Septuagésimo sétimo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGRU 16, Mansoa, 1964/66.
Companheiros, antes de iniciar o resumo do próximo dia,
queria dizer-vos que nada mais nos move, além de retirar
o vosso pensamento, por alguns minutos, das lembranças
horríveis daquela maldita guerra, que nós todos vivemos,
dos tiros, ataques ao aquartelamento, emboscadas,
aquartelamentos com lama, pó, terra vermelha, abrigos
improvisados, fome, arroz e peixe da bolanha sete dias
por semana, esperas que o tempo passasse, com muita
amargura e sofrimento, o catra-pum-pum-pum, da
metralhadora mais próxima, companheiros feridos,
camuflados rotos e sujos de sangue, isolados, sem
notícias do exterior, onde um simples sorriso de uma
simpática “bajuda”, nos fazia, pelo menos no nosso
pensamento, o mais refinado “Don Juan” e, aquele sorriso
daquela “bajuda”, não era “guerra”, era outra coisa, talvez
uma “lofada de ar fresco”, talvez uma pequenina
esperança em continuar a viver, tal como eu quero dar
aos meus companheiros, quando me lêm e viajam
comigo.
Cá vai o resumo do vigésimo dia
Depois de arrumar toda a “tralha”, que eram os nossos
utensílios de casa, próprios para viver com alguma
facilidade na nossa caravana, eis-nos de novo na estrada
número 287, com um cenário de mais montanhas que
planícies, rumo ao sul, parando no cruzamento com a
estrada número 90, que vem do oceano Pacífico e nos
leva ao Atlântico, aqui existe uma pequenina povoação de cruzamentos de estrada, com estação de
serviço, loja de conveniência e, uma famosa padaria com
produtos de trigo, milho ou centeio, toda a qualidade de
pão e seus variados, também lá tinha pão tipo
“português”, onde comprámos muito pão, que
armazenámos para os próximos dias. Neste cruzamento,
vêem-se muitas pessoas, mesmo casais, alguns com
crianças, “à boleia”, são simpáticos. Quando comprávamos
gasolina, falámos com um casal, que nos pediu
boleia, todavia, não tínhamos espaço, disseram-nos que
andam na estrada há cerca de um ano e, não tinham
nenhuma pressa em chegar de novo ao estado do
Alabama, de onde eram oriundos.
Seguimos rumo ao sul, parando por algum tempo na
pequena, mas acolhedora povoação de Ennis, onde
dizem que por volta do ano de 1863, um tal William Ennis
se estabeleceu ao longo do rio Madison, quando se
descobriu ouro na região e, talvez sem saber, deu o nome
ao que hoje é uma pequena povoação. Aqui, fizemos
algumas compras, continuando rumo à aventura do
“Yellowstone National Park”, onde passado umas horas
chegámos à povoação de “West Entrance”, pois era assim
que era assinalada nos diversos anúncios de estrada que
constantemente apareciam.
Aqui, antes de entrar no Parque, visitámos o Centro de
Turismo e algumas lojas de recordações, onde se vende
quase de tudo e, em algumas lojas, até se pode
“regatear”, ou seja oferecer diferente preço do que está
marcado na mercadoria. Entrámos num restaurante
onde nos serviram sandes de churrasco de carne de
búfalo, era diferente, gostámos.
Toda esta povoação ainda está no estado de Montana. Pouco depois de entrarmos no parque, atravessamos para o
estado Wyoming e, foi surgindo pela frente o parque
nacional mais antigo do mundo, pois foi inaugurado no
ano de 1872, cobrindo uma área de mais de 9000 quilómetros
quadrados, que se divide pelos estados de Wyoming,
Montana e Idaho. Este parque é famoso por, entre outras
atrações, ter os seus “Geysers”, que são umas fontes
termais, que entram em erupção periodicamente,
lançando uma coluna de água quente e vapor para o ar,
que nós podemos observar, caminhando por umas
“passadeiras”, em madeira que nos dão acesso, mesmo
em frente às colunas de água quente e vapor, que se
perdem na atmosfera.
O centro do grande ecossistema de Yellowstone, é um dos
maiores ecossistemas de clima temperado ainda restantes
no planeta. O “Geyser” mais famoso do mundo,
denominado “Old Faithful”, do qual nos aproximámos,
encontra-se neste parque.
Muito antes de haver presença humana em Yellowstone,
pois dizem que essa presença remonta mais ou menos a
11.000 anos, uma grande erupção vulcânica ejectou um
volume imenso de cinza vulcânica que cobriu todo o oeste
dos USA, a maioria do centro-oeste, o norte do México e,
algumas áreas da costa leste do Oceano Pacífico,
deixando uma enorme caldeira vulcânica, (70 por
30 km) assentada sobre uma câmara magmática.
Felizmente não, durante a nossa visita, mas Yellowstone
já registou três grandes eventos eruptivos nos últimos
2,2 milhões de anos, o último dos quais ocorreu há
640.000 anos. Estas erupções são as de maiores
proporções ocorridas no planeta a que chamamos Terra,
durante esse período de tempo, provocando alterações no
clima em períodos posteriores à sua ocorrência.
Percorremos o parque em quase todo o lugar em
podíamos ter acesso, vimos os “Geysers”, com as suas
diferentes cores, que correspondem aos diferentes
minerais que brotam do seu interior, cascatas de água
pura saindo das montanhas e rios de água quente. Atravessámos o “Continental Divide”, que é o nome dado
ao conjunto de linhas formado por uma série de cumes,
(vulgarmente diz-se, cumeada), na América do Norte, que
separam as bacias hidrográficas que drenam para o
oceano Pacífico, oceano Atlântico, incluindo o Golfo do
México e mesmo até o oceano Ártico, onde uma das suas
linhas divisórias passa aqui no Parque de Yellowstone,
também vimos alguns animais, dos quais dizem haver no
parque uma grande variedade de vida selvagem, na qual
se incluem ursos castanhos, lobos, búfalos, alces e outros
animais.
Ainda era dia quando tentávamos sair do parque,
cumprindo o nosso programa, mesmo a poucas milhas da
“South Entrance”, ou seja, da saída sul, pois estava no
nosso programa seguir para outras paragens, quando
surge um aparatoso acidente envolvendo um autocarro, onde segundo nos disseram seguiam crianças, ficando a
estrada intransitável, mesmo fechada por um período que
se prolongou por mais de 6 horas.
Esperámos mais ou menos uma hora,
continuando a estrada fechada, tentámos voltar ao ponto
da “West Entrance”, no caminho de regresso os veículos
passavam por nós, em direcção ao sul, perguntámos,
diziam que a estrada já estava aberta, voltámos ao sul, ao
local do acidente, onde havia uma enorme fila de viaturas
paradas, pois a estrada continuava fechada, desviámonos
para um local entre árvores, embora já fosse quase
noite, estando no meio da montanha, se ouvissem alguns
sons de animais uivando. Estávamos decididos a passar
ali a noite, quando a estrada abre, começando o tráfico a
andar, voltámos à estrada, conseguimos sair do parque,
mas com todo este atraso, o adiantado da noite, todos os
parques de campismo lotados, pois todos procuravam
lugar onde dormir, não tivemos outra alternativa, senão
ocupar um lugar numa cabana, com o Jeep e a caravana
estacionados numa “ribanceira”, parecendo um precipício,
onde um luar divino nos iluminava.
Neste dia percorremos 339 milhas, com o preço da
gasolina a variar entre $3.67 e $3.68 o galão, que são
aproximadamente 4 litros.
Tony Borie, Agosto de 2014.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 29 de Novembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13957: Bom ou mau tempo na bolanha (76): Da Florida ao Alaska, num Jeep, em caravana (17) (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Tony Borié
Quase conterrâneo, já que a distância entre as nossas terras é pequena.
Aproveito a ocasião para te dizer que, no meu entender, apesar deste cantinho ser de "camaradas da guerra", neste caso de uma das antigas Colónias, nem só de guerra "se deve viver", para não dizer "escrever".
Continua pois que estou certo, muitos mais do que os que te fazem comentários, gostam de ler estas tuas e, quiçá de outros, aventuras, pois é também uma forma de conhecer outras "paisagens". No fundo, um pouco mais de cultura.
Leio-te sempre e raramente comento.
Abraços de Ílhavo até Miami.
JPicado
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