quarta-feira, 19 de junho de 2013

Guiné 63/74 - P11730: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (44): A mulher mandinga e o soldado português

1. Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (44): A mulher mandinga e o soldado português

Uma mulher mandinga,  a caminho do mercado,  passa diante da porta de armas onde esta postado um soldado português em serviço de sentinela. Ela sabe que os portugueses, de uma forma geral, não têm especial empatia para com os mandingas que, com ou sem razão, suspeitam de estar do lado dos terroristas, por isso num gesto amigável de querer agradar, exibindo o seu melhor sorriso, cumprimenta a sentinela na única lingua que sabia comunicar:
Caira lata! (paz e bem, o mesmo que dizer bom-dia em mandinga).

O soldado interpreta o cumprimento da mulher como uma provocação terrorista, não responde e faz gestos com a mão a indicar-lhe para continuar a caminhar e não chatear, pois que chatices ja tinha ele o suficiente para estar ali de serviço.

Volvidos alguns dias e, no mesmo local, a mulher volta a encontrar o soldado em serviço na porta de armas e,  indiferente ao facto de que se tratava ou não da mesma pessoa, repete o ritual com a mesma cortesia de sempre.
 ─ Caira lata!

 O soldado não responde, mas faz os gestos habituais de mandar seguir com as mãos que a mulher interpreta como resposta aos seus salamaleques e, como mandam as regras da boa educação africana, acrescenta logo a seguir:
Sukonum kolo!? (Como vai a familia!?)

Exasperado, pelo que ele entende ser uma afronta, o soldado avança de forma ameaçadora para a mulher, visivelmente com intenção de a agredir com um pontapé, valendo a pronta intervenção das pessoas que passavam por perto e, perante o desconforto da situação, vê-se obrigado a explicar aos presentes as razões de toda a bagunça:
─ Foda-se, a f...da p... da velha,  não contente de me chamar 'cara de lata', todos os dias que passa por aqui, hoje ameaçou-me com um 'soco nos cornos', era o que faltava!

No meio da confusão, a mulherzinha só sabia dizer: 
Hoi mbama!!! Hoi mbama!!! (Oh minha mãe!...Oh minha mãe!).

Bissau, 10 de Junho de 2013
Flagrantes da vida “colonial”
Cherno Baldé – Chico de Fajonquito

14 comentários:

Bispo1419 disse...

Olá, meu caro Cherno! Prazer em voltar a "ver-te" por aqui!

Dá para rir, hoje, ao imaginarmos a cena. Pode parecer caricata mas, na verdade, não o é.
Neste caso, não vou para o desprezo e/ou para a sobranceria do soldado, que até poderiam existir. Acho que tudo se resumia a um problema na comunicação, à incomunicabilidade pela linguagem tão comum em muitas das relações humanas e donde muitas vezes podem surgir maus resultados.
Quanto a termos linguísticos inerentes a uma certa língua que podem "incomodar" quem a não conheça, eles são muitíssimos. Por ex., no japonês há muitas palavras com o som "kaga": Kaga (nome de uma cidade), Kagáki, Kagawa, etc. O presidente do Ruanda (penso que ainda o é), chama-se Paul Kagame.

Em português temos por exemplo as palavras de uso corrente "fosso", "fossa", "fossar" que vêm do latim "fossum"(furado/escavado), uma forma do verbo "fodere" (cavar, furar) e cujas outras formas deram origem a palavras que deixaram de ser usadas normalmente como, por ex.: "fodio" (eu cavo/furo), "fodi" (eu cavei/furei). Por aqui se vê o engulho que causaria ao ouvinte português sem conhecimentos de latim, alguém que lhe viesse dizer que "pisces foderunt retem"(os peixes furaram a rede)!

Muita saúde para ti e teus entes queridos. Coragem e sorte para enfrentar e vencer as "tempestades tropicais".
Grande abraço
Manuel Joaquim

Anónimo disse...

Caro Cherno,
Sejas bem aparecido e ainda por cima com esta dose toda de humor.

Muita saúdee tudo de bom para ti e para os teus.

Um grande abraço.

Adriano Moreira

Henrique Cerqueira disse...

Caro Cherno
Contas esta história com graça e ligeireza.No entanto esses acontecimentos eram muito mais sérios que aquilo possa parecer e só denotava que os responsáveis na altura pelas tropas enviadas para o Ultramar para além de irem na generalidade mal preparadas em termos militares,em relação à cultura das gentes locais a preparação era ZERO.Pior ainda que cá na Metrópole eu assisti a um filme no quartel pouco antes de embarcar que só mostrava as coisas apelativas e em especial as Bajudas com os seu belos peitos à mostra.Ora nós quando encaramos a realidade na maior parte das vezes não sabia-mos lidar com elas.
Felizmente eu tive em Bolama uma formação de ação psicológica para ingressar nas unidades africanas (CCAÇ13 BISSORÃ)e que por sinal foi uma formação muito bem administrada por um capitão especialista na matéria.Daí eu ter conseguido me integrar muito bem com as populações assim como ensinei o comportamento mais correto possível á minha mulher quando foi viver comigo para Bissorã.
Cherno um abraço e tudo de bom para ti e família.
Henrique Cerqueira

Luís Graça disse...

Lembro-me desta "pérola", no meu tempo de aluno do latinório:

"Piscis foderunt conas"... (o que em, português não isso que vocês pensam, ou querem ouvir... mas tão só: "Os peixes furaram as redes"...).

Anónimo disse...

Caro Cherno

Muito bem "rasgadinha" esta "estória" e bem humorada por sinal.

Quanto ao latinório..deve ler-se da seguinte forma..."pixis fódérunt cónás"..se bem me lembro..ou não será assim meu caro Luís Graça..é que aprendemos latim no mesmo sítio.

Um abraço para o Cherno

C.Martins

Anónimo disse...

PS

Já agora, sabem de onde vem o termo "caralho"..não, não é o que estão a pensar...era o nome da "cesta" onde ia o vigia nas naus.
Aquilo devia ser incómodo "p,ra caralho"...

C.Martins

admor disse...

Mas afinal de contas redes é retem ou conas?
Lá que qualquer uma delas prende um gajo é bem verdade.

Um grande abraço para todos.

Adriano Moreira

Anónimo disse...

Tive um aluno que se chamava Fodé,o que divertia muito as colegas...Ás vezes, tirava-lhe o acento..-Responda Fode..- Vamos lá Fode...


J.Cabral

Anónimo disse...

Mas que linguagens !!!Ó gentes amigas qu'até corei.
Amigo Cherno Baldé, parabéns pelo desassombro e manda mais.
Um abraço
do Veríssimo Ferreira

Hélder Valério disse...

Caro Cherno

Uma história na melhor linha dos 'contistas' que têm aparecido por aqui, na senda do A. Branquinho, do J. Cabral, por exemplo.

É como já li num comentário, mais do que a atitude eventualmente arrogante ou sobranceira do militar, o 'miolo' do problema foi mesmo 'comunicação'.

Gostei da história e gostei do desassombro das fotos, elas também na linha das que por aqui se publicam na 'net' sob o lema de "Portugal no seu melhor".

Abraço
Hélder S.

Bispo1419 disse...

Oh Admor,
não sei o que te dizer sobre redes e conas! Para já suspeito que cometi um erro linguístico na frase "pisces foderunt retem". Em vez de "retem", é "rete".(Fui ver: "rete,is" é um nome neutro, logo a sua forma no "acusativo" é "rete" e não "retem").

Tenho a certeza que a palavra "rede" corresponde a "rete" no latim clássico. Quanto à "conas" do Luís para "redes" há na verdade uma palavra latina na área da pesca que se aproxima: "conamentum" (o gancho, o arpão). Admito que seja um vocábulo do latim vulgar, ou seja, do latim popular de onde provém a maior parte das palavras da língua portuguesa. Não sei de tal nome para "redes", encontrei "conabilis" (o que exige esforço), "conabundus" (o que faz muito esforço), "conamentum" (o gancho, o arpão), "conatus" (a força, o ímpeto, o impulso).

Já agora, a propósito do tema deste "post" do Cherno Baldé, uma pequena história passada comigo numa aula de latim do 7º ano do liceu, no colégio Correia Mateus em Leiria. Certa vez, a professora atira-me com a frase "Olha lá, meu rapaz, uvas até nas portas?"
Fiquei engasgado e com a nítida sensação de ser mais um a ser "gozado" perante as risadas surdas vindas da turma. Resumindo: tive uma aula de sintaxe "latínica" já que não havia uvas nas portas mas uma frase latina, "Uvas Athenas portas", que significava "levas uvas para Atenas".

Um abraço, meu caro Admor.
Manuel Joaquim

Antº Rosinha disse...

Os únicos brancos, portugueses que se entenderam e relacionaram quase na perfeição com os africanos, (e sem complexos de colonizador nem colonizado), foram os comerciantes do "mato" ou nos subúrbios das capitais ooloniais.

Só esses comerciantes dominavam um ou vários dialectos tribais e aqueles que não se integravam acabavam por desistir da actividade porque os "fregueses" levavam-no à falência deixando de frequentar a loja.

Embora alguns chefes de posto também se entendessem com as diversas tribos, não havia a mesma "assimilação".

A guerra do ultramar teria corrido melhor para os militares coloniais, (e até para o povo tribal), contra os movimentos, se os comandantes (e a PIDE)tivessem aprendido um pouco de alguns idiomas, com esses comerciantes.

Não teria havido durante a guerra menos "aversão" turra/colon, do que diálogo tropa/colono?

Pelo menos em Angola, não tenho dúvida que assim foi.

Mas isso digo eu que também tive oportunidade de ser retornado.

O Cherno com o jeito que tem para estas estórias pode trazer muitas mais, pois ainda há muita gente da idade dele com muitas coisas para relatar.

Cumprimentos

Carlos Silva disse...

Olá Cherno

Esta história é dos "apanhados" ???

{{{{─ Caira lata! (paz e bem, o mesmo que dizer bom-dia em mandinga).
─ Sukonum kolo!? (Como vai a familia!?)

─ Foda-se, a f...da p... da velha, não contente de me chamar 'cara de lata', todos os dias que passa por aqui, hoje ameaçou-me com um 'soco nos cornos', era o que faltava!

No meio da confusão, a mulherzinha só sabia dizer:
─ Hoi mbama!!! Hoi mbama!!! (Oh minha mãe!...Oh minha mãe!). }}}}}

A língua portuguesa na verdade é muito rica, pois para mim foi uma questão de linguística, e basta ver a interpretação que o nosso camarada deu aos cumprimentos da sua vizinha.

Gostaria de assistir à cena e à explicação dada aos intervenientes e depois informá-los: olhem isto é para os "apanhados"...

Gostei imenso e fartei-me de rir...
Com um abraço
Carlos Silva

Unknown disse...

A todos boa saúde.
Caro Cherno Baldé, só para agradecer a publicação deste post.

Esta pequena ocorrência em condições colonialistas pode ser multiplicada por X número de vezes até agora desconhecido.
Uns tentam dar-lhe o tom de humor, outros calam-se e fazem replay do que os seus olhos viram, e sentiram na pele por se oporem.
Esta pequena história, definida como caricata ocorrência, contém muita matéria para escalpalizar.
A cultura colonialista induzida pelo estado salazarista, nos militares, iletracia, etç.

Um abraço para todos e para cada um.
Carlos Filipe
ex-CCS BCaç3872 Galomaro/71