sábado, 24 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5151: Controvérsias (37): O despertar dos Combatentes (Mário Pinto)


1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos a seguinte mensagem:


Camaradas,

Hoje não abri o meu baú de memórias, mas escrevi este texto com suporte em memórias e actualidades, acerca de uma matéria que tem estado na ordem do dia, todos os dias, que é a triste e lamentável situação e tratamento dado aos ex-Combatentes, que dedico especialmente à nossa juventude e ao qual dei o título:

"O DESPERTAR DOS COMBATENTES"


Pelo que me é dado constatar, ao longo dos últimos 35 anos, pelas análises de vários depoimentos nossos, como ex-Combatentes e dos nossos comportamentos sociais, creio que posso afirmar, sem muita margem de erro que, na generalidade, quando terminamos as nossas comissões em terras de além-mar, interiorizamos e guardamos, reservadamente, a matéria relativa às recordações das nossas comissões, nos nossos “ficheiros” cerebrais do silêncio e do esquecimento.

Um silêncio que permitiu, em muitos casos, o esquecimento de partes, ou num todo, das vicissitudes e agruras dos vários meses de privações, doenças, angústias, receios, medos e, pior que tudo, o sofrimento e a dor, de vermos e sentirmos o sangue derramado pelos nossos mais infelizes Camaradas, que pereceram e ficaram severamente estropiados em combate, nas minas, nos fornilhos, em acidentes, etc.

Valeu-nos sempre, para ultrapassar os piores momentos, os indescritíveis e imortais elos de sã amizade e fraterna camaradagem, que unia os Homens de cada equipa, de cada pelotão, de cada Unidade.

Lentamente, nos últimos tempos, denota-se uma evolução (na minha opinião pessoal muito positiva para todos nós), no despertar das consciências, surgindo aqui e ali a narração dos nossos feitos militares, aqui no blogue, em simples conversas de café, em entrevistas, documentários, livros… as nossas histórias pessoais, daqueles tempos conturbados que agora, com maior ou menor custo, começamos a recordar e a editar.

As gerações mais novas, que felizmente não tiveram que passar pelas provas de maturidade e privações, que nos foi imposta pelo regime de então, chama-nos “cotas”, muitos deles completamente alheios e indiferentes ao nosso passado bélico, graças, fundamentalmente, à fraquíssima qualidade da maioria dos média que temos e ao ostracismo a que fomos votados pelas classes políticas pós “abrilistas” e vigentes.

Numa época de serviço obrigatório militar, sabíamos que o destino da maioria era África, G3 nas mãos, combater os rebeldes (turras na gíria militar da altura), para defendermos o território nacional, que, como portugueses que somos, herdamos de vários séculos de descobrimentos e conquistas dos nossos ousados e valentes antepassados, de que, na generalidade, nos orgulhávamos e nos era ensinado a amar e estimar, desde os bancos das escolas.

Entre nós, também haviam jovens mais politizados, que não concordavam com a política de confronto armado seguida para as ex-Colónias, pelo regime dominante, mas, mesmo assim, lá seguiam integrados em contingentes com destino ao Ultramar, imbuídos de um pensamento: a guerra toca a todos.

Uns tantos, mais convictos, radicais, cobardes e medrosos, fugiam às suas obrigações castrenses, refugiando-se em países, que contestavam politicamente as nossas guerras em África, nada se importando com aqueles seus Amigos e conhecidos que em Àfrica, na guerra, podiam precisar da sua colaboração, tentando sobreviver.

Houveram alguns que, inclusivamente, pactuaram com os nossos inimigos (não os vou agora aqui adjectivar), colaborando em vários aspectos contra nós.

Na guerra, nós vivemos entre a sobrevivência, a confusão e o ódio, passámos, como já tinha dito, momentos de grande sofrimento, dor, angústia, receios e medo, naturais dos nossos 20 e poucos anos de idade e éramos parte de uma sociedade que, embora evitasse grandes conversas sobre pormenores da guerra, nos respeitava e admirava.

Muitos de nós, provindos dos recantos mais profundos de Portugal, dos meios rurais ou dos bancos das escolas das grandes cidades, éramos sequer dados, ou habituados, a enfrentar situações de violência extrema e morte, como nos exigiam os, por vezes, terríveis e mortíferos confrontos, em terrenos que nos eram completamente estranhos (selvas, tarrafo, bolanhas, etc.), contra os elementos dos movimentos de libertação.

A nossa quase totalidade foi básica e fugazmente instruída, em meia dúzia de meses, por aqui nos quartéis nacionais, e enfiada em barcos e aviões para Angola, Guiné e Moçambique.

As contingências da guerra roubaram-nos preciosos anos das nossas juventudes, que podíamos ter aplicado em outras coisas bem mais úteis e agradáveis, destruindo muitos dos nossos sonhos e tornando muito de nós, antes jovens alegres e divertidos, em “tipos” pouco reintegráveis, que familiarmente, quer amigavelmente, e, ou, incompatíveis com a as filosofias de vida e as práticas da sociedade decorrente.

No passado, tal como no presente, não são as Forças Armadas que decidem participar, ou sair, de uma guerra, mas sim os políticos que gerem esta Nação.

São os políticos que, em nome desta nossa Pátria, resolveram a nossa ida para a guerra, bem como hoje decidem a integração dos nossos militares em missões no estrangeiro, pelo que, lhes deixo aqui colocadas duas simples questões: “Será que os Senhores têm a mesma atitude, ou tratam de igual modo, os soldados que têm regressado com doenças (nomeadamente o pós-stresse traumático), que têm enviado para Timor, Bósnia, Kosovo ou Afeganistão, tal como estão a tratar os ex-Combatentes da Guerra do Ultramar? E aquando da sua passagem à situação de reforma, também será assim?

É que os políticos, não podem, nem deviam, injustiçar e ostracizar, os Homens que, obrigados ou não, se entregaram de corpo e alma, no cumprimento das missões que lhes foram exigidas, em prol do seu semelhante e da sua Pátria.

No mínimo merecem o reconhecimento pelo seu empenho e pelo seu espírito de sacrifício, porque cumpriram!

Os políticos actuais, nesta matéria, estão completamente desenquadrados das filosofias Patrióticas e das suas melhores e adequadas práticas. As suas políticas de gabinete resumem-se ao acomodarem-se às suas infrutíferas vaidades e aos seus bem-estar e luxos pessoais. É uma triste e mesquinha realidade!

Não sou adepto de que somos os “coitadinhos” da Guerra do Ultramar. Somos Homens que, apesar de tudo, cumpriram, o melhor que puderam e souberam, e assumimos o passado com, maior ou menor, orgulho pessoal.

São necessárias, urgentemente, muitas vozes como as dos ex-Combatentes, para informar e despertar as mentalidades das novas gerações, de homens e mulheres, que um dia hão-de surgir na política portuguesa, com outras visões mais solidárias, inteligentes e Patriotas, que prestem o devido e justo reconhecimento à nossa geração.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P5150: Convívios (171): Encontro de ex-militares, no dia 21 de Novembro, no RI 14 em Viseu (Rui A. Ferreira)



1. Recebemos do nosso camarada Rui Alexandrino Ferreira, Coronel Ref, que fez uma comissão de serviço na Guiné como Alferes Miliciano na CCAÇ 1420, Fulacunda, 1965/67 e outra como Capitão Miliciano na CCAÇ 18, Aldeia Formosa, 1970/72, esta convocatória para publicação:




CONVOCATÓRIA

Rui Fernando Alexandrino Ferreira
Rua Rainha Santa Isabel, 30 -1º
Bairro da Quinta da Carreira
3500 – 147 Viseu

Esta carta tem por destino todos quantos a receberem e tem como finalidade a sua convocação para o convívio deste ano de 2009 da malta que pertenceu

À famosa Companhia de Caçadores n.º 1420 – (Guiné 1965/67)

Aos poucos graduados que sobraram ao assassinato dos restantes militares que compunham a Companhia de Caçadores n.º 18 – Guiné 1970/72

A todos os antigos militares que comigo serviram no Regimento de Infantaria 14 na cidade Rainha da Beira – Viseu tendo em especial atenção ao Núcleo Duro.

A todos quantos pela amizade que perdura para lá do tempo e que nos une na mesma memória e nisso sinta orgulho.

A todos os camarigos (camaradas e amigos) da tertúlia do Luís Graça e seus camaradas da Guiné


É verdade. Mais uma vez me vou meter em trabalhos, ou seja vou tentar juntar num almoço convívio, que terá lugar num dos Refeitórios do Regimento de Infantaria de Viseu um grupo alargado de malta que era jovem quando os ventos do acaso e os desígnios de destino cruzou as linhas da vida e que continua presente e cada vez nela mais importante, especialmente no apoio para prosseguir na luta contra a doença.

Assim e seja qual for a tua posição na convocatória, sempre te digo que a tua presença é imprescindíveis, que não é substituível por outra qualquer e que será uma alegria ver-te nesta cidade que é minha pelo imenso amor que lhe tenho.

Ao prazer de rever antigos camaradas, de conhecer novos que são igualmente muito importantes para mim, terás oportunidade de ver, ouvir e conhecer pessoal do Batalhão que aqui constituído se destina a integrar no âmbito da ONU as missões de Paz e pela voz do seu próprio comandante ou de um dos oficiais do seu Estado Maior tomar contacto com as suas realidades, a forma como enfrentam os imensos problemas que se lhes apresentam fazer uma comparação com o que foi a tua experiência que infelizmente já lá vai, (pois que voltaríamos aos nossos vinte anos, o que bem vistas as coisas nem era mau) visitar as suas instalações e ver o novo armamento e ainda, com um bocado de sorte e da boa vontade desta feita também do próprio Comandante do Regimento, poderás dar uma voltinha numa das novas viaturas Pandur.

Claro que podes e deves trazer a família contigo. A refeição cujo prato principal será um Rancho à moda do 14, rondará os 10 euros por elemento. Como não podia deixar de ser decidi juntar o útil e pouco dispendioso ao agradável.

Duas coisas deves fazer:

Telefonar-me ou por qualquer outro meio confirmar a tua presença e o número dos teus convidados. Os meus contactos são:

Telefone da residência – 309 875 370
Telemóvel – 965 043 313
Correio Electrónico - 0313102101@netcabo.pt

Apresentar-te a partir das 10H30 do dia 21 de Novembro do corrente no local de concentração, ou seja, frente ao Regimento de Infantaria n.º 14, em Viseu.

Uma coisa ainda te peço: informa-me a tempo e horas se vais estar ou não, de modo a me facilitares a vida.

Sem mais aqui fica um grande abraço.

Até sempre, mas desta feita até 21 de Novembro
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 4 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4776: Parabéns a você (16): Rui Alexandrino Ferreira, Cor Reformado (Editores)

Vd. último poste da série de 17 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5123: Convívios (168): Pessoal da CCAÇ 727, ocorrido no passado dia 3 de Outubro, em Fátima (Miguel Oliveira)

Guiné 63/74 - P5149: Direito à indignação (8): Fomos forçados como presidiários a cumprir pena no degredo (Jorge Teixeira/Portojo)

1. Mensagem de Jorge Teixeira* (Portojo), ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70,com data de 22 de Outubro de 2009:

Tropa, quer dizer Forças Armadas Portuguesas.
E cada vez me repugna mais dizer ou escrever estas palavras "Forças Armadas Portuguesas".

Desde a criação de uma lei em Fevereiro de 2002 de uma pensão para antigos combatentes, de que só alguns tiveram conhecimento e de como dela se poderia auferir, até à Lei publicada em 2009, fica demonstrado como os Presidentes da República, que aprovam as leis do País, os governantes que fazem as leis, bem como os deputados da Assembleia da República tratam a escória dos militares que em nome da Pátria una e indivisível, foram forçados como presidiários a cumprir pena no degredo em África, desde 1961 a 1974, por períodos de dois anos, uns pouco menos e outros um pouco mais.

Já somos poucos os sobreviventes desse tempo. Dizem-me que cerca de 300.000. Muitos com diversos problemas de saúde, mas esperam os nossos queridos governantes que nos despachemos depressa para o outro mundo, pois aqui já andamos a mais.

Bem isto ao caso por mais uma vergonhosa afronta (como se diz em alguns partidos tipo PCP e satélites, também eles metidos nesta estória) que esses chamados governantes - Presidente da República, Governo, Deputados - infligiram à atrás dita escória negreira de terras de África. Refiro-me à tal pensão generosa, que inicialmente recebiam alguns de nós. Cerca de 120 euros anuais. Com o tempo foi-se actualizando essa esmola. Para alguns, como disse, pois a maior parte perdeu automaticamente esse direito. Ou por desconhecimento da Lei, como terá sido o meu caso, segundo me foi dito, ou por que não sei... Acho que a partir de certa altura deixou de ter validade a Lei.

Não fazendo deste caso, um assunto individual - que o não é pois há camaradas que são tão ignorantes como eu e portanto não recebem esta misericordiosa pensão - a nova lei, a tal de 2009, veio pôr os pontos nos iiiisss. Isto é, reviram a lei de 2002, cheia de incongruências, segundo disseram, e toca de gamar uns euros, que nalguns casos é superior a 40%. Quer dizer que há pessoal a receber menos de 100 euros anuais.

Se meter os papeis pela terceira vez e me for considerada a esmola, parece que receberei cerca de 130 euros anuais. Não sei se estarei cá se isso acontecer. Mas agora vou mesmo chatear e prometo encher as caixas do correio desses Ministérios e dos Serviços das Forças Armadas e de Ligas militares - mesmo as não controladas pelo governo - e Segurança Social, enfim tudo que for sítio onde recebam correio electrónico. Vão todos gozar com a pqp. E deixem os velhos em paz de uma vez.

Só de passagem: Alguém ouviu ou leu a comunicação social, comentaristas, partidos, referir-se a este tema ?

Jorge/Portojo
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4967: Agenda Cultural (26): Museu Militar do Porto (Jorge Teixeira/Portojo)

Vd. último poste da série de 19 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5133: Direito à indignação (7): Esmiuçando o Complemento Especial de Pensão e o Acréscimo Vitalício de Pensão (José Manuel M. Dinis)

Guiné 63/74 - P5148: Não-estórias de guerra (2): A Lavadeira de Aldeia Formosa (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969/71, com data de 20 de Outubro de 2009: 

 Caro Luís, Como reduziram para cerca de metade aquilo que recebia por ter estado na guerra, com menos dinheiro para gastar, fiquei com mais tempo para escrever. Resultado: aqui vai mais não estória. Um Abraço Manuel Amaro 


  Uma não-estória de guerra: A Lavadeira 

Por Manuel Amaro 


 Tenho lido, com agrado, as estórias relacionadas com as lavadeiras, contadas aqui no blogue. Concluí que, na verdade, para quem esteve naquela guerra, a existência das lavadeiras era um importante factor, com nítida influência na nossa qualidade de vida. 

 Mesmo que alguns aspectos tenham sido vividos inconscientemente, mesmo que algumas estórias tenham uma grande dose de imaginação, o facto é que aquelas dezenas de milhar de militares, na sua maioria ainda quase meninos, alguns saídos pela primeira vez da esfera familiar, viam na lavadeira, fornecedora de roupa limpinha, a continuação da família. 

 Eu também tive as minhas lavadeiras. Uma lavadeira em cada terra. Quando a CCAÇ 2615 chegou a Aldeia Formosa, porque fomos os últimos a chegar, as melhores lavadeiras já tinham a lotação esgotada. Eu bem levava uma recomendação para falar com a Farma ou a Maimuna. E falei. Mas nem uma cunha do Gilberto Campos, Fur Enf da CCS, me valeu. Tive que me contentar com uma sobrinha das ditas, de nome Saida Baldé, creio que familiar do Régulo de Colibuia, tabanca abandonada, que ali vivia na condição de refugiado. 

 A Saida era muito jovem, elegante, muito bonita, rosto com traços caucasianos, mas negra, muito negra. Muito competente e muito organizada. Naquele tempo, em Aldeia Formosa, a determinada hora, talvez 16h00, 16h30, as lavadeiras juntavam-se na porta de armas e aguardavam ordem da sentinela para entrar. Depois, aquele bando, em correria desenfreada, contactava todos os clientes, entregava a roupa lavada, recebia a roupa suja e regressava à tabanca. E todos os militares estavam atentos à chegada das lavadeiras. 

 Um dia, em todas as coisas há sempre um dia diferente, atrasei-me no duche e lá apareceu o Campos a gritar: 
 - Está aqui a lavadeira… 
 - Vou já, é só vestir-me. - Respondi. 
 - Eh pá, coloca a toalha à volta da cintura e chega aqui, rápido. – Ordenou o Campos. Cumpri. 

Coloquei a toalha e fui a correr. Lá estava a Saida com a minha roupa para entregar, mas só a mim. Pedi desculpa pelo atraso e fui recebendo a roupa, peça a peça. E ela, que nunca me tinha visto naquela indumentária, olhava, surpreendida, curiosa, expectante… Acontece que quando dei por mim estava com uma erecção, que não conseguia controlar e a toalha avançava na direcção da lavadeira… 

 A Saida, quando acabou a entrega, curvou-se para agarrar o cesto da roupa, confrontou-se com aquela torre Eiffel, abriu os olhos, apontou o indicador direito e gritou:
 - Eh furriel… eh furriel… virou-se e desatou a correr. 

 No dia seguinte e nos dias que se seguiram, tudo correu normalmente. Mas passado um tempinho, assim que a minha lavadeira teve oportunidade, perguntou-me, com um sorriso maroto e um olhar reluzente, quando é que eu vinha outra vez de toalha. Disse-lhe que se ela queria que eu viesse de toalha, então na próxima vez eu viria receber a roupa com a toalha à volta da cintura. 

 No dia seguinte tomei duche, coloquei a toalha, sentei-me à mesa e fiquei ali à espera, lendo mais um capítulo de ”Os Lobos”, de Hans Hellmut Kirst. Assim passei uma boa meia hora. O Torres, da CART 2521, ainda perguntou se eu estava na sauna, mas eu nem respondi. 

 Finalmente chegou a Saida. Eu apareci à porta com a toalha. Ela entregou a roupa. Eu recebi. Tudo em silêncio… a mesma toalha, o mesmo cesto da roupa, a mesma torre, o mesmo olhar… Mas quando partiu, a Saida limitou-se a dizer, baixinho: 
 - Obrigada, furriel… 

 Dois dias depois, eu parti para Buba, numa viagem (peregrinação), de três meses, que me levaria a Buba, Aldeia, Bissau, Lisboa, Bissau, Aldeia e Nhala. Em Nhala voltei a ter lavadeira. Sem estória. Tal como em Nhacra e Buba. Mas tenho, sempre tive, guardo na memória, o maior apreço e consideração, pelo importante papel desempenhado pelas lavadeiras (as mulheres que lavam roupa, à mão), qualquer que fosse a sua relação com os militares. 

 Manuel Amaro 

__________ 

 Nota de CV:

Guiné 63/74 - P5147: Historiografia da presença portuguesa em África (26): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (III): Até ao Portugal democrático

A literatura colonial guineense (3)

Por Leopoldo Amado

(Epílogo)

Da década de 40 até ao Portugal democrático

Entretanto, a década de 40 inicia-se com um acontecimento importante: a capital da Guiné é transferida de Bolama para Bissau, e dela resulta que Bissau cresce a olhos vistos, enquanto Bolama perde a sua vitalidade. Na verdade, a transferência da capital para Bissau foi um duro golpe para a elite africana de cariz pequeno-burguesa de Bolama. Consequentemente, a inteligentsia guineense, que era sobretudo representada por bolamenses militantes, dispersou-se por imperativos de força maior. Por isso, a actividade literária e cultural em geral foi o primeiro sector a apresentar sinais palpáveis de um retraimento significativo, a ponto de se paralisar qualquer actividade editorial na Guiné, exceptuando as publicações do Boletim Oficial da Guiné.

Foi o Arauto* que quebrou este silêncio editorial em 1943, quando as autoridades religiosas sentiram que as suas actividades careciam de um meio de divulgação, dado o crescimento cada vez maior da população católica guineense. Aliás, em 1940, tal crescimento era assinalado pela bula Solemnibus Conventionibus, na qual o território da Guiné foi separado da Diocese de Cabo Verde e erigido em Missão sui juris. Estava-se pois num período de relativa acalmia social, em que a política de assimilação, ainda que de forma subtil, estava a dar os seus primeiros resultados. Esta situação traduziu-se na prática pelo reforço do sistema administrativo colonial, cujos corolários foram a realização do Congresso da Guiné na Sociedade de Geografia de Lisboa em 1944, seguido em 1946 pelas comemorações do quinto centenário da descoberta da Guiné. É nesse contexto que o Arauto foi publicado em Bolama até 1947. Durante esse período, a temática central deste periódico gravitava à volta do espírito anti-capital que os bolamenses nutriam contra Bissau. A par disso e além da acção religiosa, o Arauto privilegiou os aspectos históricos de Bolama e do cristianismo na Guiné. Por ironia do destino e por razões que ignoramos, o Arauto fechou as portas em Bolama para reaparecer em Bissau, em 1950. É nesta sua segunda fase que se regista alguma produção literária-colonial com certo interesse de estudo, na qual se destacam os artigos de opinião assinados por Fausto Duarte, Juvenal Cabral e o guineense Caetano Filomeno Sá, entre outros.

Em 1945, Sarmento Rodrigues toma posse como Governador da Guiné e funda o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, do qual nasce o Boletim Cultural da Guiné Portuguesa**, que viria a congregar um grande número de estudiosos da Guiné nas mais variadas áreas das ciências e, também, da literatura. Trata-se, segundo o africanista René Pélissier, da melhor produção científica no contexto das ex-colónias portuguesas de África. Avelino Teixeira da Mota, Fausto Duarte, James Walter e António Carreira foram, sem dúvida, pela sua capacidade polivalente e interdisciplinar, aqueles que deram o impulso decisivo àquilo que comummente denominamos de geração do Boletim Cultural. Quanto à produção literária-colonial patente nos 110 números publicados, seria omissão imperdoável não acrescentarmos nomes como o de Egídio Santos, Fernando Barrigão, João Eleutério Conduto e Fernando Rogado Quintino. São esses os autores que através da narrativa ou da simples descritiva sociológica, nos dão a medida exacta das preocupações intelectuais da geração do Boletim Cultural. De facto, as inquietações preocupação intelectuais desta geração dirigiam-se no sentido de forjar elos entre uma experiência africana que viveram intensamente e que já incorporava os seus ethós, e a espiritualidade mística, natural, que os prendia à terra-mãe. Para isso, usaram diversos géneros literários que vão do ensaio sociológico à novelística e à fixação de contos tradicionais. E é nesta linha de força que são publicados os Contos Bijagós, por João Eleutério Conduto; os “Contos Fulas”, por A. Pereira Gomes; os “Contos Mandingas”, por Manuel Dias Belchior; “Dois contos do ciclo do Lobo”, por Maria Cecília de Castro, e “Contos de Caramô”, por Viriato Augusto Tadeu. Ainda dentro dessa perspectiva se pode incluir o livro Terra Ardente, de Norberto Lopes, e Guinéus, de Alexandre Barbosa (respectivamente, reportagem jornalística e impressões de viagem), embora não apresentem grande interesse para o estudo da Literatura Colonial Guineense.

Em 1959, Romeu Martins publica 15 poemas e ainda: o Roteiro Moderno, que dedica à memória de Caetano Filomeno de Sá. No entanto, por amor à verdade, devemos reconhecer que a poética-colonial de Romeu Martins é de grande qualidade estética, talvez comparável com África Raiz, a grande poesia de Fernanda de Castro. É ainda uma poética de natureza historiográfica que, com um discurso típico da ideologia do Estado Novo, procura aqui e acolá enaltecer os heróis da colonização e cruzada guineenses, ao mesmo tempo que coloca Portugal como o horizonte messiânico dos guineenses, em suma, uma elegia ao culto da magnanimidade histórica de Portugal, o Portugal das descobertas que deu novos mundos ao Mundo.

Porém, antes de fecharmos este percurso pela Literatura Colonial Guineense, permitam-nos debruçarmos um pouco sobre dois autores cujos nomes se pode apontar entre os mais válidos da geração que viveu a guerra colonial na Guiné. Trata-se de José Martins Garcia, que escreveu O Lugar de Massacre, sem dúvida a melhor obra de literatura da guerra colonial da Guiné: de um realismo extraordinário, nela se descreve a essência filosófica dos que na arena de guerra lutaram por um ideal que se esforçavam em vão por compreender; o ideal que jamais se poderá omitir, ou seja, o princípio transcendente que supera as capacidades conjecturais do homem confrontado com o abandono e a morte e que está para aquém e para além dos marcos sensíveis – o espírito. Ousamos mesmo dizer que O Lugar de Massacre revela-se de uma importância incomensurável, mesmo do ponto de vista africano. O outro autor é o Armor Pires Mota, autor do Diário íntimo de um soldado, Tarrafo, e do livro de poemas Baga-Baga e ainda do livro de contos intitulado Guiné Sol e Sangue. Nos seus escritos, não é raro depararmos amiúde com considerações que denotam a existência no autor de preconceitos:

Sou o teu irmão mais velho,
Sou negro também dentro de mim
! (23)

Mas em Armor Pires também se vislumbra a mensagem da igualdade e da justiça entre europeus e africanos, numa descrição poética que se reporta à guerra colonial e cujo principal mérito é a serenidade dramática, testemunhando, sobretudo, um estado de alma – uma visão poética da guerra colonial:

É urgente libertar os meninos negros e brancos,
e dar às mães as estrelas
e as rosas de uma madrugada pura e imensa
(24)

Porém, foi em 1956 que surgiu O Bolamense, sem dúvida, o jornal guineense de maior impacto cultural e literário. Nele, foram publicados muitos poemas que cantam com saudosismo os tempos difíceis em que Bolama, a velha cidade, era a capital da Guiné. Dos poemas publicados, vislumbra-se urna poética um tanto ou quanto apolíticas ou se quisermos, pitoresca e turística. Era, de resto, um jornal que pugnava pela História da Guiné – entenda-se História Colonialista –, ao mesmo tempo que procurava legitimar a colonização portuguesa ante o movimento libertário que, embrionariamente, ia dando os primeiros passos.


Conclusão

Em jeito de conclusão, gostaríamos de referir alguns aspectos deste estudo que merecem uma melhor explicação. E a primeira ideia que nos ocorre é a de que a Literatura Colonial não depende da realidade habitual e do contexto em que foi produzida uma vez que dela se separou e continua a viver depois de esta ter morrido. Isto é tanto mais verdade quanto é certo que, na obra literária, o assunto é de tal modo elaborado que não subsiste como valor puramente humano, sujeito a qualquer juízo prático. O assunto extingue-se para renascer noutra esfera. É exactamente tendo em conta este postulado que atribuímos à Literatura Colonial uma importância particular no que concerne ao seu relacionamento com a Literatura Nacional.

Com isto, não pretendemos inferir que a Literatura Nacional nasceu directamente na sequência da Colonial. Somos da opinião que, efectivamente, são duas coisas distintas, mas que se articulam por elos histórico-culturais e linguísticos. É axiomático que as motivações nortearam um e outro discurso literário em direcções opostas. Por isso, não nos parece legítimo a evocação de autores como Amílcar Cabral e Vasco Cabral – cujos alguns poemas datam da época colonial – para argumentar que a Literatura Nacional não nasceu do nada.

Ora, não esqueçamos que estes dois autores guineenses comparticiparam do espírito da Casa dos Estudantes do Império, da Negritude literária e demais inquietações a que estavam expostos os estudantes africanos em Portugal, ainda em pleno período colonial. Torna-se pois necessários (utilizando a expressão de Manuel Ferreira) separar o trigo do joio sem, todavia, esquecermos as grandes afinidades culturais entre uma e outra literatura, donde a finalidade fundamental do nosso estudo, convictos como estamos de que a História Literária só pode ser a História da Cultura Literária.

Eis chegado o momento de fecharmos esta modesta incursão pela Literatura Colonial Guineense. Ora, fazemo-lo com a consciência de que muito falta ainda para esclarecer e informar a seu respeito. Só a crítica e a estilística poderão penetrar mais profundamente o objecto de estudo em questão, pelo que aqui se regista um apelo aos especialistas na matéria. E porque aspectos positivos há a extrair da Literatura Colonial, interessa – como dizia Amílcar Cabral – aproveitar os aspectos positivos decorrentes da colonização, não só para enriquecermos a descolonização literária em curso, mas também para enquadrarmos sem complexos a componente cultural do passado que se cimentou indelevelmente na nossa cultura nacional.

E porque também no arraial de provações, de quezílias, de lutas e agravos que constitui a História Política da Guiné-Bissau, orgulhosa da sua luta de libertação, importa afastar derrotismos que de alguma forma possam gerar uma crise cultural de consciência e identidade, toma-se necessária a inclusão da Literatura Colonial no conjunto temático preferencial de estudo, a par de outros que se afiguram importantes. Isto porque, passados quinze anos do fecho do ciclo colonial, o Portugal Democrático e os novos Estados africanos de língua oficial portuguesa não são meros co-herdeiros de uma mesma tradição cultural – a colonial. São, creio bem, portadores da mesma missão que é a da construção da nação.

Leopoldo Amado
____________

OBS do Editor:

- Subtítulo da responsabilidade do Editor
- Leopoldo Amado é Doutor em História Contemporânea pela Universidade Clássica de Lisboa, (Faculdade Letras de Lisboa), sob a temática Guerra Colonial da Guiné versus Luta de libertação Nacional, 1961 – 1974)
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 16 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2766: Álbum das Glórias (42): As melhores ostras de Bissau, em O Arauto, de 27 de Julho de 1967 (Benito Neves, CCAV 1484)

(**) Vd. poste de 12 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3878: Historiografia da presença portuguesa (18): O sítio Memória de África ® (Afonso Sousa

Vd. postes da série de:

22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução
e
23 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5144: Historiografia da presença portuguesa (25): A Literatura colonial guineense (Leopoldo Amado) (II): A primeira tipografia em 1879

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Guiné 63/74 - P5146: Humor de caserna (15): O fim dos Ui!Ui!... e o milagroso comprimido LM do Zé Teixeira (José Belo)

Esta é a singela página principal do sítio, na Net, dos Maiorais de Empada, a malta da CCAÇ 2381 (1968/70), declarados inimigos dos Ui!Ui! do Rio Grande de Buba... Editor: José Teixeira. Colaboradores: José Belo e J. Manuel Samoco.

A CCAÇ 2381 teve como unidade mobilizadora o RI 2 (Abrantes). Partiu para a Guiné em 1/5/1968 e regressou à Metrópole em 3/4/1970. O seu comandante original, Cap Mil Inf Jacinto Joaquim Aidos, continua a frequentar os encontros anuais. O próximo convívio está marcado para o dia 1 de Maio de 2010 nas Grutas de Santo António, pero de Fátima.

1. Novo texto do José Belo, ex Alf Mil Inf da CCAÇ 2381, Ingoré, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá e Empada, 1968/70, actualmente Cap Inf Ref, a viver na Suécia há mais de três dezenas de anos...

Como bom Ui!Ui! que é, raramente se deixa fotografar... A foto que dele temos publicado, é de tão má qualidade que eu hoje resolvi não voltar a inseri-la... Até por razões de segurança do nosso querido amigo e camarada José Belo (os Ui!Ui! sempre foram muito apreciados no norte da Europa, com destaque para a Finlândia, que como toda a gente sabe faz fronteira com a Suécia...), pelo que optámos por deixar em branco o espaço reservado à chapa de identificação (LG).

2. O Fim dos UiUi! (*)
por José Belo

Caros Amigos e Camaradas:

Para não cair na tentação de criar um, menos conveniente, folhetim quanto aos estranhos, excessivos, por vezes contra natura, hábitos sexuais dos Ui!Ui! do sul da Guiné, que iria sair fora do âmbito de algumas profundas formações morais e militares de muitos dos camaradas (com o consequente arrastamento de sérios problemas para os editores do blogue com o Patriarcado, e mesmo a Nunciatura), resolvi, a bem de todos, encerrar definitivamente o assunto.

Sinto, no entanto, como profundo dever, compartilhar a técnica recomendada pelo Laboratório Militar (anos 70/71) quanto à obtenção de uma perfeita pele de Ui!Ui!

O facto da pelagem destes animais atingir valores comerciais muito elevados (não esquecer que existiam especialistas internacionais na casa Gouveia de Bissau com o fim único de exportar as mesmas para a Finlândia), a 2ª Repartição do Estado Maior de Bissau utilizou (abusivamente?) grande parte das verbas destinadas à Campanha por uma Guiné Melhor para subsidiar um estudo por parte de conhecido laboratório alemão quanto ao melhor isco para Ui!Ui!

Diz-se que, em muito oportuna intervenção, o então Capitão Almeida Bruno convenceu o Comando Chefe a não gastar enormes verbas com laboratórios internacionais para serem obtidas técnicas a serem utilizadas pelos simples dos bandos armados. E qual era o defeito do Laboratório Militar?

Bem haja meu General, porque a resposta científica para o problema foi deste modo muito mais rápida, profunda e eficiente,ou não fosse um laboratório.....militar! (ainda hoje me pergunto: Como se dirá desenrrascar em alemão?)

A sugestão recomendada pelos nossos era, obviamente, baseada nos célebres comprimidos LM. Quem os não recorda com saudade? Os tais utilizados para diarreias, gonorreias, e tudo o que de eias afligia as nossas tropas no vasto império africano, e não só. Como muito inteligentemente salientou a repartição de logística do Estado Maior em Lisboa, este medicamento sofisticado estava distribuído por tudo que era bolsa de enfermagem no nosso exército.

Cito NEP do Comando Chefe da Guiné para as Unidades existentes nas zonas do habitat dos Ui!Ui!, com instruções a serem rigorosamente seguidas pelas mesmas:

(i) Espalhar criteriosamente os comprimidos LM na parte mais escura das margens do tarrafo.

(ii) Aguardar o mais próximo possível dos comprimidos a chegada dos animais. (Recomenda-se a utilização das árvores mais próximas, tendo em conta os devidos cuidados a ter caso nelas se encontrem pendurados alguns guerrilheiros [Vd. foto à esquerda]. Estes costumam chatear-se com isso!)

(iii) Os animais, depois de uma demorada observação dos comprimidos, viram-se uns para os outros, e, em gesto reguila, levam a pata dianteira esquerda à pálpebra inferior do olho direito em típico gesto significativo de Queres ver estes chicos-espertos?!

É nesse momento que, apontando ao branco dos olhos, se devem abater os enormes Ui!Ui! sem produzir os tais buracos desnecessários na pele.

PS - Não quero terminar sem pedir as desculpas devidas a dois Camaradas:

(i) Ao Zé Teixeira, o nosso doutor da mata, pelas quantidades de comprimidos LM abusivamente desviados pelos Furriéis e por mim, do seu posto de enfermagem. Ele que os contava todos ao despertar,e os colocava em impecável formatura sobre a secretária ao recolher! O nosso ingénuo alibi quanto a um possível aumento de casos de gonorreia resultantes de intensivas campanhas nocturnas psico-sociais, não foi de modo algum aceite por um expert na sanidade das bajudas de Mampatá.

(ii) Ao meu companheiro de colégio lisboeta Mexia-Rambo-Alves (**) por não lhe ter feito chegar às mãos os azimutes da zona em que os Ui!Ui! viviam, por simples e miserável inveja, de que ele com as minibazucas de bolso compradas na estranja (as minhas eram marca Sagres da Manutenção) viria a abater os maiores exemplares de entre os Ui!Ui!

Um abraço amigo do José Belo.

Estocolmo 20/10/09

3. Comentário do Zé Teixeira, a pedido dos editores:

Um pouco de graça faz bem para baixar a tensão de alguns camaradas. Confesso que não conhecia esta veia do Belo.

Vou tenta explorar os LM - os tais comprimidos que davam para tirar dores de unhas encravads até às dores de cabeça, passando pela composição do 1214, o célebre composto à base de tintura de iodo e LM, um excelente remédio para caspa. Melhore que as meias da Casa Baiona, pois estas só davam da ponta dos pés até à porta da c...

Amanhã digo alguma coisa

Abraço.
José Teixeira
____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série:

20 de Outubro de 2009 >Guiné 63/74 - P5135: Humor de caserna (14): Curiosidades zoológicas: Os Ui!Ui!, animais nocturnos, do tarrafo do Rio Grande de Buba (José Belo)


(...) É sem dúvida um dos animais de maior porte e com a mais bela pelagem escura de todos os que vivem no Sul da Guiné. O seu habitat natural limita-se a um triângulo que, grosso modo, tem os vértices em Empada-Buba-Mampatá, sendo as suas maiores concentrações junto às margens do rio grande de Buba.

Animal nocturno, extremamente tímido, e de muito difícil observação, é só nos períodos do ano em que as águas põem a descoberto enormes quantidades de ostras (alimento favorito dos Ui!Ui!) que os mesmos se conseguem abater. As suas peles, pela sua qualidade e beleza, vendem-se caro. Servem de perfeitos cobertores, casacos, tapetes, ou simples decorações. (...)


(**) Vd. poste de 19 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5132: Humor de caserna (13): Rambo uma vez, rambo para sempre (Joaquim Mexia Alves)

Guiné 63/74 - P5145: Agenda Cultural (35): Anos 70 Atravessar Fronteiras, exposição no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Outubro de 2009:

Malta,
Fui à exposição e o Amílcar Cabral apanhou-me de surpresa.
De acordo com o catálogo, já fora exposto na exposição “Retratos de Amílcar Cabral”, Ar.Co, Lisboa 1977.

Para quem quiser ir recordar o antes e depois do período revolucionário, não há melhor.

Um abraço do Mário


Amílcar Cabral numa exposição da Gulbenkian
Por Beja Santos

Decorre no CAM – Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, na Gulbenkian, uma exposição intitulada “Anos 70 atravessar fronteiras”, comissariada pela investigadora Raquel Henriques da Silva. Visitei a exposição à procura de mais informação sobre o reflexo da sociedade de consumo nas artes plásticas, cujas primeiras expressões datam dos anos 60. Se é verdade que a generalidade dos artistas entrou em oposição ao regime, no final dos anos 50, importa realçar o papel dos novos mecenas, do aparecimento da Fundação Gulbenkian, de coleccionadores e de tecnologias que vieram a permitir a acessibilidade da arte (caso da gravura e da serigrafia e das novas ousadias do desenho gráfico). A arte dos anos 60 para os anos 70 projecta esses múltiplos sonhos: a arte pop, a desconstrução do objecto de consumo, a proliferação das galerias de arte para satisfazer novas clientelas ávidas dos novos sinais de uma arte que tratava a fotografia, a colagem, os tecidos, os novos materiais como o spray, que punha em código desafios como os direitos humanos, as expressões afectivas, a sátira consumista, por exemplo. Os anos 70 são decisivamente marcados pelo 25 de Abril, e as novas profissões de fé políticas, mas tolheram experiências inerentes ao novo mundo do consumo e respectivos valores de civilização. Ia, pois, à procura de temas da minha profissão, revisitar artistas admirados como Lurdes Castro, Carlos Calvet, Eduardo Nery e Sá Nogueira, entre outros.

É nesta deambulação que fui confrontado com o retrato de Amílcar Cabral, datado de 1977, em tinta celulósica, de Noronha da Costa. Luís Noronha da Costa é considerado um dos mais originais artistas do século XX e seguramente um dos mais prolíficos. Tudo experimentou: fotografia e cinema; o acasalamento dos objectos com e sem a tela; a tensão permanente entre a luz que jorra e ilumina vários pontos do quadro no meio da neblina e dos esfumados. Um verdadeiro artífice, impaciente, atrevido, jogador das formas e das cores, manipulando as técnicas da performance e as evocações da arte multiplicada, reprodutível, tipo Andy Warhol.

Aqui fica pois um convite para ir ver uma fotografia de culto de Amílcar Cabral reinventada em tela fotossensível por Luís Noronha da Costa. Faz parte do nosso património, temos que ter orgulho nesta intenção de um grande artista português.
__________

Notas de CV:

Vd. poste de 21 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5139: Notas de leitura (30): Batalhas e Combates da Marinha Portuguesa, de Saturnino Monteiro (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 16 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5114: Agenda Cultural (34): A China de Ontem e de Hoje. Conferência proferida por António Graça de Abreu no dia 13OUT09 (Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P5144: Historiografia da presença portuguesa em África (25): A Literatura colonial guineense (Leopoldo Amado) (II): A primeira tipografia em 1879

A literatura colonial guineense (2)

Por Leopoldo Amado

Desde a primeira tipografia em 1879, até à década de 30 do século XX

O último quartel do século XIX foi deveras decisivo para a colonização portuguesa da Guiné, pois que ante a resistência dos guineenses e a cobiça estrangeira, Portugal foi obrigado a acelerar os seus propósitos de colonização com a implantação compulsória da administração e a criação de um mínimo de infra-estruturas que garantissem a soberania sobre o território. Em 1870 Portugal saiu vencedor da disputa por Bolama em que se vira envolvido com os Ingleses, mediante a sentença arbitral do Presidente norte-americano, Ulisses Grant. Criaram-se então as condições para a autonomização administrativa do território, até aí sob tutela do Governo-geral de Cabo Verde. Assim, em 1879, a Guiné tinha ganho o estatuto de Província e Bolama, que em 1871 tinha ganho estatuto de Concelho passa a ser a capital da Província, passando o Governo da Guiné a preocupar-se mais com as guerras de pacificação e consequente implantação da administração, processo esse que se estendeu, grosso modo, até aos finais da década de 30 do século XX.

Dominada (?) a resistência dos africanos, temperadas as desavenças, os colonos entregaram-se às tarefas mais prementes como, por exemplo, a instalação da tipografia em 1879 e a criação do Boletim Oficial da Guiné em 1880 que, não obstante alguns pequenos hiatos, foi publicado ininterruptamente até 1974. E o que as agruras do clima e as guerras de pacificação não conseguiam fazer, alcançava-o o anseio do tempo memorial vivido, a sombra de um passado esfumado ao longe, como atestam os primeiros jornais publicados na Guiné: Ecos da Guiné em 1920, A Voz da Guiné em 1922 e Pró-Guiné em 1924. Estava-se ainda na fase em que a saudade da terra-mãe gravitava em volta dos demais temas e motivos de literatura jornalística ao mesmo tempo que a apologia do desenvolvimento colonial era a tónica omnipresente.

Vivia-se até dos rescaldos decorrentes da implantação da República na metrópole, tanto mais que dois desses periódicos pioneiros, A Voz da Guiné e o Pró-Guiné se intitulavam, respectivamente, de quinzenário republicano independente e órgão do Partido Republicano Democrático. Raras vezes se fazia referência à população africana, pois era bastante diminuta, senão insignificante, a sua presença na vida urbana colonial, na qual, aliás, era somente a tolerada pelos serviços domésticos que realizavam junto dos colonos. Quando se dizia entusiasticamente que quando alcançarmos a meta das nossas mais caras aspirações, erguendo bem alto (...) o nome de Portugal..., faziam-no por exclusão de partes; decerto não pensavam na população africana que ainda não tinha conquistado qualquer outro estatuto social que não o de selvagens.

Se por um lado se assistia ao surgimento, ainda ténue, daquilo a que se poderia impropriamente chamar elite africana, por outro, a embrionária cristianização ainda não tinha desabrochado os seus frutos. O agente da administração, o soldado e o comerciante estavam todos entregues a uma vida enfadonha de procura de posses a que também os missionários não foram alheios. Era isso que reflectia a imprensa da época: um ambiente em que proliferava a maledicência, onde uma multidão burocrática efusiva se projectava nos jornais, uns contra os outros, em ataques e contra-ataques; em suma, um ambiente que denotava fortemente o sentimento generalizado de degradação moral e política a que estavam sujeitos os colonos na Guiné.

Daí que não se produziu literatura no sentido estrito da palavra, salvo algumas manifestações poéticas (poucas) que, mesmo assim, pouco ou nada tinham de africano. Era, pois, a fase da saudade, a saudade que os consumia porque além da inexistência de uma atmosfera propícia ao fluxo cultural recíproco entre europeus e africano - agravada ainda pelas guerras de pacificação –, o ethós curioso do colono foi insensível ao conhecimento das balizas do mundo, do diferente e, paradoxalmente, até do exótico. Nem a magnificência do cenário, de fascínio quase narcotizante aos olhos europeus da altura foi capaz de despoletar manifestações literárias, nem mesmo aquelas empapadas de exotismo como as produzidas, por exemplo, no mesmo período, em Angola ou Moçambique. Quando em Março de 1922 O Século publicou uma notícia que dava conta que um médico brasileiro provou ser capaz de mudar indivíduos negros em brancos, A Voz da Guiné comentou o facto da seguinte maneira: "... Ora lavre lá dos tentos o Senhor Oclávio, e faça rapidamente, essa maravilha, porque nos livra deste grande mal: a dúvida em que estamos sempre de quais serão os pretos... Mas por favor, não os deixe com malhas". De resto, é evidente a ousadia e a sem cerimónia com que foi publicado este comentário, o que só prova a inexistência na época de uma elite africana esclarecida que pudesse desencorajar a sua publicação.

É que na Guiné da época, já o dissemos, as condições de inserção social do africano na sociedade colonial não foram de molde a que isso pudesse acontecer, à semelhança, por exemplo, do papel precursor e catalisador que teve a Revista Luz e Crença em Angola, revista essa que impulsionou a criação da Associação Literária Angolense. Tanto assim era o ambiente de relacionamento entre portugueses e africanos que nas primeiras décadas do nosso século não surgiu nenhum guineense que merecesse o designativo de continuador da obra de Marcelino Marques Barros, figura importante do último quartel do século XIX que, em nossa opinião, terá lançado os germens da identidade nacional guineense, à qual está indiscutivelmente ligada a sua opção de estudo do crioulo e de algumas línguas nacionais.

Nem mesmo o escuro e obscuro português, como o próprio Honório Barreto se intitulava, foi tão longe em matéria de nacionalismo como Marcelino Marques de Barros, não obstante se deverem àquele as constantes denúncias do racismo colonial, hesitantes embora, dado os cargos que desempenhou em colaboração com o sistema colonial. Como repetidas vezes já dissemos, as condições de inserção do guineense na sociedade colonial eram muito reduzidas, salvo casos muito pontuais. E a provar isso recorremos ao artigo segundo do decreto número 16.473 de 6 de Dezembro de 1922, que pregava: para efeitos do presente estatuto são considerados indígenas os indivíduos de raça negra ou dela descendente que, pela sua ilustração e costumes, se distingam do comum daquela raça; e não indígenas, os indivíduos de qualquer raça que não estejam nestas condições. Como se pode ver por esta disposição legal, estavam criadas as condições jurídicas para a marginalização social do guineense, se considerarmos a clivagem institucionalizada e ainda o grau de instrução, que era quase nulo.

Quanto à cristianização, também não prosperou significativamente. Cacheu, que antes de 1932 era o centro religioso mais importante da Guiné, tinha pouco mais de mil devotos que, mesmo assim, amiúde regressam às suas práticas religiosas tradicionais. A escola-oficina da Missão de Bolama, instituição que mais produziu guineenses letrados na altura, foi fundada em 1933, quando Cacheu, até então considerada como o apanágio da designação Roma da Guiné, perdeu o papel de primazia ante a importância religiosa que Bolama adquiriu devido essencialmente à emigração em massa de caboverdianos.

Antes da chegada em massa de caboverdianos, de facto, a bifurcação entre a sociedade guineense e a colonial era bastante mais acentuada. Foi o elemento étnico caboverdiano que aproximou as duas componentes sociais que coexistiam quase separadamente. E não foi por mero acaso que tal foi possível: a chegada em massa de emigrantes caboverdianos foi encorajada pelas autoridades coloniais com o fim de propiciar a miscigenação cultural e biológica, pensando erradamente – como mais tarde se provou – que o ambiente dela decorrente iria ao encontro dos propósitos do sistema colonial. Curiosamente, a emigração massiva de caboverdianos para a Guiné coincidiu no tempo com um período de menos tensão social, pelo que pode ser tido como um marco de referência no processo de implantação da colonização efectiva na Guiné, sem receio de exagerarmos, pois basta ter em conta o peso dos caboverdianos na administração colonial da Guiné.

Ora, se é verdade que a emigração cabo-verdiana para a Guiné provocou grandes alterações na estrutura social que prevalecia antes, não é menos verdade que, por outro lado, a sua presença e posição social terão facilitado a crioulização social em toda a Guiné. Assim, se por um lado o contacto entre caboverdianos e guineenses foi salutar graças às afinidades históricas e linguísticas (prova isso que ambos eram subjugados pelo colonialismo, pelo que decidiram lutar juntos pela sua libertação), por outro, os guineenses não viam com bons olhos a identificação e, em alguns casos, a colaboração que os caboverdianos, na verdade, prestaram ao aparelho colonial--administrativo na Guiné. Porém, hoje que a reminiscência do passado colonial tende a revelar-se menos forte do que a vontade dos povos em se entenderem, torna-se um imperativo inadiável a necessidade de enquadramento cultural das contribuições valiosas de características coloniais que alguns caboverdianos assinaram, sendo de destacar no domínio literário os exímios romancistas Fausto Duarte e João Augusto Silva, e no ensaio, Juvenal Cabral (pai de Amílcar Cabral) e Fernando Pais de Figueiredo (7).

No que diz respeito aos guineenses, se exceptuarmos os estudos de Marcelino Marques Barros e alguns artigos de Caetano Filomeno de Sá com interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial, somos forçados a admitir que aos guineenses, a política colonial nunca permitiu o acesso em massa à cultura e à instrução, o que explica em medida considerável as razões porque na Guiné colonial não terá existido um movimento literário ou cultural que pudesse de algum modo constituir-se no embrião da literatura nacional, à semelhança, por exemplo, de Vamos descobrir Angola ou do movimento Claridade, no caso caboverdiano. Estamos mesmo em crer que aos guineenses não foram abertos outros caminhos que não o da resistência contra a colonização, mesmo depois de terminadas as guerras de pacificação (8).

Escusado é pois dizer que as condições nas duas primeiras décadas não eram propícias ao florescimento literário. À excepção de alguma actividade jornalística que esporadicamente publicava uma poética saudosista-colonial, que saibamos, não foi publicado qualquer outra obra literária colonial além do poema Desejo Mórbido de Maria Archer e Mariazinha em África*, de Fernanda de Castro. Aquela, sequiosa de exotismo tropical, canta prodigiosamente os mistérios do sertão ao mesmo tempo que estabelece os contrastes entre a metrópole e a Guiné. Como quer que seja, Maria Archer figura como a primeira literata-colonial guineense e o seu poema Desejo Mórbido, data de 1918.

Foi, na verdade, Fernanda de Castro (s) quem, deliberadamente ou não, introduziu, se se quer, uma literatura social na qual era tida em linha de conta a realidade da sociedade guineense e colonial da altura. Ousamos mesmo dizer que a produção literária-colonial desta autora inaugurou – do ponto de vista historicista – um novo período, não só devido à introdução de um discurso literário novo, como também pelas transformações sociais e sociológicas de que a sua produção literária-colonial são o prenúncio, o testemunho e o reflexo. As reedições aumentadas, mas sobretudo alteradas, do best-seller Mariazinha em África (9) conferem uma particularidade flagrante aos escritos desta autora, na medida em que permitem-nos discernir as atitudes do Estado Novo perante a política colonial da Guiné. Além disso, não é apenas o exotismo, o paternalismo e o desconhecimento do outro civilizacional que faz da produção literária-colonial uma peça-chave para a compreensão das metamorfoses da política oficial de que também comungava Fernanda de Castro (10). É, digamos assim, a idiossincrasia com que encarou a sua produção literária-colonial, o que a forçou nas reedições havidas a alterações ideográficas de fundo, de forma a se equidistar do Estado Novo que, paradoxalmente, apregoava a multirracialidade. O racismo colonial, hábil, tinha também uma actuação e respectiva teorização correspondente. Nuns artigos que publicámos no jornal Angolê – Artes & Letras, demonstramos através de um estudo comparativo de diferentes edições de Mariazinha em África a forma como ela foi procedendo a uma gradual suavização da visão colonial ou colonialista do negro-africano, ou seja, da carga conceptual e preconceitual pejorativas.

Já escrevemos algures que o livro de Fernanda de Castro Mariazinha em África teve mais de um dezena de edições que percorreram gerações, e a autora vangloria-se quando diz que «este livro está certamente entre os livros mais vendidos em Portugal». Ora, se por um lado o facto se deveu à capacidade da autora enquanto escritora, por outro também é verdade que o facto de ter sido mulher de António Ferro (braço direito de Salazar) valeu-lhe intervenções públicas de particular interesse. Outro aspecto importante que ressalta dos escritos coloniais de Fernanda de Castro é o deles serem, em termos de intriga textual, factos arrancados à vida real a que não falta um certo teor autobiográfico, que derrapa, regra geral, em construções artificiais, empapados de elementos misteriosos – onde os nomes e as designações geográficas, mesmo quando verdadeiros, apenas figuram como criadores de uma atmosfera exótica.

Depois de Fernanda de Castro, seguir-se-ia um hiato até 1931, altura em que surge o primeiro jornal editado por um guineense. Trata-se de Armando António Pereira, de quem já recolhemos depoimentos para futuros trabalhos. O periódico em causa, O Comércio da Guiné representava não só os interesses comerciais da colónia como também atribuía uma grande importância aos aspectos culturais em geral. Depois do hiato a que já fizemos referência, O Comércio da Guiné aparece como corolário duma situação ambiental de menor tensão social e racial, decorrentes dos problemas que a resistência africana provocava e que absorvia quase totalmente o governo colonial. Doravante o Governo da Guiné tem unicamente a orientá-lo as exigências da nacionalização da colónia e o estabelecimento de condições indispensáveis ao florescimento do comércio colonial. É neste contexto que Bissau ganha rapidamente importância como porto de óptima navegação, e dela resulta o grande movimento comercial no seu interior, donde o reassumir da sua importância em relação a Bolama (11). Em termos da chamada política indígena, passa-se paulatinamente a uma fase que chamaríamos assimilacionismo, pois começou-se a vislumbrar na política colonial da Guiné a tendência para a aproximação social de alguns guineenses com fins previamente visados. Foi nestas condições histórico-sociológicas que O Comércio da Guiné surge em Bissau, em 1931, sendo dirigido por Armando António Pereira, talvez o único guineense com formação superior na altura.

Todavia, convém que se diga, O Comércio da Guiné não se afastou muito do discurso colonial, apesar de se ter assumido, vagamente, como defensor dos interesses indígenas (sic).

No que concerne à produção literária-colonial, O Comércio da Guiné publicou alguma poética que, também, pouco ou nada tinha a ver com a Guiné. No domínio do ensaio destacou-se Fausto Duarte, que também era repórter, cronista desportivo e colunista. Nomes como o de Juvenal Cabral, Alberto Gomes Pimentel e Álvaro Coelho de Mendonça, figuram n' O Comércio da Guiné como autores de inúmeros artigos com algum interesse de estudo na perspectiva da Literatura Colonial. Embora se intitulasse de órgão dos interesses da colónia, O Comércio da Guiné transcendeu largamente os objectivos primeiros da sua fundação. Foi nele que Fausto Duarte começou a revelar os seus talentos de escritor colonial para mais tarde se transformar, em nossa opinião, no melhor e mais esclarecido romancista guineense. Por ocasião da primeira exposição colonial de Paris de 1931, O Comércio da Guiné dedicou um número especial ao evento, onde se destacou a etnografia guineense, os aspectos tradicionais da cultura guineense e ainda um artigo intitulado “Literatura Colonial”, não assinado, mas que supomos ser da autoria de Fausto Duarte. Este artigo representa por parte do autor uma consciência profunda dos aspectos teóricos e definicionais da Literatura, além de demonstrar que a década de 30 era caracterizada por um novo discurso literário para o caso guineense; um período em que a Literatura Colonial da Guiné, influenciada pela Literatura Colonial francófona, ia aos poucos relegando para segundo plano a faceta eivada de idealismos, de conceitos morais doutrinários, para se interessar pelo folclore africano... (12).

Em 1931, Afonso Correia publica o livro Bacomé Sambú (13). Trata-se, antes de mais, de uma obra deveras paternalista e exótica, em suma, um misto de ficção, romance e etnologia sobre os nalús. Bacomé Sambú, que é o protagonista da intriga textual, era um nalú a quem o administrador apadrinhara e acarinhava longamente a sua timidez, a sua inocência, encaminhando-o na vida, ensinando-lhe a língua portuguesa com uma paciência que tinha algo de evangélica. Deste extracto sobressai imediatamente o paternalismo feroz, produto de uma mentalidade estigmatizada e verdadeiramente colonial. Ao longo de toda a obra é-se forçado pelo autor a admitir que Bacomé Sambú não é preto mas sim pretito, isto é, duplamente diminuído, donde a necessidade de apadrinhamento da sua tribo/raça pelo administrador ou pelos colonos. Por isso, a dado passo escreveu: “Bacomé estava já no caminho amplo das leis dos brancos, aprendendo com eles a raciocinar sobre a vida e encontrando-se à sua protecção para viver farto e feliz(14) . Estava-se pois na fase do assimilacionismo colonial e Afonso Correia, amiúde, punha na boca das suas personagens uma espécie de auto-convicção da sua inferioridade nata em relação aos brancos. A par disso, associa os conceitos ocidentais de miséria e felicidade à análise que efectua sem qualquer relativismo cultural, de resto, muito comum na literatura colonial de então. Ao mato, associa todo um imaginário preconcebido ou estereotipado de perigo, do negro – sintomaticamente a cor do guineense –, da fauna selvagem, do exotismo e mistério, do medo e do tédio.

Porém, não recusamos a hipótese dum certo enraizamento africano de Afonso Correia tendo em linha de conta algumas incursões que efectua e bem sobre a psicologia nalú. Por outro lado, somos forçados a considerar a obra deste autor como um caso típico de retrocesso ideográfico em relação ao contexto histórico-cultural da sua época. Tanto assim é que, na sua obra, Afonso Correia recorre aos termos de referência obrigatória com que a Literatura Colonial dos primeiros tempos caracterizava o africano. São eles a indolência (insensibilidade moral, indiferença, apatia, inacção e ócio), os excessos (o sexo, a gula e a extravagância) e, por fim, a irresponsabilidade (que pregava que o negro é uma grande criança) e a sofreguidão (que atribuía ao negro a adjectivação de bêbados incorrigíveis). De resto, Bacomé Sambú é uma obra algo enfadonha que, como opinou 0 Comércio da Guiné, “serve-se de um enredo fantasista em que aparece a paisagem matizada de Cacine e a descrição dos usos e costumes pitorescos dós nalús. As observações ligeiras que enfeitam todo o motivo estampam-se numa prosa escorreita, despreocupada(15).

Quanto à imprensa, a década de 30 nem por isso foi fértil. Ao Comércio da Guiné sucederam três outros jornais, todos de número único e sem qualquer importância para o sujeito em estudo. Foram eles, respectivamente, o 15 de Agosto (1932), Sport Lisboa e Bolama (1938) e A Guiné Agradecida (1939).

Ainda na década de 30, António de Cértima revelou-se um escritor colonial de talento. Inicialmente como colaborador d' O Comércio da Guiné e, mais tarde, como cônsul português em Dakar, onde escreveu lindos poemas e prosas de inspiração guineo-senegalesa com muito interesse de estudo. António de Cértima foi autor do maravilhoso livro de viagens Sortilégio Senegalês, onde, numa amálgama de nacionalismo pátrio e algum enraizamento guineense, construiu todo um postulado teórico da sua visão colonial, numa narração plena e multímoda.

Mas foi sobretudo Fausto Duarte que, depois de ter chegado à Guiné em 1928, revela em 1934 com seu livro Auá** uma Guiné diferente daquela que fora pintada na Literatura Colonial até aí (16). As suas funções de agrimensor permitiram-lhe rapidamente um contacto profundo com as populações da Guiné, pelo que partiu, antes de mais, da identificação cultural do povo guineense para encetar uma incursão romanesca que revelou, de forma singular, um conhecimento não só das componentes sociocultural e linguística, como também da sua articulação intrínseca. Tal proeza originou por parte de Benjamim Pinto Bull uma atitude intelectual em que, sem hesitações, coloca Fausto Duarte entre os primeiros, senão mesmo o primeiro, a lançar as sementes de uma identidade nacional (17). Não obstante congratularmo-nos: em parte com Benjamim Pinto Bull, restam-nos as naturais reservas que nos sugerem o estudo global da produção literária-colonial de Fausto Duarte. Não há dúvidas de que Fausto Duarte apostou estranhadamente na descrição romanesca e omnipresente do confronto civilizacional, mas, por exemplo, em Auá descortina-se um paternalismo algo tímido na penetração nos valores culturais guineenses. Ora, Benjamim Pinto Bull atribui isso à vigilância da PIDE (18). Todavia, estamos em crer que a atitude de Fausto Duarte não se deveu unicamente ao poder dissuasivo da polícia política, mas também às condições ambientais da época em termos de visão que se tinha do africano. A provar isso está bem patente nas páginas do seu livro Foram Estes os Vencidos o seu paternalismo relativamente aos africanos. Igualmente, encontramos em Negro sem Alma considerações que denotam fortemente a existência em Fausto Duarte uma espécie de preconceito interiorizado. Senão vejamos: “...o instinto sanguinário adormecido na alma dos pretos despertou com inaudita violência...(19) ou ainda “...abandonando-o, o negro é um pobre corpo sem alma, um vagabundo nostálgico que caminha titubeante atraído pela sombra como as térmitas(20). Por outro lado, não esqueçamos que Fausto Duarte era mestiço, elemento que não era totalmente aceite nem pelos africanos, nem pelos europeus no contexto colonial, donde, talvez, a sua ambivalência e ambiguidade cultural. Seja como for, Fausto Duarte revelou-se como um conhecedor profundo da Guiné assim como da alma guineense. Também é certo que nenhum outro escritor colonial logrou atingir a plenitude das narrações sobre a Guiné que o seu punho brilhante impregnou nas suas obras. De facto, a sua produção literária-colonial foi revolucionária dentro do contexto colonial guineense, pelo simples facto desse autor possuir um poder de observação sociológica extraordinário e, ainda, uma paradoxal consciência de africanidade que se lhe pode atribuir sem reservas.

Por ocasião da primeira exposição colonial portuguesa no Porto, em 1934, Fausto Duarte foi prelector do seguinte tema: “Da Literatura Colonial e da Morna de Cabo Verde”. Descortina-se neste casamento temático, de alguma forma ligado por elos culturais, a tentativa de demonstrar que a Literatura Colonial e a Morna são ambas de mesma raiz cultural – a portugalidade dos trópicos. Não é nossa intenção problematizar aqui a fundamentação desta suposição que não cremos descabida de todo. Tão-somente queríamos chamar a atenção do quid híbrido de Fausto Duarte, o que abona em favor da tese que até aqui temos sustentado, sem anular a nossa profunda convicção de que Fausto Duarte também possuía a consciência da identidade cultural guineense, mas algo que se aproxima em muito daquilo a que hoje se chama, convencionalmente, de protonacionalismo.

Ora, o mérito de Fausto Duarte vai ainda mais longe. Era, digamos assim, o grande teorizador da ideografia literária-colonial, à qual associava um discurso de apelo à justiça ou, se quisermos, moralista: “...não se faz psicologia; descreveu-se apenas a floresta virgem, as cruéis fadigas da jornada, à medida que o litoral se confundia com a linha do horizonte. Os indígenas eram tão-somente animais de uma outra espécie, sem sensibilidade para amar, sem inteligência para compreender (...) depois procurou-se o horrível e o extraordinário. Surgem romances de aventuras que nos pintam o negro como o maior inimigo da selva, em constantes hostilidades. E a mulher indígena apaga-se ante os preconceitos aristocráticos. O amor entre eles tem apenas uma finalidade objectiva. Falta a justeza da expressão nessas literaturas incipientes. Adeja sobre a África uma incompreensível fatalidade (...) é necessário antes o contacto directo com a sua mentalidade, perguntar-lhe a vida e compreender-lhe as superstições(21). Em 1945, Fausto Duarte fecha o seu percurso literário colonial com o livro intitulado A Revolta. Mais que um romance, esta obra é um preciosíssimo documento histórico para a História cultural e das mentalidades subjacentes às guerras de pacificação pois, à semelhança das restantes, privilegia o confronto cultural, desta vez não só entre portugueses, guineenses e caboverdianos, mas fundamentalmente entre as diferentes identidades da Guiné.

Em 1935, Landerset Simões, que exercia funções administrativas e posteriormente militares, publica a Babel Negra, sem dúvida um livro de incalculável interesse, e talvez dos estudos etno-antropológicos cientificamente melhor elaborados sobre a Guiné. Por se tratar de uma espécie de antologia etnográfica e etnológica da Guiné, apresenta algum interesse do ponto de vista literário. E porque remete os leitores para uma ancestralidade étnica remota, que se reporta à História da Guiné e suas populações, Babel Negra figura como a primeira tentativa de desmistificação histórica num contexto ideográfico e cultural em que era lugar-comum supor-se que os africanos não possuem a escrita e, consequentemente, a História. Pela primeira vez um autor colonial debruça-se sobre a arte guineense com postulados metodológicos e conceptuais que se opõem diametralmente às ideias que na Europa se ventilavam sobre a arte africana.

Um ano depois, em 1936, João Augusto Silva publica África – da vida e do amor na selva, que obteve o primeiro prémio de Literatura Colonial. A par das obras de Fausto Duarte, ela surge como uma das obras que mais intensamente penetrou a psicologia e a cultura guineenses. Porém, o grande mérito desta obra reside no facto de ser um testemunho vivo das vicissitudes da implantação da administração na Guiné, além de representar um retrato, bem conseguido, da sociedade colonial da década de 30. Diz o autor – e com razão – que a colonização é feita pelas mais desvairadas gentes, desde os revolucionários e bandidos políticos que para ali foram, pacatamente gozar as recompensas que os seus grupos lhas concederam, até àquelas generosas almas que procuram em África o esquecimento das misérias terrenas (...) deste forçado entrechocar de educações e sensibilidade, nasce uma sociedade odiosa, onde, quase sempre, triunfam aqueles que deviam ser postos à margem dela, pelos seus crimes, suas vilanias e a sua desprezível moral (...); e só vivem para explorar o negro, maltratá-lo... (22)

OBS:-Subtítulo da responsabilidade do co-editor
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3565: A literatura colonial (1): Fernanda de Castro ou a Mariazinha em África, romance infantil, de 1925 (Beja Santos)

(**) Vd. poste de 10 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3716: A literatura colonial (2): Auá, novela negra, de Fausto Duarte, uma obra-prima (Beja Santos)

Vd. primeiro poste da série de 22 de Outubro de 2009 > Guiné 63/74 - P5141: Historiografia da presença portuguesa (24): A Literatura Colonial Guineense (Leopoldo Amado) (I): Introdução