sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8728: História da CCAÇ 2679 (43): Aquele hôme (José Manuel Matos Dinis)

1. Mensagem José Manuel Matos Dinis* (ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71), com data de 31 de Agosto de 2011:

Carlos,
A história da CCaç 2679 tem estado em banho-maria. Agora, ao ter deparado com uma caricatura** de um amigo, resolvi enviá-la e juntei o texto alusivo ao caricaturado.

Pode ser que a seguir dê continuidade a outras estórias daquela história.
Para a coisa ser apresentada decentemente, é obrigatório referir que a caricatura, com 40 anos, foi desenhada com esferográfica sobre aerograma, e saiu das mãozinhas do Zé Tito Martins, um gajo capaz de alindar o mais feio dos mortais.

Um abraço
JD


HISTÓRIA DA CCAÇ 2679 (43)

Aquele hôme

Conheci o Abreu no fim do verão de 69, na capital da Pérola do Atlântico, onde fui colocado para dar instrução militar aos mancebos locais. O dito já lá estava. Magricela como eu, enfezava-se na farda número três, ou de trabalho, ossudo de cara, apresentava-se, no entanto, simpático e sorridente, bom companheiro e sempre disposto a alinhar. Não o parecendo, levava uma vida difícil e sofrida, pois apresentava-se obrigatoriamente à hora matinal que a tropa impunha, acompanhava tanto quanto podia os exercícios matinais, quando havia crosses até Câmara de Lobos, desenfiava-se por alturas do Lido num qualquer bananal, e numa qualquer tasquinha de beira da estrada aguardava pelo regresso da tropa corredora e, acautelando-se da vista do BM, integrava o pelotão até ao centro da cidade, onde se situava o 19, e não debandava das teóricas da tarde, apesar de deixar para outros mais jeitosos as explanações que os instruendos não percebiam. Com o fim das actividades diárias, o pessoal retirava-se, cada um ia a casa para o necessário banho, mudança de roupa, e logo se juntavam para convívio, nos cafés e esplanadas em redor da Sé.

Dali partia-se em passeata predadora, trocavam-se olhares e piropos com as jovens da cidade, bebia-se um aperitivo para a janta, vigiavam-se os acontecimentos na "pontinha", e a horas marcadas o pessoal encaminhava-se para a tasca ou snack onde se praticava a arte de jantar. O Abreu, naturalmente, integrava a procissão e contribuía com o sotaque e piadas à moda do Porto para a alegria geral. Depois de jantar, para ajudar a digeri-lo, o pessoal ainda passava por algum café, "boite", ou visitava um dos vários antros de animação noturna, que às vezes mais pareciam pesadelos sem movimento nem alegria. Pelas dez, onze, ou meia-noite, conforme corressem as coisas, o pessoal recolhia a casa para o sono reparador. Mas o Abreu, coitado, tinha responsabilidades, adormecia quase em corrida, porque, pelas três ou quatro da manhã, chegava a menina com quem partilhava a cama, e que já vinha suficientemente excitada do local de trabalho, onde os mânfios a apertavam e apalpavam quanto podiam durante os passos de dança, como meio indemnizatório do excessivo preço do espumante achampanhado, ou das cervejas e cocktails que o Porto Rico cobrava.

Ora, todos sabemos, elas não matam, mas moem.

E foi sempre assim, tanto, que quando chegou a hora de embarque para a Guiné, o Abreu sentiu uma espécie de alívio, uma libertação física.

E lá portou-se bem e com galhardia. Mas sonhava com o Funchal, passou a faltar-lhe o calor da companheira no estreito colchão da tropa, dos cigarros finos que ela lhe trazia das diferentes proveniências do grande mundo, das lembranças traduzidas em isqueiros Dupont, de outros mimos e carícias. Por isso, frequentemente, acordava em erecção, qual espadachim pronto a perfurar o inimigo, mas, desta feita, com boas intenções, oferecia aos camaradas que dele se quisessem servir, um original serviço de chamadanhas para Tóquio, parece que uma cidade de uma ilha distante, nos confins orientais, onde existem belas e sofisticadas mulheres, de proporções e movimentos delicados, capazes de enfeitiçarem os machos latinos.

Não consta que alguém tenha praticado a curiosa interpelação que o Abreu propunha, mas todos os dias era inexcedível na generosidade.

Atirador de Infantaria, palmilhou por trilhos e bolanhas, bebeu do próprio suor nas cálidas caminhadas, deixou uma marca da presença lusitana em terra de fulas e bajudas com corpinho inspirador. Mas o clima e a alimentação agrediam, e o nosso herói acabou por sucumbir a uma dolorosa e prolongada prisão-de-ventre, que o prostrou durante duas semanas, com dispensa de alinhar no mato, ou de desenvolver actividades de exigente verticalidade. As dores dilaceravam-no. Gemia que nem uma piegas. Perdeu o elegante porte de militar brioso. Aos camaradas pedia com aflitivo aspecto, que lhe levassem à cama um caldinho, e mamava uma malga de ervas liofilizadas, uma aguadilha que ele dizia assentar-lhe bem. Um dia, não se sabe como, se impulsionado por dor impiedosa, se por teimosia convicta, saiu da cama, desencantou um penico, e sentou-se nele à espera que provocasse efeito.

A cabeça tombava mal sustentada pelo pescoço quase desvitalizado, os olhos murchos exprimiam muito sofrimento dos dias acabrunhados, a boca inclinada deixava escapar uns lamentos quase terminais. Assustava. A fotografia daquela cena foi de imediato transmitida com aflição exagerada por um furriel especialista, a quem perturbava imaginar ter que dormir num quarto onde alguém falecesse, do que resultou uma reacção imediata dos restantes furriéis operacionais, que invadiram o quarto e depressa constataram que a questão metabólica não seria suficiente para levar o Abreu.

Eram jovens os furriéis, havia pouco tempo, ainda se inteiravam das histórias da banda-desenhada e, talvez por isso, algum de entre eles lembrou-se que poderia tratar-se de um problema de mau olhado, ou de perturbação dos espíritos. De inicio não o levaram muito a sério, mas face às insistentes argumentações daquele, e perante o total desconhecimento da causa de tanto sofrimento, lá se desencadeou uma dança com caráter religioso de pedido e desagravo a Manitú, com o pessoal a dançar, ora para um lado, ora para o outro, em redor do Abreu que sofria, e queria cagar-se a rir, mas Manitú não quis saber da solidariedade manifestada, e nem um cagalhãozinho esperançoso lhe deu expectativa de salvação.

O problema acabou por ter solução, mais tarde, já não sei se por causas endógenas, se exógenas.

O certo é que o Abreu deixou de alinhar no mato, passou ao exercício da função não menos digna de vague mestre e, não sei se para não alterar os hábitos da Companhia, o rancho não registou qualquer melhora substantiva, constando, até, que o homem estaria a dar-se bem com a escrita da bianda e dos estilhaços, embora, também corresse a ideia de que ele não mandava nada, nem era responsável pelos mapas contabilísticos. Eu perfilho desta ideia.

O Abreu safou-se, tem levado uma rica vida lá para as bandas do Porto, e nem umas doençazitas que o afligem, são capazes de o demover a comparecer em convívios com os camaradas. Como referiam os madeirenses: "é aquele hôme!".
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 25 de Maio de 2011 > Guiné 63/74 - P8321: (Ex)citações (139): Comentário ao Post 8318 - Notas de Leitura - Porque Perdemos a Guerra, de Manuel Pereira Crespo (José Manuel M. Dinis)

(**) Caricatura não publicada por suscitar dúvidas de ser contra à política de conteúdos do Google. O nosso camarada Zé Manel não ficou muito zangado com os editores.
Quem quiser receber particularmente a dita caricatura poderá solicitá-la a mim ou ao camarada José Manuel Matos Dinis.

Vd. último poste da série de 13 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7276: História da CCAÇ 2679 (42): A noite em que ninguém queria ir levar o rádio a Tabassi (José Manuel Matos Dinis)

3 comentários:

Anónimo disse...

Esta história tem muita imensa piada, porque muito bem contada.
Para mim ela tem um valor acrescentado, é que embora com outros personagens, dois anos depois eu assisti a um remake da mesma.
A mesma unidade BII19, mas agora lá em cima em S. Martinho, os mesmos crosses a Câmara de Lobos, os mesmos cafés/cervejarias junto à Sé(Coral a m/preferida)os mesmos bares. Só que aqui o Abreu eram Dois (não vou citar nomes até por respeito à memória de um deles, que acabou por falecer no teatro de guerra) e uma das meninas familiar do Comandante. As lembranças eram um pouco mais sofisticadas, nota viva, umas voltazitas em ouro, uns jantares de glamour,enfim...
Até que um dia aquilo deu estribilho....
Passados às terras do fim do mundo, mas agora outros personagens, praí quinze dias a tomar comprimidos e não só, para a prisão de ventre, até que...aleluia, aleluia, mas depois foi necessário quase um mês para parar a caganeira. Quanto a vague mestres , quem não tiver razão levante o dedo. SÓ ESTES?
Mas na minha companhia, felizmente que o vague mestre veio de férias e aí sim comeu-se mais e melhor.

Caro Diniz desculpa-me este imenso desfiar de memórias, mas o teu post fez-me reviver, coisa que vamos precisando cada vez mais, porque reviver também é viver. Obrigado e aparece sempre.

António Almeida

Hélder Valério disse...

Caro José "Abrunhosa" Dinis

Interessante, este personagem.
Interessante, mas estranho.

Não te chegavam os teus 'foxtrotes' e havia ainda e também que ter em conta estas 'aves raras'.

Não sei se alguma vez se pensou em inventariar os casos peculiares que apareceram ou se foram desenvolvendo no T.O. mas era capaz de dar um tratado.
Apanhados, falsos apanhados, tarados, obsessivos, etc., devia dar toda uma pequena galeria de 'notáveis'...

Abraço
Hélder S.

JD disse...

Meu Caro Helder,
Este meu amigo não é uma "ave rara" no sentido de poder ser um xico-esperto qualquer.
Pelo contrário, pode ser uma ave-rara, se tivermos em conta que ele não fez nada para ter estado doente, nem fez nada para ser vague-mestre.
Foi sempre um tipo às direitas, bem disposto, amigo do amigo, e eu pensava ter transmitido esta ideia.
Quanto aos baldanços nos crosses, obviamente contava com a nossa cumplicidade. Quem poderia aguentar tanto esforço?

Nota: sobre a referência BM, trata-se da sigla dos apelidos do comandante de instrução.

Um grande abraço
JD