. Ferreira da Silva
Nas tuas 'memórias' continuas a dar-nos retratos de elementos curiosos.
Neste caso, mais um 'básico'.
E, como parece ser normal, quando alguém ou algum 'destoa' do grupo, o grupo tende a, por um lado 'proteger' quem é diferente e aparenta ser mais fraco mas, por outro, surgem também as situações em que o grupo de une para 'gozar' abusando das fraquezas de quem tem menos defesas... Como disse, é recorrente, é normal acontecer assim, mas não deixa de ser violento...
Gostei da explicação do 'ber a lista'... na terra onde tive a minha infância também uma expressão semelhante "vêralista" embora aplicável a outras situações...
Gostei também da descrição que fizeste da ida 'à praia de Espinho', pois também aconteceu te ido lá uma vez com o pessoal das Transmissões e as imagens não eram muito diferentes.
Abraço
Hélder S.
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