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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27370: Notas de leitura (1857): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (4) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Outubro de 2025:

Queridos amigos,
A obra Ecos Coloniais é um exercício coletivo, os investigadores debruçaram-se sobre espaços, atores, instituições e símbolos em Lisboa que revelam a diversidade de reverberações contemporâneas do nosso período imperial e colonial. Inequivocamente, a vastidão destas memórias espalha-se por arquivos, instituições bancárias, esculturas singulares ou em monumentos, museus, palácios, ruas, acervos naturalmente ligados à história do império e da vida colonial, como é o caso da Sociedade de Geografia de Lisboa. Como escreve o historiador Miguel Bandeira Jerónimo, "Pensar seriamente os legados contemporâneos do colonialismo e, em parte, interrogá-los de forma sustentada e multifacetada, implica estender o escrutínio histórico aos momentos posteriores à abolição". É o que aqui fazemos, de forma muito resumida, convidando o leitor mais interessado a debruçar-se na leitura integral desta obra.

Um abraço do
Mário


Império e colonialismo: reverberações na Lisboa atual - 4

Mário Beja Santos

Ecos Coloniais resulta de um exercício coletivo de investigação sobre o património histórico e cultural, aqui se interrogam instituições, entidades, monumentos, obras de arte, palácios onde se interseccionam a história colonial e imperial portuguesa, do passado ao presente, edição ilustrada com fotografias de Pedro Medeiros e o acervo de textos tem a coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto, edição Tinta-da-China 2022. Logo na introdução, os organizadores referem que este levantamento é uma obra consciente e que há muito por investigar e por saber, importa evitar generalidades e simplismos mobilizadores para escapar aos engenheiros e empreendedores da “história” e da “memória”.

A que propósito nesta viagem nos devemos deter diante do quadro “Os Pretos de Serpa Pinto”, de Miguel Ângelo Lupi? Lupi celebrizou-se na pintura de retrato e foi professor na Academia de Belas-Artes de Lisboa. Passou por Luanda entre 1851 e 1853, nesse período realizou um conjunto de desenhos a lápis, giz branco e aguada que representam costumes locais, paisagens ou monumentos que analisam a presença portuguesa no território. No seu livro Como eu atravessei África (1881), Serpa Pinto refere Catraio e Mariana, esta possivelmente mulher dele. Serpa Pinto deu incumbências de responsabilidade a Catraio. Analisando este quadro que ficou incompleto, vê-se que as figuras estabelecem um diálogo visual que exclui o observador; as roupas da figura feminina, os adornos e a cesta surgem como uma espécie de marcadores culturais que reverberam as ligações entre o europeu e o africano, veja-se a utilização de tecidos e colares de missangas como moeda de troca ou presente nos contactos com as sociedades africanas.

Escreve a autora deste texto que a leitura desta pintura convoca a presença do passado na atualidade, permite chamar a atenção, por exemplo, para a estátua do Padre António Vieira erguida em 2017 fronte da igreja de São Roque; neste caso concreto do quadro de Lupi, a presença de duas figuras negras no acervo do museu é uma raridade, mas este material artístico possibilita que a sociedade pode pensar-se a si própria no contexto da sua diversidade e do seu passado histórico.

Viajamos agora para o Palácio Nacional de Sintra, onde trabalharam pessoas escravizadas. No inventário de despesas das obras realizadas em 1784-1787 constam os serviços de 12 homens negros; no final do século XIX, ainda se encontram sinais da presença negra neste Palácio, nomeadamente nas cartas enviadas ao Administrador da Fazenda da Casa Real, onde se fala claramente do serviço de pretos. O sinal mais visível da presença negra é no chamado Jardim da Preta como escrevem as duas autoras, “As peças de vestuário sugerem tratar-se da representação de uma mulher do século XVIII dedicada aos serviços domésticos. Junto dela está a figura de um homem branco, provavelmente um pajem. As duas figuras são particularmente expressivas e encenam um dia a dia marcado pelas desigualdades étnico-raciais e de género, onde a exploração laboral e a violência sexual marcam o quotidiano das mulheres negras e estruturam todo um modo de vida.”

A última itinerância de hoje é até ao Palácio Vale Flor, um edifício que até em determinado momento foi pensado para sede do Conselho de Ministros. Este Palácio e o seu conjunto (as antigas cocheiras, o jardim murado e a chamada Casa do Lago, um pavilhão de estilo oriental) é hoje um hotel de luxo no Alto de Santo Amaro, em Lisboa. O Palácio foi mandado dirigir por José Luís Constantino Dias (1855-1932), um conhecido roceiro de São Tomé e Príncipe. De Murça emigrou para África, em 1871. Ao fim de alguns anos, adquiriu a roça de Bela Vista, quando já explorava a roça Rio de Ouro. Enriqueceu, criou a Sociedade Agrícola de Vale Flor, adquiriu património em Portugal; por via do casamento, privou com a realeza, D. Carlos atribuiu-lhe o título de Visconde, tornando-o Marquês de Vale Flor, em finais de 1907.

O edifício que teve projeto do arquiteto veneziano Nicola Bigaglia, foi obra acabada do arquiteto português José Ferreira da Costa, é hoje Monumento Nacional. Em vida, o Marquês criou a Fundação Vale Flor e a sua viúva criou o Instituto Marquês Vale Flor. O Marquês, observa o autor deste texto, não foi apenas um roceiro, foi também um ator central de uma das atividades mais rentáveis associada aos projetos de expansão e consolidação nacionais. E o autor refere que a primeira década do século XX marcada por intensas e repetidas acusações sobre a existência generalizada de escravatura moderna, citando-se o caso do cacau de São Tomé e Príncipe. A legalização do trabalho forçado sucedera à abolição formal do tráfico de escravos e da escravatura.

Houve internacionalmente boicote ao cacau de São Tomé, o Marquês foi o primeiro subscritor de um documento enviado em 1911 ao Ministro dos Negócios Estrangeiros português pelos “agricultores e outros interessados dos progressos das ilhas de São Tomé e Príncipe”. Aludiram estes subscritores à não veracidade das denúncias, houvera pequenos abusos e factos insignificantes, nada mais. Politicamente, ficou tudo na mesma, só se voltará a falar de São Tomé e Príncipe, em termos de brutalidade colonialista, aquando do massacre de Batepá, no início da década de 1950.

E finaliza o autor dizendo que “Escrutinar os sistemas e as sociedades escravocratas e as suas consequências não é o mesmo que interrogar as formações sociais que lhes sucederam, apesar de ser possível identificar inúmeras continuidades. Mas pensar seriamente os legados contemporâneos do colonialismo e, em parte, interrogá-los de forma sustentada e multifacetada, implica estender o escrutínio histórico aos momentos posteriores à abolição. As formas de dependência, desigualdade, exploração, marginalização e desumanização que lhe sucederam precisam de ser abordadas com o mesmo rigor, entre outras razões por que foram elas que propiciaram a formação histórica de algumas fortunas, a edificação do que é hoje considerado património cultural e histórico em Portugal e, sim, a reprodução de hierarquias sociais, económicas e políticas difíceis de combater, que resistem ao vagar da história, ainda que em circunstâncias diferentes”.

A viagem prossegue na Praça do Império, na rua do Poço dos Negros e na Sociedade de Geografia de Lisboa.

Retrato de Catraio e Mariana, conhecido por "Os pretos de Serpa Pinto", por Miguel Ângelo Lupi, c. 1879

“Excelente exemplar de uma atenção ao pitoresco que não fascinou Lupi, a avaliar pela quantidade de pinturas que realizou dentro do género, mas que aqui tem a particularidade de apresentar dois jovens angolanos, conhecidos por Catraio e Mariana, contratados por Serpa Pinto para o acompanharem na sua viagem de expedição científica à África Central, em 1879. Desempenharam um papel fundamental na concretização desta exploração geográfica, ao evidenciarem importantes cumplicidades, descritas no diário de Serpa Pinto, "Como atravessei África", publicado em 1881. O retrato, provavelmente encomendado por Serpa Pinto, encontrava-se no atelier do autor, em 1883, quando morreu.”

Esta citação foi retirada do site do Museu Nacional de Arte Contemporânea, com a devida vénia.
O explorador Serpa Pinto com alguns homens da sua confiança que o acompanharam do princípio ao fim
O chamado Jardim da Preta no Palácio Nacional de Sintra
Palácio Vale Flor

(continua)
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Notas do editor

Vd. post de 24 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27348: Notas de leitura (1855): "Ecos Coloniais", coordenação de Ana Guardião, Miguel Bandeira Jerónimo e Paulo Peixoto; edição Tinta-da-China 2022 (3) (Mário Beja Santos)

Último post da série de 27 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27357: Notas de leitura (1856): Escritos de médicos que viveram a guerra colonial (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27369: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (2): perante a hipótese Comandos, decido pelos Paraquedistas





Figura 1 > Estudo prévio para monumento em memória dos combatentes da guerra colonial (2005), Arq. Augusto Vasconcelos  (Fafe) (Fonte: Silva,  op. cit, 2025, pág. 7)




Capa do livro de  Jaime Bonifácio Marques da Silva, "Não esquecemos os jovens militares do concelho da Lourinhã mortos na guerra colonial" (Lourinhã: Câmara Municipal de Lourinhã, 2025, 235 pp., ISBN: 978-989-95787-9-1), 235 pp.



1. Com a devida vénia e autorização do autor, Jaime Bonifácio Marques da Silva (antigo alf mil pqdt, 1º CCP / BCP 21, Angola, 1970/72, conterrâneo do nosso editor LG; membro da Tabanca Tabanca desde 21/1/2024, com c. 120 referências no nosso blogue), passamos a criar uma nova série "
Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci..."

É natural de Seixal, Lourinhã. Foi condecorado com a medalha de Cruz de Guerra de 3* Classe. Foi professor de educação física e autarca em Fafe. Está reformado.

Segundo poste da série (que terá 15 postes, correspondentes a  excertos das pp. 75-98 do seu livro, Capítulo Dois).


Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... 

2. Perante a hipótese Comandos, decido pelos Paraquedistas

por Jaime Silva


Eu não esqueci esse verão de 1968 em que terminava um ciclo de formação, isolado do mundo real, em que me inculcaram valores da salvaguarda da vida humana e respeito pelos outros, nomeadamente: “não matarás”.

 Acabara de sair voluntariamente pela porta nova do Seminário de S. Paulo em Almada. Porém, poucos meses depois, a 8 de janeiro de 1969, com 22 anos, sou obrigado a transpor uma nova porta. Desta vez, a porta de armas da EPI (Escola Práticva de Infantaria, em Mafera) para iniciar o Curso de Oficiais Milicianos (COM) e, com um único objetivo: treinar para fazer a guerra!

Quando, a 28 de maio de 1969, termino o COM é-me atribuída a especialidade de Atirador de Infantaria e, ainda, para surpresa minha e, porque nunca me tinha oferecido para nada na tropa, o comandante da minha companhia me integra no grupo de cadetes selecionados para se apresentarem no CIOE (Centro de Instrução de Operações Especiais), em Lamego.

Fiquei siderado! Nunca me tinha oferecido para nada na tropa, nem tentado destacar-me na instrução, em coisa nenhuma!

Vim a saber (e a perceber), mais tarde, que esta era uma prática recorrente nos cursos de oficiais milicianos. Os comandos tinham, também, como método, para suprir a falta de voluntários necessários para comandar os seus grupos de combate, selecionar os cadetes durante os cursos de oficiais milicianos, como relata, por exemplo, José Luís Sousa:

“(…) foi a 30 de outubro de 1971 que embarquei com destino a Luanda para fazer o curso de comandos. Esta tinha sido especialidade que o capitão da Academia Militar e dos Comandos, chegado a Mafra com a missão de selecionar de entre os instrumentos do 1.º Ciclo, me atribuiu e forçou sem remissão a seguir. Já tinha reagido interiormente a fazer tropa em Mafra, mas bem mais o fazia agora por ser obrigado a ir para os comandos.

(…) Entre ir avulso para a Guiné, que diziam a ferro e fogo, e seguir para Luanda a frequentar o curso, empenhar-me ia por Angola. Comando seria se o desejasse”. (Sousa, 2021:10)


No meu caso aconteceu que, no final dessa última formatura, na parada do quartel em Mafra, um dos meus amigos, também selecionado, consegue demover cinco dos cadetes selecionados a rejeitar a ida para os Comandos, a favor da opção Paraquedistas, com o seguinte argumento:

– Nós já não conseguimos escapar à mobilização para a guerra, por isso, é melhor oferecermo-nos para os Paraquedistas.

Enumerou, a favor da opção Paraquedistas  um conjunto de fatores muito mais favoráveis em relação à nossa ida para os Comandos em Lamego: fins de semana à 6.ª feira depois do almoço; melhor salário, acrescido de um subsídio de risco de salto, no valor de 500$00 após o término do curso, etc. 

Mas, o principal argumento era o seguinte: como os paraquedistas pertenciam à Força Aérea, esse facto, permitiria que tivéssemos sempre o apoio dos helicópteros no transporte para as operações no mato, além de termos apoio imediato, nos momentos mais difíceis, nos combates mais duros e nas evacuações dos feridos e mortos. 

E rematou: 

– Além disso, ainda vamos ter o prazer de saltar da porta de um avião em andamento, o que é fantástico!.

Vim a concluir, mais tarde, durante o curso, que tinha razão!…

Durante a guerra, vim a apurar que o meu camarada Peralta, expulso da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, após as greves académicas de 1968, estava bem informado e tinha razão.

Na verdade, no início da minha Comissão, o soldado Santos, do meu pelotão, pisou uma mina antipessoal, numa das primeiras operações de combate que comandei no Norte de Angola, ficando com a perna esquerda completamente esfacelada. Menos de trinta minutos depois, já o tínhamos conseguido evacuar num helicóptero e salvou-se.

A mesma sorte não teve o meu primo Arsénio, soldado pertencente a uma companhia do exército, que, na mesma zona, pisou, também, uma mina. Foi ao fim da manhã (cerca das 13 horas) que se deu o acidente e só, às quatro da tarde, teve o helicóptero para o evacuar para o hospital, onde veio a morrer!

Foi para não irmos para Lamego que, em julho de 1969, um grupo de cinco cadetes, vindo da EPI, deu entrada no RCP (Regimento de Caçadores Paraquedistas), em Tancos, para iniciar, durante mais oito meses, um novo ciclo de instrução militar, sempre com um único objetivo: treinar para a guerra 

– Instrução dura, combate fácil – era o lema!

Depois de uma fase de adaptação à filosofia de atuação das tropas paraquedistas, iniciámos, no RCP, o 52º curso de paraquedismo, vindo a terminá-lo a 29 de agosto, sendo-me atribuído o Brevet nº 7343. 

A 8 de setembro, seguiu-se: o Estágio de Aperfeiçoamento de Combate para oficiais e sargentos milicianos, o Curso de Instrução de combate, a 29 de outubro, e o Estágio de Nomadização que terminou em janeiro de 1970.

Após, mais este longo ciclo, passados treze meses de instrução militar, em janeiro de 1970, sou nomeado para prestar serviço no Batalhão de Caçadores Paraquedistas BCP 21, por imposição de serviço. Fomos todos mobilizados para a guerra de África.

No dia 18 de fevereiro de 1970, pelas 10 horas, embarcámos, conjuntamente com três alferes milicianos (Rosinha, Vítor Marques e Martins) e um do quadro permanente  (Sousa, da Academia Militar). Embarcámos no Aeroporto Figo Maduro em Lisboa, num avião DC 6, da FA, rumo a Angola, em rendição individual. Aterrámos na Base Aérea nº3, em Luanda, às 9 horas do dia seguinte. A partir desta data, “passámos a contar” 100% de aumento do tempo de serviço.

(Continua)

(Revisão / fixação de texto: LG)
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Nota do autor 

(#) Sousa, José Luís Costa -  Não à Guerra! Ser coamndo não quero. (Ed. autor, 2021)

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Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 29 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27363: Quem foi obrigado a fazer a guerra, não a esquece: eu não esqueci... (Jaime Silva, ex-alf mil pqdt, BCP 21,Angola, 1970/72) (1): A minha (im)possibilidade de desertar

Guiné 61/74 - P27368: S(C)em Comentários (81): O gen António Spínola e o major cav Carlos Azeredo que eu conheci, em julho de 1968, depois do ataque a Contabane (José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, "Os Maiorais" , Buba, Aldeia Formosa, Mampatá, Empada, 1968/70)


1. Comentário de José Teixeira, ex-1º cabo aux enf, CCAÇ 2381, "Os Maiorais" ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) (*)



Em Julho de 1968, uns dias depois da minha CCAÇ 2381 chegar a Aldeia Formosa, o major cav Carlos Azeredo (comandante do COSAF/COP 1)  apareceu no refeitório à hora do almoço, pediu silêncio e deu a seguinte ordem: 

"Logo, às 17,30 quero toda a gente deitada junto à paliçada, (não havia valas, havia pequenos morros, se não me engano e uma paliçada em cana de bambu num dos lados das casernas). Não quero ver ninguém fora desse local! É uma ordem."

Estava lá a CCAÇ 2381 e a Companhia  dos Lenços Azuis, do Capitão Rei, a CCAÇ 1792 / BCAÇ 1933.

Âs 17.30 começou a ouvir-se, ao longe, as saídas dos morteiros e os rebentamentos, também ao longe.com grandes interregnos e sem resposta de nossa parte, se bem me lembro.

Manteve-se até às duas da madrugada, segundo me disseram. Em pelas 23 horas fui dormir.

No dia seguinte logo de manhã apareceu o Spínola no Hélio. De pingalim e monóculo, pôs- se a ouvir o Carlos Azeredo. Este apontava os locais de saída das canhoadas do lado da fronteira de Conacri e local onde foram rebentando, sem nos afetar, nem á população.

Eu estava por perto, de bata branca, a ouvir a conversa e em dada altura o Spínola disse: 

"Carlos nunca te lembraste de mandar para ali (apontando com o dedo) umas obusadas?"

Na noite seguinte, os obuses 14mm trabalharam bem e na manhã seguinte doeu-me ver o carreirinho de gente (mulheres e crianças) com alguns tarecos à cabeça que se vinham acolher junto de familiares (suponho eu) em a
Aldeia Formosa.

Com isto quero dizer que o Spínola sabia que o Carlos Azeredo estava a mandar cumprimentos aos vizinhos da outra banda.

No dia anterior da parte da manhã, o major Azeredo foi dar um passeio pela Tabanca, como era seu hábito, e comentava-se (pelos velhinhos) que ia visitar (e conversar com ) o Tcherno Rachid.

Um abraço
José Teixeira


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Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 28 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27360: (Ex)citações (439): Ainda a propósito dos bravos de Contabane... "O maluco do Carlos Azeredo está a bombardear a Guiné-Conacry", dizia, em pânico, o QG... (Carlos Nery, ex-cap mil, CCAÇ 2382, 1968/70)

(**) Últ6imo poste da série > 26 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27353: S(C)em Comentários (80): o "Toca-choro" entre os mancanhas de Bula e Có

Guiné 61/74 - P27367: Manuscrito(s) (Luís Graça) (276): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara, pseudónimo literário de José António Bóia Paradela (1937-2023), ilhavense, urbanista, arquiteto e escritor - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"




Capa do livro "A Rua Suspensa dos Olhos" de Ábio de Lápara (edição de autor,  José A. Paradela, Aveiro, 2015, 164 pp.) (*)...

Ábio de Lápara é o pseudónimo literário de José António Bóia  Paradela.  Imagens: arquivo de LG + Matilde Henriques 


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Zé António, meu mano:  hoje seria dia dos teus anos.  30 de outuro de 2025. Aliás, é dia dos teus anos. Oitenta e oito.  Um número redondo, uma capicua.  Em boa verdade, não morreste.  Deixaste apenas de aparecer, lá na nossa casa, como nos dias de cozido à portuguesa, feito pela "chef" Alice. Como tu adoravas o caldinho do cozido, a fumegar, já ao fim da tarde dos nossos sábados de eternidade,  com o saborzinho e o cheirinho da hortelã!

Foste-te embora, não encerraste a tua conta do Facebook. E a PAL -Planeamento e Arquitetura Lda, continua de porta aberta. O teu gabinete, a tua torre que não era de marfim. Eras um homem, cidadão, português, ilhavense, escritor, urbanista e arquiteto, profundamente ligado à terra (e ao mar).  Nunca foste ilha, mas arquipélago. Todos os que te ama(va)m continuam a "falar" contigo. Na esperança de que tu nos oiças. Falamos de ti entre nós. Que é também a nossa maneira de "falar" contigo. 

Ainda hoje, ao fim da tarde (os dias agora são mais curtos com o raio da hora de inverno), estivemos, eu, a Alice, a tua Matilde e o teu Jorge, a matar a nossa saudade de ti, à volta de um pastel de nata e de uma bica. Só faltou o "almirante", que anda lá pelo Mar do Norte, no seu porta-contentores, com esta invernia. Virá cá pelo Natal. Para ver a tua neta, que está cada vez mais linda. Ah!, vais ter outra neta (ou neto). Parabéns!... Eu também já tenho duas netas, é bom, dão-nos a ilusão de eternidade.

E, depois, continuas a ter, aqui, um lugar sob o poilão da Tabanca Grande. Foste marinheiro. Nunca foste à Guiné. Mas fizeste a tua tropa, a tua guerra. Foste à Terra Nova. Também foste "periquito", aliás "verde". Aos 17 anos, no teu dóri, nos bancos de pesca da Terra Nova. Na frota branca, a bacalhoeira (*). E também estiveste na marinha de guerra. Darias sempre um "mau infante" como eu.

Hoje ergo a taça, bebendo simbolicamente à tua memória, que continua viva, presente e quente entre os teus (família e amigos).

Lembrei-me dos teus livros. E deu-me uma saudade danada de reler a tua Rua Suspensa dos Olhos (**), que foi a rua da tua infância, em Alqueidão, Ílhavo. Nunca lá fui, a Alqueidão, que pena, tendo-te a ti como cicerone.  Perdi essa oportunidade única. Mas, pelo que me dizias, a tua rua já não existia. As ruas da nossa infància, quando crescemos ou mudamos de rua, de cidade, de país, deixam de existir.  As ruas da nossa infància morrem connosco  se não passarmos para o papel ou para o computador as nossas memórias. Ainda bem que o fizeste. São as tuas geografias emocionais. Mas também não  precisei de ir lá, à tua antiga rua da infância, bastou-me ler o teu livro. 

Todos temos, tivemos,  uma rua da  infância. Imagino que o teu Alqueidão era o da gente humilde, que nasceu com o ADN do mar por brasão. Quando eu te visitava, em agosto, a caminho de Candoz,  era na burguesa Costa Nova. Conheço mal a tua Ílhavo. A última vez que lá estive foi no dia da tua despedida da Terra da Alegria.

O jornalista Viriato Teles, também ele ilhavense, que fez em 2015 a apresentação do teu livro, na terra de ambos, sessão que eu perdi por qualquer razão de agenda, escreveu então o seguinte, sob o título "Os olhos da nossa infància" (excertos reproduzidos aqui com a devida vénia):

(...) Eu não conheci 'A Rua Suspensa dos Olhos',  tal e qual ela como nos é contada neste livro. Nasci uns anitos depois do Zé António, e do Ábio, e por isso já não vi o empedrado nem os poiais em frente das casas de Alqueidão. 

Mas o lugar onde brincou o Zé António é o mesmo onde, anos depois, eu passei muitos dos meus dias — e sobretudo das minhas noites — da adolescência. Pela simples razão de que era em Alqueidão que moravam alguns dos meus melhores amigos, e isso fazia de mim um passeante regular da rua.

Além disso, Alqueidão desembocava no esteiro da Malhada, que nessa altura era o melhor lugar do mundo (...)

(...) E muito daquilo que se passava na Rua Suspensa dos Olhos,  do Ábio de Lápara, passava-se de modo semelhante na Rua da Capela da minha infância. Além de que — e essa é seguramente outra semelhança que existe entre nós — no meu tempo como no dele, a infância vivia-se muito na rua e a partir da rua. Paradoxalmente, nessa época em que a liberdade era, em Portugal, um anseio longínquo e difícil de concretizar, a vida dos miúdos como nós era muito mais livre do que foi a dos nossos filhos.

A rua era o nosso pátio, a nossa casa, o nosso mundo. E a nossa escola, também. (...)

(...) Naqueles tempos em que as crianças vinham da Feira dos Treze pela mão da Dona Alicinha (que "não tinha filhos pois os dava a toda a gente" e que nos ajudou a ambos a vir ao mundo), Ílhavo era muito diferente do que é hoje. 

Nas nossas infâncias, Ílhavo era uma vila, ainda essencialmente ligada ao mar e à pesca longínqua da Terra Nova, e isso modelou inevitavelmente a nossa forma de estar e de sentir: aquele modo de ser meio agreste que nos caracteriza e que se revela nos jeitos e nos trejeitos, no linguajar, na maneira como falamos uns com os outros — e uns dos outros, também.

Não me custa dar razão a quem nos define como sendo uma gente pouco dada a cortesias: afinal, a 'alma ilhavense' moldou-se nos mares do fim do mundo, em meses de solidão e frio glacial, onde pairava sempre o sopro da morte, à espreita em cada vaga. Isto no que aos homens diz respeito. Quanto às mulheres, forçadas a assumir o comando da vida em terra, desenvolveram um forte sentido matriarcal — que se mantém, para o bem e para o mal. (...)

Recordo aqui o que te escrevi e disse, na na minha oração fúnebre, em 23 de fevereiro de 2023, na igreja matriz de Ílhavo:

(...) Ah!, quanto humanidade, ternura, inocência, traquinice, generosidade e poesia havia na tua rua suspensa dos olhos...

Ilhéu, lhavense, filho da terra e do mar, evocas e descreves com enorme ternura e talento a rua onde nasceste e cresceste. E das figuras humanas que marcaram a tua memória e o teu imaginário, não posso deixar de citar o teu pai, marinheiro aos 12 anos, figura de referência na tua vida, sempre ausente e sempre presente, e que gostava de dizer: “O mundo todo não vale o meu lar”…

Tendo tu sido criado no matriarcado, cercado de mulheres e dos seus fantasmas e das suas recordações, fizeste, no entanto, da figura do teu pai a mais bela evocação na tua narrativa ilhavense: “Estávamos todos em casa, isto é, ele não estava no mar, que é como quem diz, sabe-se lá onde”… (...)


LG | Alfragide, 30 de outubro de 2025, 23.00





Excertos de "A Rua Suspensa dos Olhos" - Parte I: "Rua das Manhãs, a morte levou tudo o que eu amava"

por Ábio de Lápara / José António Paradela 
(1937-2023)



Rua das Manhãs
A morte sabia
quem ali morava...
Rua das Manhãs
a morte levou
tudo o que eu amava...


Raul de Carvalho (1920-1984)


(...) Eu, criatura inventada à imagem e semelhança de Deus, fui fabricado em Campo de Ourique. Era o que dizia a minha mãe, casada com um marinheiro nos idos de 35.

Como cada um fica indelevelmente marcado pelo tempo e pelo espaço onde foi concebido, dizem, tive de aceitar logo,  nesse transe, o maldito signo do Escorpião.

Do mesmo modo, assente o sítio da batalha cujo nome, apesar da discórdia, ainda hoje é considerado o locus onde a divindade assinalou o desígnio nacional, o meu brasão só poderia ser o das cinco chagas, para os mais religiosos, ou dos cinco castelos mouros para os mais dados às coisas da guerra.

Isso acarretou alguns amargos de boca no meio familiar, onde um avô republicano casou em primeiras núpcias com uma prima católica, que passou a ser minha avó. E assim tive de herdar, ainda antes de nascer, o nome dele e o carinho extremoso dela.

Um pouco mais tarde, fizeram-me constar que fui comprado na Feira dos Treze, ali na Vista Alegre, sempre perseguido por simbolismos estranhos, e levado para a rua de Alqueidão pela mão de uma Alice que vivia do outro lado do espelho. Não tinha filhos pois que os dava a toda a gente, e ficou conhecida pelo carinhoso diminutivo de Alicinha como nas estórias de duendes e feiticeiras, já que as suas mãos exsudavam milagres em cada parto.

Terá sido este o meu caso, pois as primeiras recordações de que disponho, dão comigo a viver já nessa rua fantástica, tal como vou descrever.  (...)

***

(...) A minha casa tinha porta para ela, que nesse tempo era empedrada com calhau rolado de média dimensão, digamos... do tamanho de padas de Vale d' Ílhavo, que geravam um ruído forte sob os rodados metálicos das carroças de bois e torciam os pés às mulheres que usavam tamancos.

Para ser breve, direi que tirando as casas, de tudo o que hoje lá está, nada existia. Pois é! Pensem no que quiserem... Nada disso existia! Em contrapartida, existiam longos poiais na frente das casas que serviam de bancos onde se sentava a vasta comunidade lá da rua.

Ali, as crianças brincavam, as mulheres ratavam nos casacos de quem passava e os velhos enrolavam cigarros de tabaco desfiado que acendiam nas beatas uns dos outros.

E o que se passava durante o dia, se repetia à noite quando o tempo estava ameno, sob a luz soturna de uma lâmpada eléctrica, adorada pelos morcegos, existente num poste metálico junto à loja do ti Tomé Pascoal !

Aí vivi durante os anos da minha tenra infância e alguns da juventude.

Digamos que era uma rua divertida onde não se vislumbrava nenhuma crise de natalidade, talvez porque a Feira dos Treze ficasse a curta distância e as crianças fossem baratas, ou porque a fome tocasse igualmente a todos quer fossem poucos quer fossem muitos e por isso, nascer era relativamente indiferente.

A verdade é que não faltavam amigos para brincar nem escaramuças entre as mães para nos divertirmos. Os pais, - semente intermitente - como habitualmente, estavam ausentes no mar, muito longe, bem perto das latitudes polares. (...)

***

(...) Os Cagulas eram quatro ou cinco filhos de um cabo do exército, homem aprumado, de frágil figura e aguçado bigode, envergando farda de caqui e capote de burel cinzento. Um justo bivaque, ligeiramente descaído sobre o lado esquerdo, deixava entrever uma madeixa negra encaracolada.

Recordo-o entrando no beco, a cumprimentar os vizinhos com um gesto militar, elevando a mão direita até à orelha do mesmo lado, sem lhes dirigir muitas palavras.

Um militar de pequena patente não ganhava para ter uma família tão grande! Assim, para matar a fome aos filhos, distribuía-lhes uma tarefa ao longo dos dias da semana: dois a dois, cajado e lata ferrugenta na mão, palmilhavam a pé os cinco quilómetros que separavam a sua casa do quartel, em Aveiro, de onde regressavam com ela enfiada no cajado, plena de sopa de feijão com massa e alguns gorgulhos flutuantes.

Acontece que por ironia do meu fraco apetite, adorava aquela sopa! Assim a minha mãe via-se obrigada a promover trocas para satisfazer o meu desejo que, no fim de contas, mais não era do que o prazer de comer na companhia daqueles amigos cujas estórias e aventuras me fascinavam.

Como a sopa já chegava fria, por vezes o prodígio consistia em fazer lume na sua lareira rasa, numa cozinha onde nem sempre existiam fósforos. Então era necessário pedir uma brasa a algum vizinho e, a partir dela, soprar até pegar o fogo à lenha ainda verde, colhida no mato! Lentamente, o lume ia crescendo sob a lata pendurada de um gancho de ferro na chaminé, e o cheiro que exalava ia aumentando a saliva nas nossas bocas: um manjar!

Na penumbra daquele espaço, as estórias tinham já uma aura de mistério ou de terror, associado à luz bruxuleante e ao fumo do pinho verde e cheiroso. E lá vinham os latidos nocturnos dos cães, supostos lobisomens, e as gigantescas gibóias de fatal abraço, vencidas por um pau afiado em ambas as extremidades, seguro pela mão forte do João Cagula, que depois me explicava como ganhava dinheiro com a gordura extraída, para fabricar o unguento que se vendia na Feira dos Treze! A banha de cobra, que curava sarnas, pruridos, eczemas e muitas coisas mais! (...)

***

(... ) Por esse tempo, ao fundo da rua, residiu intermitente, uma das mais divertidas figuras que a Rua Suspensa dos Olhos teve durante anos, inflamando a imaginação dos olhos acabados de nascer: o Ramon.

Loiro, ultra-penteado com azeite, garboso de faena acabada, montava um burro do seu clã, rua acima , desde o pequeno terreiro junto à fonte dos Bastos - a que os folcloristas da outra rua chamaram em tempos Fonte dos Amores, sem que lá tenham amado - até ao Largo da Senhora, que na outra rua tinha um nome já apagado, na tabuleta oval, de esmalte antigo.

Aí, os olhos vivos, sedentos de estranheza, o inquiriam sobre a vida dos ciganos e se deliciavam com o prodígio que era poder ser loiro e simultaneamente cigano, viver numa tenda de pano sujo e ser dono de um transporte individual de quatro patas.

E, para além do mais, ser feliz nas amizades que se prolongavam no tempo - embora interrompidas pela transumância - e nos permitiam cavalgadas heróicas no lombo despido daquele burro!

Porque na outra rua, os ciganos só podiam ser morenos, vendiam cestos, liam a sina nas mãos das solteironas e, por sua causa, era necessário montar vigilância nos quintais... Se isto não é um prodígio, digam-me lá onde é que eles existem! (...)

***

(...) Muitos donos de olhos atrás citados são personagens de estórias pessoais coladas na rua suspensa, evitando a sua queda. Mas o mais importante para o equilíbrio interno de todos eles, era o grupo que permitia aferir a certeza dos seus juízos: o grupo dos loucos daquela rua.

Ficam estes para outra ocasião, porque levam algum tempo a exumar. Os seus nomes são eternos porque estão sentados á direita do Altíssimo: Chiquinho Maneta,  o Ester, Chico Rádio, António Espiga...

Contudo, lembrei-me agora de outro personagem importante lá da rua, figura indesculpavelmente esquecida.

Era um homem de estatura muito pequena, ligeiramente encurvado e com uma perna mais curta que lhe acentuava aquele defeito quando se deslocava. Andava sempre com uma caixa de madeira suspensa do ombro por uma correia de couro, onde transportava os instrumentos do seu ofício.

Chamavam-lhe Manéuzinho Fazenda, e percorria a rua de uma ponta à outra cortando cabelos e escanhoando faces barbudas.

Barbeiro ambulante, utilizava os restantes atafais dos clientes para proceder à depilatória função.

Tive a pouca sorte de o ter como barbeiro nos primeiros tempos da vida. Era nosso vizinho e uma criatura muito afável, mas cheirava a aguardente e a tabaco de séculos anteriores.

As ferramentas de que dispunha há muito que deviam ter sido reformadas! A máquina de cortar tinha falta de dentes e arrepanhava-me o cabelo, já de si finíssimo como seda, cujo eriçado destruía os pentes à minha mãe e o meu couro cabeludo no esforço do puxão.

Mas o pior de tudo era a navalha de barbear para rapar o pelo sobrante da nuca! Os meus lancinantes gritos não paravam, apesar das constantes tentativas que ele fazia para afiar e assentar o fio da lâmina maldita!

E culminavam quando ele perguntava à minha mãe:

 
  Oh Rosinha, tens álcool para lhe desinfectar o pescoço?

Durante anos pedi a Deus, nas minhas rezas nocturnas, um milagre que me libertasse dele. Sendo Deus, já nesse tempo, bastante velho e surdo, esse prodígio só aconteceu mais tarde, quando o meu pai me encomendou ao senhor Leopoldo, barbeiro com ferramentas de outra afinação, barbearia selecta, bem no coração da vila.

Colocado um pequeno assento sobre a cadeira dos adultos, ali me sentava eu, embrulhado numa enorme toalha branca apertada no pescoço, frente ao espelho que me ia devolvendo as imagens de capitães já barbeados, que prolongavam as conversas atrás da minha cadeira, discutindo assuntos de barcos e mares encapelados, quando não dizendo mal do perfume ou do cheiro a mofo da toalha com que Leopoldo lhes secara a cara... E esse gozo prolongava-se pela manhã e pela tarde, à medida que saíam uns e entravam outros. (..:)

Fonte: Excertos do manuscrito , em pdf, de "A Rua Suspensa dos Olhos",  de Ábio de Lápara, que ajudei a rever em 2015, antes da execução gráfica. Recorri de momento ao manuscrito por não aqui à mão um exemplar do livro em papel.

(Revisão / fixação de texto, negritos: LG)

_______________________

Notas do editor LG:

(*) Vd. postes de;


30 de dezembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15554: Notas de leitura (792): "A Rua Suspensa dos Olhos", de Ábio de Lápara (pseudónimo literário de José A. Paradela): reprodução do capítulo 7 com a descrição da viagem de seis meses, aos 17 anos, em 1955, aos bancos de pesca do bacalhau: III (e última) parte

(**) Último poste da série  > 11 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho

quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27366: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - VI (e última) Parte: Depois de Sangonhá, Cacoca (em 24 de junho de 1964)...A 2 de julho, emboscada em Cumbijã com duas minas, uma autiometralhadora e um granadeiro destruídos, 2 mortos, 3 feridos graves... O fim da comissão.



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Guiné > Zona Sul >  Região de Tombali > Setor de Cacine > Cacoca > CART 1692 (1968/69) > " Um dos nossos condutores, o António Andrade Júnior, que, por opção, 'viviam' em Cameconde. O outro era o Alcides Pereira de Lima (Unimog 404), de quem não sabemos nada".

A CART 640, a que se refere o monumento, foi mobilizada pelo RAP 2, partiu para o TO da Guiné em 25/2/1964 e regressou em 27/1/66. Passou por Bissau, Farim, Sangonha, Cacoca e Bissau. Comandante(s): Cap art Carlos Alberto Matos Gueifão; e cap art José Eduardo Martinho Garcia Leandro.

A ocupação de Cacoca e o início da instalação das NT datam de 24/6/1964. 

Foto (e legenda): © António J. Pereira da Costa (2013). Todos os direitos reservados [Edição e legtendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Sangonhá, a sul de Gadamael-Porto > c. 1967/68 > Vista aérea do destacamento, "uma espécie de fortim do faroeste", com um heliporto, uma pista de aviação, barracões e três poilões...  Um sítio desolador...

Na altura estava a chegar uma coluna militar [lado esquerdo]. Foto, provavelmente tirada de uma aeronave DO 27, de autor desconhecido. Proveniência: Álbum fotográfico Guiledje Virtual. Cortesia do nosso saudoso amigo Pepito (1949-2014), cofundador e líder da AD - Acção para o Desenvolvimento (Bissau) até à data da sua morte (em Lisboa). Foto, entretanto, modificada por LG.


Foto (e legenda): © Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados (2007)  




Guiné > Mapa da província >  Escala 1/500 mil (1961) > Detalhe: Posição relativa de Sangonhá e Cacoca, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, a sudeste. Estes dois destacamentos e tabancas foram abandonados pela CCAÇ 1621 em 29/7/1968

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)


1. O Armando Fonserca, de alcunha o "Alenquer", ex-soldado cond cav, Pel Rec Fox 42 (1962/64), foi dos primeiros militares de cavalaria a chegar à Guiné, quando "oficialmente" ainda não havia guerra. 

Para a nossa historiografia militar, para a CECA - Comissão de Estudo das Campanhas de África, e para a "hagiografia" do PAIGC, a guerra só começa... em 23/1/1963, em Tite; mas não para nós, aqui no blogue,  em 1961 e 1962 já havia  guerra, uma guerra surda e suja, de um lado e do outro, se bem que não haja registo de mortos, entre as NT, nos anos de 1961 e 1962, segundo a CECA. O primeiro comandante do PAIGC a morrer, apanahdo numa "rusga" militar, foi o Vitorino Costa, em meados de 1962.

O Armandino Fonseca teve uma comissão de serviço relativamente tranquila desde que chegou a Bissau, em 28/5/1962, até setembro de 1963...

Permaneceu em Bissau mais de um ano até finais de agosto de 1963, fazendo segurança à cidade e ao aeroporto em Bissalanca. No início de setembro de 1963 até jullho de 1964, vai percorrendo uma boa parte da Guiné. E conhecendo a guerra, pura e dura. Descobre o inimigo mais temido da sua autometralhadora Fox, a mina anticarro.

Ajuda a ocupar e a construir os primeiros aquartelamentos na zona de fronteira, a sudeste, importante corredor de infiltração do PAIGC: Guileje, Ganturé, Sangonhá, Cacoca...

A sua narrativa acaba aqui (*), Já não nos dá pormenores sobre a ocupação e o início da construção do aquartelamento de Cacoca, em 24 de junho de 1964. Em 2/7/1964, o Pel Rec Fox 42, praticamente na véspera do seu regresso à Metrópole, sofre o seu mais duro revés, no Cumbijã (ação IN também não referida no livro da CECA, 2014, na parte respeitante a atividade operacional do ano de 1964).

Eis aqui o relato do "Alenquer" (que vive na Amadora, desde 1965, mas de quem não temos tido notícias mais recentemente):

 
(..) "Seguiram-se os destacamentos de Sangonhá e Cacoca e até aqui embora tenham havido várias emboscadas, e tenham sido descobertas várias minas anticarro, do meu pelotão só eu tinha sido ferido na cara por duas vezes, sempre coisa de pouca gravidade. 

No dia 2 de julho de 1964 foi montada pelo inimigo uma emboscada, onde rebentaram duas minas destruindo por completo uma autometralhadora e um granadeiro, matando dois camaradas nossos e ferindo com muita gravidade mais três, os quais levaram algum tempo para reconstruir os órgãos afectados e ainda hoje sofrem dessas maleitas.

A partir desta data nós ficamos totalmente desanimados e já não fizemos mais nada, até porque já tínhamos ultrapassado o tempo previsto para a nossa comissão. 

Regressámos então para Bissau numa lancha da marinha a fim de aguardar o regresso que teve lugar no dia 21 no Paquete Índia, chegando a Lisboa a 30 de julho.

À chegada esperavam-me os meus familiares que me receberam com toda a alegria e eu mais alegre estava porque em determinadas alturas pensava que já não regressava para os tornar a ver.

Nesse dia não pude seguir com eles visto que ainda tive que ir a Castelo Branco fazer o espólio dos fardamentos que trazia e receber as guias que permitiam passar à vida civil e só no dia 30 regressei.

Nesse dia tinha então todos os meus familiares e amigos à minha espera e começou aí uma nova vida". (...)



Guiné > Bissau > Cemitério Municipal > Talhão dos Combatentes Portugueses > s/d > 

Fonte: CECA (2001)


Os dois camaradas nossos, do Pel Rec Fox 42, terão sido os dois primeiros militares  de unidades de específicias de cavalaria (EREC / Pel Rec),  a morrer no CTIG, em 2/7/1964, no Cumbijã. 

Os seus corpos tiveram destinos diferentes, devido provavelmenmte à condição socioeconómica das respetivas famílias:

  • o 1º cabo AM Panhard Vitorino António Costa, natural de Monchique, ficou inumado no cemitério de Bissau, no talhão dos antigos combatentes portugueses, campa nº 956,
  • o sold AM Panhard José Carlos Firme Pires, natural de Lisboa, foi inumado no cemitério de Dois Portos, Torres Vedras.

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 8.º Volume; Mortos em Campanha; Tomo II; Guiné; Livro I; 1.ª Edição; Lisboa (2001), pp. 65/66.


No final de 1964, o CTIG dispunha já de um total estimado de 15150 militares ( incluindo tropas do recrutamento local):  eram 9650 em 1963 e serão  já 17100 em 1965. O número de mortos já ascendiam a 129 (em 1964) (contra 51 no ano anterior).

Fonte: Excertos de: Estado-Maior do Exército; Comissão para o Estudo das Campanhas de África (1961-1974). Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África; 6.º Volume; Aspectos da Actividade Operacional; Tomo II; Guiné; Livro III; 1.ª Edição; Lisboa (2015), pp. 359.



Guiné > Regão de Tombali > c. agosto de 1968 > Sangonhá destruída. Aqui está a prova do que restou de Sangonhá. Esta foto tem Direitos de Autor. Foi tirada com uma CANON

Foto (e legenda): © Mário Gspar (2015). Todos os direitos reservados (Edição:: L.G.).






Guiné > Carta da província >  Escala 1/500 mil (1961) > Detalhe: Posição relativa de Sangonhá,  Cacoca e Cameconde, junto à fronteira com a Guiné-Conacri, a sudeste.  

Infogravura: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2015)

Guiné 61/74 - P27365: Humor de caserna (218): Análise interpretativa da história de Fernandino Vigário, "O jovem alferes graduado capelão, cheio de sangue na guelra, que queria ensinar o padre nosso ao...Vigário"



Cartoon: adaptação e edição por Chat Português (GPT-5 Thinking mini). Disponível em https://gptonline.ai/. Imagem original: Fernandino Vigário  / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné  (2012)



1. Análise interpretativa da história “Um Alferes Capelão que queria ensinar o Padre Nosso... ao Vigário”, da autoria de Fernandino Vigário (*)

A narrativa do Fernandino Vigário, membro da nossa Tabancas Grande, insere-se num contexto histórico e cultural muito particular,  a Guerra Colonial Portuguesa, mais concretamente na então Guiné Portuguesa, no primeiro semestre de 1969. 

Apesar de decorrer num cenário de guerra (embora nos arredores de Bissau, na época uma zona  relativamente tranquilam a caminho de Safim, onde o capelão ia dizer a missa dominical),    o tom da história é ligeiro e humorístico, integrando-se, de acordo com o editor LG, na série “Humor de caserna”, género em que o quotidiano militar é visto com ironia, brejeirice e humanidade. 

Afinal, o humor ajuda a "climatizar os pesadelos". E até o absurdo das situações-limite, como o universo concentracionário dos quartéis, o isolamento no mato,  a guerra, a violência, a brutalidade, a morte.


(i) Contexto histórico e humano

Trata-se de uma pequena história do quotidiano de um soldado condutor,  onde apesar de tudo a guerra (operações, patrulhamentos, emboscadas, minas, etc.) fica entre parênteses. 

Era um quotidiano onde  havia também  lugar para  momentos de descontração,  convivência, "desopilanço", enfim,   episódios banais que serviam para aliviar o peso da guerra e a claustrofobia do arame farpado. Bissau  era um oásis de paz para quem vinha do mato... Chamavam-lhe, justa ou injustamente, a "guerra do ar condicionado", o "bem-bom"...

O protagonista, Fernandino Vigário, é um soldado condutor auto, da CCS / BCAÇ 1911 (1967/69),  conduz um jipe, enfim, uma função que o coloca frequentemente em contacto com figuras da hierarquia, como o alferes capelão (ou alferes graduado capelão), responsável por prestar assistência religiosa às tropas. 

Está em fim de comissão, à espera de regresayr à Metrópole (o que aconteceria em finais de maio de 1969, segundo informação do editor LG). É, portanto, um veterano, um "velhinho", em contraste com o capelão que, tudo o indica, é um "periquito", acabado de chegar da metrópole, e ainda desambientado. Ou seja, "não apanhado do clima".

O relato é uma memória pessoal, contada muitos anos depois (mais de 40), num tom simples, oral, quase confessional, revelando a vontade do autor de preservar a autenticidade da experiência vivida. 

Ele próprio reconhece que não escreve para acusar ou diabolizar ninguém,  nem para exaltar ou santificar, mas apenas para deixar um registo humano e bem-disposto. Tinha algumas dúvidas se devia / podia ou não ser publicado no blogue (não fosse interpretá-lo mal, os leitores, seus antigos camaradas).


(ii) O humor e a ironia

O cerne da história reside no contraste irónico entre o papel religioso do capelão e o seu comportamento, digamos,  “mundano”. 

O “jovem alferes capelão”, “cheio de sangue na guelra”, deixa transparecer a sua juventude e impulsos humanos,  elogiando de maneira desabrida,  para não  dizer  algo machista ou marialva (que era a cultura dominante na "caserna"),  mulheres cabo-verdianas, que passam na estrada. O vigor ou  entusiasmo com que o faz, choca o soldado Vigário, habituado a ver o clero com respeito, reverência, distância e reserva moral.

Há aqui uma dupla camada humorística:

  • por um lado, o apelido do soldado (“Vigário”) presta-se ao trocadilho, ao jogo de palavras com o termo eclesiástico (“vigário” = padre);
  • por outro, o próprio título, muito bem escolhido pelo autor (“Um Alferes Capelão que queria ensinar o Padre Nosso... ao Vigário")  é uma inversão cómica e simbólica: o padre que quer ensinar o “Padre-Nosso” a alguém chamado Vigário,  é, no fundo, o que menos parece cumprir o papel do “pastor" ou "guardião da doutrina e da moral".

Este jogo linguístico é típico do humor popular português, fundado na ironia, brejeirice e  irreverência, sem ultrapassar o limite do respeito, nem extravasar para a boçalidade.

(iii) O  retrato do capelão e a dimensão moral

Apesar do tom jocoso, ou até pícaro,  há uma dimensão moral implícita. O narrador não pretende “denegrir” a Igreja Católica, Apostólica Romana (com a qual de resto se identifica), como faz questão de sublinhar no "post scriptum" (PS).  Pelo contrário , parece querer humanizar e até desculpar  a figura ou as "bocas foleiras" do capelão (afinal "bastante jovem, devia ter a minha idade ou pouco mais").

 Em traços muito breves, mostra-nos um padre jovem, impulsivo e até mesmo algo ingénuo, que de algum modo quer "acamaradar" e "ser cúmplice" com o soldado que o conduz no jipe, utilizando a linguagem de caserna, para se pôr ao seu nível, talvez de maneira tosca e contraproducente. 

O paradoxo da situação é que o condutor está a levar o capelão, num domingo de manhã, até ao próximo quartel, Safim, onde irá dizer missa,  o "santo sacrifício da missa".  A viagem, relativamente curta (cerca de 20 km) deveria ser de recolhimento e contenção verbal, no entender do narrador.

O autor, Fernandino Vigário,  revela que, mesmo no contexto militar e religioso, as pessoas são falíveis, influenciáveis, permeáveis às tentações  do mundo, expostas à vida que gira à sua volta. Mais: são capazes de transgressão, ou muito simplesmente de "brincar com coisas sérias"... E, para mais, em África, em que todos os sentidos estão  à flor da pele, face a exuberância de cores, formas (a começar pelo corpo feminino), cheiros, sabores, ruídos, etc.

A reação do soldado é reveladora do seu carácter ponderado, respeitador, crente, senáo memso conservador: ele sente o desconforto da situação e do diálogo com o seu superior hierárquico,  mas não confronta o capelão que tem galões de alferes e que o pode teoricamente  "punir" (disciplinarmente falando)... Pelo contrário, responde-lhe com modéstia, ironia e diplomacia, mostrando-se fiel à hierarquia e à ética. 

É esse contraste, entre o alferes capelão, irreverente, "desbocado", e o soldado sereno, educado e contido, que sustenta a comicidade e o significado moral da narrativa.  Afinal, ele é que é o "Vigário" ( de apelido),  o que surpreende o capelão que, em tom brusco e deselegante, o interpela: " Vigário ou vigarista?!"...

(iv) Estilo e tom narrativo


A linguagem é coloquial, direta e oralizada, aproximando o leitor da voz do próprio narrador. O uso de expressões populares como:

  • “palonço”, 
  • “falava pelos cotovelos”,
  • "gaja boa", 
  • "jeitosa"
  •  "uff!", 
  •  “que brasa!”
  • "o gato comeu-te a língua"...

 reforça a autenticidade e o sabor local da história, projetando-a na tradição portuguesa das  conversas e anedotas de caserna.

O "post-scriptum" (PS) introduz uma nota reflexiva e conciliadora, típica de quem, ao olhar para o passado, o faz com compreensão e benevolência. A anedota deixa de ser apenas um episódio engraçado e passa a ser também um testemunho de humildade, tolerância,. reconciliação e humanidade:

(...) "Sou católico praticante, e nada me move contra a igreja e os padres, antes pelo contrário, porque sempre os respeitei e,  ao contar esta história, não pretendo denegrir nem esta, nem os padres, e estou convicto que aquele jovem capelão tenha dado um bom padre, para mim aqueles comentários sobre mulheres eram fruto da sua juventude." (...) (*)


(v) Síntese interpretativa

Em suma, esta história pode ser lida em três planos:

  • Histórico:  testemunho de uma vivência concreta da Guerra Colonial;
  • Humorístico:  episódio leve que satiriza as hierarquias e os comportamentos ( "Bem prega frei Tomás:  faz o que ele diz mas não o que ele faz");
  • Humano e moral:  reflexão sobre a juventude, a autoridade e a tolerância.

Mais do que uma simples “história brejeira”, o texto é um retrato vivo do quotidiano dos militares portugueses na Guiné: um microcosmo onde a fé, o humor, a informalidade e  a humanidade coexistem no meio da adversidade.

Resumo final:

A história de Fernandino Vigário revela-se uma crónica de costumes do tempo da Guerra Colonial,  divertida, humana e sem malícia (nem anticlericalismo...),  onde o autor transforma um encontro algo insólito num episódio de humor e reflexão moral sobre a condição humana, que é comum aos dois protagonistas, mesmo quando escondida sob a farda, de um, ou  sob a batina, de outro. (De qualquer modo, era  mais provável que o alferes graduado capelão fosse vestido de camuflado e com os seus galões dourados, contrariamente ao que o "cartoon", de traço classicizante,  deixa ver).

 Pesquisa: LG + Chat Português (GPT-5 Thinking mini). Disponível em https://gptonline.ai/.

(Condensação, revisão / fixação de texto: LG)
__________________

Nota do editor LG:

(*) Último poste da série > 29 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27362: Humor de caserna (217): O jovem alferes graduado capelão, cheio de sangue na guelra, que queria ensinar o padre nosso ao...Vigário (Fernandino Vigário, ex-sold cond auto, CCS/BCAÇ 1911, Teixeira Pinto, Pelundo, Có e Jolmete 1967/69)

( O título original é  "Um Alferes Capelão que queria ensinar o Pai-Nosso ao Vigário".)

quarta-feira, 29 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27364: Historiografia da presença portuguesa em África (501): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, 1946 (59) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 23 de Abril de 2025:

Queridos amigos,
O Governador anunciara na receção que lhe fora feita pelo Conselho de Governo, que iria fazer o plano de ação governativa com a cooperação de muitos, mas trazia um ideário bem talhado, já nele trabalhara em Lisboa: acabar obras públicas em execução, dinamizar outras, contava com o apoio técnico do Gabinete de Urbanização Colonial; impunha-se criar uma política de saúde, fazer escolas, infraestruturas de diferente tipo, estradas, pontes, o maior número possível de caminhos viáveis; e rever a dinamização agrícola. E podemos constatar que se envolveu numa política cultural que não tinha precedentes: o museu, o centro cultural, o boletim cultural, os homens das Letras e das Ciências que virão até à Guiné. Por isso, se entendeu que se deviam citar alguns parágrafos do que ele escreveu em 1946, nunca esconde que tem pouco tempo pela frente, o que é verdade, estará poucos anos na Guiné, pôs em definitivo a colónia no mapa.

Um abraço do
Mário



A Província da Guiné Portuguesa
Boletim Oficial da Colónia da Guiné, 1946 (59)


Mário Beja Santos

À semelhança do que acontecera em 1945, repetem-se as autorizações de abertura de linhas de crédito, não se podem fazer omeletes sem ovos; o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa vai estar à venda, o governador aplica-se em planos agrícolas, desde a orizicultura aos apoios à zootecnia; entra em vigor o código da estrada da colónia da Guiné, no final do ano o Boletim Oficial publica o Regulamento dos Serviços de Saúde da Colónia da Guiné, é a Portaria n.º 165, Suplemento ao n.º 52 do Boletim Oficial n.º 21, de 30 de dezembro. Aparecem estabelecidos os serviços centrais, locais, a rede sanitária geral, bem como os estabelecimentos e serviços especiais. Tenha-se atenção ao artigo 41, referente à prestação da assistência:
“A assistência médica, cirúrgica e farmacêutica será sempre gratuita: aos indígenas que não estejam ao serviço de particulares; aos indigentes; ao pessoal missionário; às praças de pré do Exército e da Armada, bem como às pessoas de família exclusivamente a seu cargo; aos internados em estabelecimentos de deficiência; aos presos e detidos nas cadeias, presídios e colónias penais.”
Pelo Diploma legislativo n.º 1:337-A, suplemento ao n.º 52 do Boletim Oficial n.º 23, de 30 de dezembro: têm direito a assistência médica, cirúrgica, obstétrica e estomatológica gratuitas, além daqueles a quem o regulamento de saúde da colónia já as concede, todos os funcionários públicos civis e militarem em ativo serviço, contratados e assalariados e os aposentados e reformados e as suas famílias, quando os proventos do agregado familiar a cuja convivência pertençam, sejam inferiores a 20 mil escudos anuais.

Voltando atrás, ao Boletim Oficial n.º 12, de 25 de março desse ano, o governador encarrega Fausto Duarte, Secretário da Comissão Municipal de Bolama de preparar o anuário da Guiné Portuguesa, deverá entregar o original até ao fim do mês de outubro desse ano, ficando os serviços públicos obrigados a fornecer a este organizador os elementos não confidenciais. No Suplemento ao n.º 41, do Boletim Oficial n.º 16, com data de 16 de outubro, publica-se o decreto n.º 35:686, prende-se com a necessidade de melhorar as condições de vida das Praças reformadas dos extintos quadros coloniais residentes na metrópole, pelo que fica autorizado o governador da colónia da Guiné a abrir créditos especiais.

Mas nada melhor que pôr Sarmento Rodrigues no discurso direto. Numa mensagem enviada à Revista da Marinha, no seu número dedicado ao V Centenário da Descoberta da Guiné, com data de 31 de janeiro de 1946, escreve o seguinte:
“Falar na Guiné Portuguesa é dizer aos portugueses que não a conheçam que a dois passos de Lisboa todos poderiam encontrar a mais pitoresca, a mais variada, a mais prometedora das terras portuguesas de África.
Na verdade, em nenhuma outra parte do Império se poderia encontrar uma tal profusão de raças, de crenças, de costumes, de trajos, do que na Guiné. Desde os Felupes, bravios, honestos e sóbrios, aos Balantas, ladrões sentimentais, trabalhadores, foliões e bêbados; aos Bijagós cheios de pitoresco; e aos Fulas e Mandingas que trazem consigo as vestes, tradições e traços do mundo árabe; desde as idílicas várzeas onde se criam milhares de toneladas de arroz, aos milhões de palmeiras emaranhadas que dão à paisagem aspetos de beleza incomparável; das montanhas de amendoim que se erguem em toda a parte na época das colheitas, à labuta incansável dos transportes fluviais; da saia de malha de canais e rios que recortam o litoral e sulcam as terras, às numerosas ilhas e às solidões continentais do Gabu; das chuvas diluvianas, aos calores ardentes e às frescas brisas do fim do ano; das mulheres airosas e homens ativos…”


Aquando da exposição que fez, na 2.ª Conferência de Administradores, em 4 de dezembro, revela de novo a fibra do seu caráter:
“Nós não queremos obras de violência. O que for feito sê-lo-á sob uma ideia de justiça e de consistência. Nunca será demais pôr em relevo os transcendentes benefícios que os trabalhos já feitos dos ouriques de Bissau, Cacheu e Mansoa trouxeram à Guiné.
Valorização das terras, combate à miséria e à vadiagem, moralização da mentalidade dos indígenas – paralelamente à demonstração que o Governo faz da sua verdadeiramente paternal atitude, que não envolver prepotência e não exclui a firmeza.
Nós não viemos cá para passar a vida e deixar uma herança que nos sirva de escárnio. Por isso, temos de pôr completamente de parte a ideia de enganar para agradar. Agrade-se, mas com provas evidentes de trabalho feito. Não só feito, como bem feito.
Já por vezes tenho dito que ao chegar à Guiné me pareceu que tudo ruía em redor de mim. Era uma pressão em parte exata – porque os prédios caíam ou exigiam demolição: as secretarias de Canchungo e S. Domingos, a igreja de Farim, a ponte de Bubaque, etc., etc. – dizia, impressão em parte exata, mas também influência pelo grande trabalho de obras inacabadas, umas pela sequência natural dos trabalhos e pelas dificuldades da guerra, outras abandonadas, não se sabe porquê. Esforcei-me por descobrir as feridas primeiro, curá-las depois.
Nada de estatísticas rosadamente falsas, nem problemas a que se volte a cara para não os não resolver. É preciso que tudo seja são e posto à luz clara do dia.”


Discursando sobre o papel que cabe ao Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, dirá o seguinte:
“Este Centro, de âmbito ilimitado, desprende-se da luta de interesses económicos, tão dominante nesta época e nesta terra, para marcar a existência, e também a superioridade, do espiritual.
As suas diretrizes estão traçadas. Mas desejaria especialmente referir-me a um aspeto particular, de importância primária. É ao superior interesse que espero que lhes mereça o estudo do que diga respeito aos valores indígenas, das suas artes primitivas, das suas línguas, costumes e tradições, de tudo que possa registar uma existência, uma personalidade que o tempo fatalmente destruirá. O Boletim Cultural, cujo terceiro número acaba de chegar, é uma prova, e bem eloquente, do que há de valores dispersos pela província. A Guiné Portuguesa deixou de estar isolada no Sudão, na África, no Globo. Entrou em comunhão com o Mundo Português.”


E despeço-me com as palavras que ele enviou ao Jornal da Marinha Mercante para o seu número comemorativo do V Centenário da Descoberta da Guiné:
“Não é ela (a Guiné) ainda o que poderá vir a ser. Sofre de vários males, que espero do tempo e do juízo dos homens ver sarados. Ainda persiste, em apreciável escala, a miragem dos negócios simples e rápidos. É uma sobrevivência dos tempos ingratos em que o colono era cercado de inimigos, fruto do clima e das gentes rebeldes.
Não devemos deixar de frisar que não é pequena, podendo mesmo considerar-se das mais valiosas dentro das nossas colónias, a iniciativa de trabalho dos indígenas.”

Notícia da visita à Guiné do Subsecretário de Estado das Colónias
Sarmento Rodrigues na Ilha Roxa com as autoridades locais
Em Bubaque com o régulo Gen-Gen
Bolama, cerimónia do Juramento de Bandeira
Encontrei há dias o Dr. João Loureiro, responsável pela publicação do acervo dos bilhetes-postais de todo o Império, devo-lhe a atenção pessoal por me ter oferecido livros da Guiné, já referenciado no nosso blogue. Deu-me notícia das ofertas que está a fazer à Sociedade de Geografia de Lisboa e lembrou-me que entregara um livrinho feito por um juiz natural do Estado da Índia que estivera em Bissau, devia-se-lhe a planta da Praça de S. José de Bissau, é o desenho original, depois republicado em inúmeras edições de outros autores. Mordido pela curiosidade, pedi para ler a obra e fotografar a planta original, é esta.

(Continua)

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Nota do editor

Último post da série de 22 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27341: Historiografia da presença portuguesa em África (501): A Província da Guiné Portuguesa - Boletim Oficial da Colónia da Guiné Portuguesa, finais de 1945 (58) (Mário Beja Santos)