Camaradas e amigos,
Depois de algum trabalho aqui estou a fazer o primeiro envio de material feito com cuidado. Não quer dizer que o que enviei anteriormente o não fosse mas este é, talvez, mais elaborado. Claro que tudo isto tem várias histórias (*)...
"Noite Longa em Contabane" foi-me pedido por Carlos Fabião creio que em 1983 ou 84, não estou bem certo. Encontrei-o após a Manif do 25 de Abril, ele tinha sido o orador ali no Rossio representando a Associação 25 de Abril. Na altura trabalhava no Guia do Terceiro Mundo com outros militares ligados ao 25 de Abril. Tiveram a ideia de publicar depoimentos sobre a Guerra com a intenção de que essa recolha, um dia mais tarde, pudesse ser objecto de consulta. Isto foi-me explicado quando estranhei a escassa tiragem do livro (creio que 2500 exemplares). Pois, no que me diz respeito, esse dia chegou...
Digitalizei o texto bem como fotografias que gostaria que fossem intercaladas no mesmo.
(Terei que enviar novo e-mail com mais fotos... O sistema já me avisou que atingi a capacidade máxima...)
Até já
CNery
***
Ontem (hoje, claro) estava cansadíssimo (acabei por me deitar já passava das 06:30...) e faltou dizer algumas coisas...
Enviei, como viram, o texto "Noite Longa em Contabane", o tal que escrevi a solicitação de Carlos Fabião para ser publicado na tal colecção "Memórias da Guerra Colonial" bem como o Relatório do Ataque a Contabane, também redigido por mim, respigado da História da Unidade da CCaç 2382.
Acho engraçado comparar os dois textos, um que pretende ser literário, pleno de adrenalina, de medo e de emoção, e o do Relatório, que pretende ser objectivo, frio e técnico... Receio que a minha "encomenda" ocupe excessivo espaço mas acharia graça que viessem ambos juntos.
Pronto, era isso...
Mais um abraço para vocês.
CNery
NOITE LONGA EM CONTABANE
por Carlos Nery Gomes de Araújo
Foto 1 - Pontão dos mal entendidos, Guiné 1969
— Morteiro 60?
— Pronto, meu capitão!
— Lança-granadas?
— Presente!
— Dilagrama?
— Estou aqui!
Olhei os homens à minha frente. Trabalhadores rurais, pescadores, empregados do pequeno comércio ou indústria, estudantes.
— Meter uma bala na câmara!
O ruído das culatras das G3 introduzindo os cartuchos nas câmaras fez-se ouvir, áspero.
— Patilhas em segurança!
Os soldados obedeceram. Recém-chegados à Guiné, pouco familiarizados com as armas recentemente distribuídas, sentíamos os camuflados novos flutuando sobre a pele.
— Está «no ir»!
Procurando aparentar segurança, utilizei a expressão ouvida aos veteranos. O dispositivo desdobrou-se numa sinuosa e reticente «bicha de pirilau».
Passámos além dos homens que faziam rolar grossos troncos de palmeira para cobertura de mais um abrigo de combate ou que desenrolavam arame farpado concluindo uma segunda rede de protecção.
— Aumentar os espaços entre cada dois homens!
— Se houver contacto de fogo, não abrir de rajada! Sempre tiro-a-tiro! Disciplina de fogo!
As ordens passavam agora de homem para homem em voz baixa. Naquele início de comissão resumiam o essencial dos meus conhecimentos de contra-guerrilha. Com menos de um mês de Guiné e escassos dias na região do Forreá tudo nos parecia estranho e assustador. Fiávamo-nos nos conhecimentos de mato dos três caçadores nativos que nos serviam de guias (Caç. Nat. na documentação operacional).
Contabane, a tabanca fula à nossa guarda, ia ficando para trás.
Acordáramos sentindo o seu frémito de vida. As mulheres no pilão descascando o arroz para as refeições do dia, num ritmo marcado por bater de palmas e cantares, as crianças brincando, a ladainha na escola árabe, as saudações complicadas dos «homens-grandes» que indagavam uns dos outros o bem-estar de todos os familiares e animais domésticos.
Afastávamo-nos pois daquele agregado humano, das mulheres preparando as refeições, tratando dos filhos ou lavando a roupa na fonte, dos homens partindo para o trabalho em lavra próxima ou orando, prostrados no chão, virados para Meca.
Numa larga «pontuada» atravessávamos zonas de capim seco, de denso «mato escuro», enterrávamos as botas de lona nos cursos de água engrossados pelas chuvas que chegavam. Suspendo o movimento da coluna. O pessoal agacha-se no terreno, armas para fora, perscrutando o mato hostil. O calor é pesado. Desarrolham-se cantis, bebem-se curtas goladas. Moscas minúsculas bailam teimosas à nossa volta insistentes nos nossos ouvidos e olhos. O «ladrar» do macaco-cão ouve-se perto.
Vou à frente procurando aperceber-me da forma como é conduzida a coluna.
– Capitão, há aqui perto uma tabanca abandonada, podíamos ir ver...
Encaro o jovem Caçador Nativo. Apercebo-me que não possui, afinal, a experiência que a princípio lhe atribuíra. Sinto-o imaturo. Afinal um adolescente excitado por acompanhar a tropa, envergando camuflado igual e empunhando uma arma.
Uma tabanca abandonada. Não terá merecido a atenção do inimigo? Mas, nesta região para nós desconhecida, há que estabelecer contacto com o real.
– Vamos lá então ver essa tabanca.
******
Durante anos a guerra passara ao largo da região onde estávamos. No Quebo, baptizado pelos portugueses de Aldeia Formosa, residia o Cherno Raschid, chefe espiritual de vasta área que se estendia para lá da fronteira.
O PAIGC, atendendo, certamente, à sua presença, evitara levar ali a guerra. Mas a guerrilha era portadora de uma ideia nova que, como todas as ideias novas, vinha para dividir.
Os tradicionalistas agarrados a hábitos, costumes e cultura ancestrais recebiam-na com indisfarçável reserva. Outros, seduzidos por essa mesma ideia, desapareciam indo engrossar as fileiras do exército revolucionário.
– Isto é uma guerra entre casados e solteiros... Pessoal casado, com casa, com filhos, não pode deixar tudo.
– Rapaz novo pode abandonar... — dir-me-ia Amadu, milícia em Buba.
Mas, ao aceitar armas aos portugueses, os fulas do Forreá comprometeram a imagem de neutralidade até aí existente. O PAIGC, acusando-os, também, de veicular informações para a tropa, abriu então, violentamente, hostilidades contra as populações que haviam aceitado colocar-se em autodefesa.
Perante os ataques a Contabane e Mampatá e a emboscada a uma viatura em que são «apanhados à mão» vários militares portugueses e passados pelas armas alguns milícias considerados traidores, são deslocados à pressa efectivos para a área.
Foto 2 – Militares portugueses em patrulha
A companhia cujo comando me fora entregue interrompeu assim o seu treino operacional em Bula, a norte de Bissau, e foi enviada para o Sul onde rendeu a 5.ª Companhia de Comandos que, na emergência, ali fora colocada dias antes.
Numa curva de mato denso surge-nos o que resta da tabanca. Naquela zona de África nada é perene. Os vestígios deixados pelo homem cedo são engolidos pela natureza estuante.
Foto 3 – Patrulha do PAICC
O colmo, que cobrira as casas, apodreceu, as chuvas desfizeram as paredes de adobe, a vegetação ameaça tudo invadir. Pretendo estabelecer uma meia-lua de segurança e efectuar um reconhecimento cauteloso. De súbito perco o controlo da situação. Os soldados descobrem, à entrada da tabanca, um renque de vegetação donde pendem, abundantes, ananases maduros e sumarentos As facas de mato brilham em movimentos rápidos e os bolsos dos camuflados enchem-se da dádiva inesperada.
Sinto o perigo desta quebra de disciplina, mas não tenho tempo para actuar. O rebentamento ecoa surdo e violento. Num ápice estamos cosidos à poeira procurando descobrir se somos alvo de algum ataque.
Ninguém se lembra mais dos ananases, embora alguns os sintam esmagar-se entre os corpos e o chão.
- Capitão! Capitão! — Ouço num apelo lancinante.
Procuro descobrir donde vem o chamamento. Caído no caminho de acesso à povoação, rodeado ainda da espessa nuvem negra do rebentamento de uma mina, descubro o jovem caçador nativo que me sugerira «ir ver» a tabanca abandonada.
– Acode-me! Capitão, acode-me!
Vejo-o no seu desespero, sem o pé esquerdo, canela transformada em brutal flor de sangue.
– O enfermeiro! — A ordem percorre os homens ainda de borco.
A resposta chega-me a medo.
– Não veio...
Com os diabos, se há responsável sou eu! Como foi possível esquecer-me do enfermeiro! Ninguém se atreve, no receio de um campo de minas, a ir junto do ferido. Tenho que ir eu. Agarra-se a mim num desespero. Sinto os seus dedos enclavinhados no meu camuflado.
– Salva-me, capitão!
Puxo do meu penso individual de combate. À distância são-me atirados outros. E não sei — ai, não sei!, não, não sei! — como improviso um torniquete, como ligo aquela ferida absurda, descobrindo o que é o cheiro do sangue e sentindo o seu contacto viscoso e espesso nas mãos.
Uma porta meio queimada e duas G3 improvisam uma maca. Peço pela rádio a evacuação do ferido.
Ouço, nítidas, interferências inimigas, na rede, utilizando os nossos indicativos.
Interrompo a comunicação. A tarde cai, os helicópteros não virão a esta hora.
Regressamos, em marcha acelerada, transportando o ferido, carregados de apreensão, no amargo daquele fim de tarde de Junho de 1968.
*******
O inimigo, ultimando a cuidadosa instalação para o ataque que viera fazer, viu ser arredado o cavalo de frisa colocado à entrada de Contabane e sair uma viatura a grande velocidade.
Assistiu ao seu regresso, transportando o ferido que, abandonados os cuidados da progressão a corta mato, trazíamos pela estrada.
Viu também entrar a tropa apeada. Tudo observou sem se revelar. O planeado não sofria alteração, mesmo quando um alvo inesperado se oferecia a escassas dezenas de metros.
Instalar os canhões em posição de tiro directo, colocar-lhes junto as munições a utilizar, lançar um dispositivo de segurança, não é coisa fácil se se não quer ser pressentido.
Fizeram-no e aguardaram o sinal de iniciar o ataque.
******
Recebêramos, dias antes, a visita de Spínola. Acompanhado do seu séquito, descera dos helicópteros que haviam pousado numa aberta junto do arame farpado.
Camuflado de bom corte, botas de cabedal reluzentes, luvas negras, pingalim e monóculo penetrara na tabanca num passo rápido e decidido. As mulheres da população faziam adejar à sua volta lenços e panos coloridos. Afastou, com aparente desagrado, a manifestação de cortesia.
Vinham ainda longe os tempos da guerra psicológica e das suas tentativas de intervenção política «por uma Guiné melhor». Viera falar de guerra, com quem, em princípio, ali estava para a fazer.
Quis ser conduzido ao posto de comando, ser informado da situação. Fez perguntas de que conhecia, certamente, as respostas, tentando avaliar da minha capacidade para assumir a responsabilidade daquela posição tornada subitamente quente.
Por trás dele, Almeida Bruno fazia-me sinais encorajando as minhas respostas certamente pouco satisfatórias.
Foto 4 – Reabastecimentos portugueses. Como passar?
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Cumprindo, em tempo de paz, o meu serviço militar obrigatório, voltara a ser chamado, dez anos depois, para frequentar um curso de comandantes de companhia em Mafra. A medida que a guerra se prolongava, mais escasseavam as «vocações» para a carreira de militar profissional. Nos últimos anos contavam-se pelos dedos de uma só mão o número de inscrições nos cursos das três armas em funcionamento na Academia Militar. Houve, então, que recorrer aos milicianos para assegurar o comando de companhias operacionais.
Abandonada a minha mesa de trabalho num banco da Baixa lisboeta, juntara-me a um grupo de «chefes de família», melhor ou pior instalados na vida que, não escondendo a sua contrariedade, iam ser preparados «à pressão» para assumir o comando de homens nas três frentes de combate em África.
Estranhamente, os nossos instrutores em Mafra só conheciam a guerra da leitura dos manuais ou dos relatos dos seus camaradas com experiência de combate.
Pertenciam ao curso do filho de um ministro de então e esta «coincidência» garantiu-lhes, durante anos, um estatuto de especialistas de contra-guerrilha sem nunca terem ouvido assobiar uma bala em combate.
Foto 5 – Coluna do PAICC
Numa casa de colmo transformada em improvisado posto clínico, o enfermeiro dá soro ao ferido. Há que esperar pelo nascer do dia para proceder à evacuação.
– Um homem de cada abrigo vem buscar as terrinas com o jantar para o seu pessoal — ouço-me dizer, numa inspiração que vai poupar muitas vidas.
Tiro o meu dólmen suado e, de tronco nu, encosto a G3 e aceito um prato de sopa onde mergulho a colher.
Subitamente o lusco-fusco acende-se num turbilhão de fogo. De diversas direcções o inimigo abre o ataque com rajadas de bala tracejante apontada aos tectos de colmo seco das casas.
Em segundos o incêndio alastra por toda a tabanca em grossas labaredas crescendo para o negro da noite que desce. Os canhões sem recuo despejam toda a munição sobre nós. A seguir, os morteiros ajustam também o seu fogo.
Consigo atingir a posição do nosso morteiro 81. Abrigados no círculo definido por bidões cheios de terra, uma mulher com um filho de colo, três rapazitos tentando ajudar no manuseamento da arma colectiva, eu e o alferes Mendes Ferreira. Combatentes inexperientes, sem possuir ainda a serenidade que nos permita detectar a zona de instalação inimiga, inclinamos a olho o tubo e vamos introduzindo, uma após outra, as munições de que dispomos.
Encosto-me inadvertidamente ao tubo aquecido e sofro no peito um vergão de fogo.
Próximo, o paiol improvisado, onde depositáramos a dotação de munições da companhia, é atingido. Aos rebentamentos das granadas inimigas, junta-se o barulho indescritível dos cunhetes de cartuchos e de granadas rebentando em girândola infernal. Balas e estilhaços assobiam em todas as direcções.
A nossa companheira do refúgio foge com o filho agarrado. Esgotadas as munições de morteiro, não faço nada ali e exponho-me a qualquer granada que possa cair próximo.
– Vou ver se encontro uma G3 e procurar atingir um abrigo de combate.
O alferes fará o mesmo, procurando outro abrigo. Corro para a cozinha de campanha onde vira uma arma encostada a um caldeiro.Agarro-a. Custa-me orientar na confusão em que tudo se transformou, perdidos os pontos de referência a que me habituei.
Abrigados junto de uma parede semi-destruída, vislumbro os vultos do jovem guia dessa -tarde e do furriel enfermeiro da companhia.
– Então, como está ele? — pergunto.
– Está porreiro, meu capitão, aguenta-se!
Corro, curvado, para o abrigo que me parece mais exposto ao fogo do inimigo, esperando poder ter aí algum controlo do que acontece à minha volta.
O meu vulto iluminado pelo clarão do incêndio é alvejado. Ouço as balas assobiar à minha volta. Enfio-me no abrigo cavado no chão coberto de troncos de palmeira e de terra batida, extensa abertura permitindo a utilização de armas individuais.
Os homens lá dentro reagem de maneiras diversas. Há quem combata, mas há também quem chore ou reze no chão. Vou para a seteira e incito estes últimos a combater também.
– Estamos a pôr balas nos carregadores... — ouço a justificação frouxa.
O espaço em frente, fortemente iluminado pelas chamas do incêndio que lavra nas nossas costas, é varrido pelos nossos olhos assustados. Sinto, mas sinto claramente, os dentes baterem enquanto disparo, dois tiros rápidos e pausa, em resposta aos clarões das armas inimigas, em frente.
Em combate nocturno fazer fogo é revelar a nossa posição, é dos livros e facilmente comprovável agora. Por outro lado, no escuro, não se vê o ponto de mira da arma, pelo que não é fácil fazer tiro com um mínimo de precisão. Ah, quem tivesse previsto a situação e posto ali um pingo de tinta branca!
Os pensamentos sucedem-se, caóticos. E se eles vêm ao arame farpado? Se o ultrapassam nalgum ponto e se se aproximam do abrigo introduzindo-lhe uma granada de mão?
Julgo ver vultos deslocando-se em direcção ao abrigo. Saio de arma em riste. São vacas que correm em pânico entre as duas fiadas de arame, acossadas pelo fogo do combate.
Volto a entrar. Não sei se consigo sorrir do meu susto. O Boiça, sargento da companhia, desloca-se de abrigo para abrigo substituindo comunicações que desapareceram no incêndio e na confusão.
– Há mortos?
– Não, meu capitão. Só alguns feridos... Há abrigos atingidos por morteiradas, mas aguentaram. Quer que transmita algumas instruções?
– Evitem o tiro de rajada. Respondam aos disparos inimigos com séries curtas de dois ou três tiros. E você não ande para aí a expor-se inutilmente.
– É só levar um pouco de ânimo ao pessoal, capitão, e ver se há falta de munições nalgum abrigo.
O perigo da situação residia, efectivamente, em ficar-se sem munições ou encravarem-se as armas se demasiado aquecidas em resultado de uma utilização sem critério.
O aparente enfraquecimento da nossa resposta encoraja uma tentativa de assalto que é repelida pelo aumento de intensidade dos nossos disparos.
A poderosa tempestade africana chegou, subitamente, feita de grossas cordas de água, relâmpagos e trovões assustadores.
O incêndio extingue-se e, agora, só a luz dos relâmpagos permite vislumbrar a faixa de terreno que nos separa dos atacantes. Em breve, a água acumulada no fundo do abrigo atinge os nossos joelhos.
O fogo dos canhões e morteiros suspende-se, finalmente, substituído pelo das armas individuais que redobra de intensidade.
Sinal de retirada, viríamos a saber.
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Clareia o dia.
Dos abrigos e da mesquita árabe — único edifício de tijolo, cimento e cobertura de zinco — saem militares e elementos da população observando as consequências do ataque.
O incêndio, os impactes dos projécteis inimigos, tudo reduziram a ruínas.
Fatmatá, mulher grande do régulo Sambel, apoia-se no meu braço e chora em silêncio. Rapazitos vasculham procurando entre as cinzas objectos que satisfaçam a sua cobiça.
Comenta-se a precisão e a violência do ataque, contam-se os impactes dentro do recinto defensivo, avaliam-se os prejuízos materiais.
A preocupação maior, porém, são os nossos feridos. Além do Caçador Nativo, vítima da mina anti-pessoal accionada na véspera, há mais três soldados feridos com gravidade e três civis atingidos.
O reconhecimento às posições inimigas, surpreendentemente próximas do arame farpado, revela sinais de corpos arrastados e, apesar da chuva abundante que caiu, vestígios de sangue.
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Nino, comandante da Frente--Sul, o combatente lendário, cruza a fronteira à frente dos seus homens, terminada mais uma missão.
Encharcados pela chuva, carregando canhões e morteiros, os guerrilheiros sentem, também, a dureza da guerra, dureza traduzida nas baixas sofridas. Uma vez mais tinham tomado a iniciativa, ocupando posições necessariamente mais expostas do que as da tropa instalada defensivamente, e isso tinha o seu preço, também.
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Estamos isolados em resultado da destruição de todo o material rádio. Por outro lado, o improvisado posto clínico desapareceu, não dispondo nós, sequer, de meios mínimos para primeiros socorros.
Um civil oferece-se para levar uma mensagem ao quartel mais próximo utilizando a sua bicicleta. Não é necessário.
Somos sobrevoados por jactos da Força Aérea e, pouco depois, dois helicópteros pousam na periferia da tabanca.
Foto 6 – Exército português, Transmissões
Envergando o seu camuflado de pára-quedista, adianta-se uma mulher:
– Os helicópteros vão levar os feridos ligeiros a Aldeia Formosa, regressando imediatamente para recolher os mais graves que vão comigo para Bissau. Embora tenha ordens para nunca ficar em terra, vou abrir uma excepção e espero aqui com vocês.
Junto das quatro macas alinhadas no cenário desolado, contra o céu azul da manhã, Ivone, a enfermeira pára-quedista, é oficiante de um ritual rigoroso. Frascos de sangue vermelho-negro levantam-se ao céu facilitando a passagem do seu conteúdo para as veias dos feridos.
Paro junto do soldado Fortuna, atingido na cabeça por um estilhaço de granada que atingira o seu abrigo.
– Para vocês “isto” acabou. Vais voltar para a terra, até é melhor... ouço-me dizer.
Será evacuado para o Hospital Principal em Lisboa. Talvez tenha terminado a guerra para ele. A que preço?
Ajoelho junto do jovem africano, pouso a mão na sua cabeça, enquanto procuro palavras de conforto:
– Vais ser bem tratado, a tropa não te esquece. Vais para o hospital, vais ter um pé novo, ninguém vai notar a diferença.
As palavras soam-me tragicamente absurdas, sinto na garganta um aperto inenarrável e, com as lágrimas de revolta que me queimam a cara — as minhas últimas verdadeiras lágrimas —, sinto que muito de mim se perde, se perde irremediavelmente.
Carlos Nery Gomes de Araújo
in Memórias da Guerra Colonial,
tomo 2, 1ª Edição,
Andrómeda Publicações,
Novembro 1984
Relatório do Ataque a Contabane, também redigido por mim, respigado da História da Unidade da CCaç 2382.
Fotos: © Ten. Nuno Barbieri do DFE 7 e Carlos Nery (2010). Direitos reservados
Fixação do texto: Carlos Vinhal. Vd. mais referências (14) a Contabane.
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 15 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6392: Histórias de Carlos Nery, ex-Cap Mil da CCAÇ 2382 (1): Nós e os mandingas de Buba, que colaboravam com o PAIGC, e que foram evacuados para Bubaque em Abril de 1969 (Carlos Nery)
Vd. poste de 19 de Agosto de 2008 > Guiné 63/74 - P3141: Venturas e Desventuras do Zé do Olho Vivo (Manuel Traquina) (2): O ataque de 22 de Junho de 1968 a Contabane