1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 21 de Novembro de 2022:
Queridos amigos,
Só apetece dizer que desejo as maiores felicidades para este livro, que seja profundamente conhecido na Guiné-Bissau e amplamente refletido por todos os que prezam a construção da liberdade e da modernidade para aquele belo país. Tony Tcheka tem a coragem de apontar quais os caminhos percorridos pelo mal-estar guineense, logo a incapacidade de se gerar um ambiente sincero de reconciliação e fala-nos daqueles que foram deitados fora pela independência, um potencial atirado para o lixo ou para a diáspora; e quando se põe à frente do pelotão denunciar a monstruosidade da mutilação genital feminina escolhe com precisão um cenário daquele Antoninho que se debotou de alma e coração à luta pela independência, sempre apoiado pela mãe, e a tremenda controvérsia, o choque de mentalidades com o pai, um muçulmano ainda envolvido por tradições obscuras no desprezo pela mulher, a ponto de querer as suas filhas puras e dignas desde que fisicamente mutiladas. Não me cansarei de dizer que é um livro admirável e todas as linhas de combate que ali avultam revelam um escritor de coragem, amante do seu país e do seu progresso.
Um abraço do
Mário
Tony Tcheka, um corajoso denunciador de segredos e mentiras (3)
Mário Beja Santos
A obra intitula-se "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", o seu autor é o jornalista e escritor Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior), nascido em Bissau em 1951, Editorial Novembro, 2022. É muito mais do que uma surpresa literária, ficamos assombrados com a ousadia deste guineense que rompe com mitos, palavras de ordem e dogmas de fé em que a política bissau-guineense é exuberante.
Mas o último conto deste admirável livro tem a ver com outro assunto, a mutilação genital feminina, que Tony Tcheka designa por “Excisadas na flor da vida”. É uma narrativa preciosa, dispõe de um cunho didático que agarra o leitor do princípio ao fim, deixa bem esculpido o contraste entre a modernidade (entenda-se o universo dos direitos humanos, aqui incluído o direito à integridade do corpo) e preconceitos arreigados, hoje inequivocamente associados ao obscurantismo e à falência de um sistema educativo. A figura pivô é Antoninho Sory Dansó, nascido na tabanca de Começada, fez os estudos universitários em Portugal, apoiado pela mãe e desdenhados pelo pai, um Aladje, detentor deste título por ter feito a peregrinação a Meca, implacável opositor à instituição escola.
Progenitores que vieram do Sul, da tabanca de Campeane; Antoninho foi crescendo num mundo de pacatez até que começou a subversão que conduziu à luta armada, os pais deixaram a tabanca, mas os sonhos de progredir nos estudos passaram a realidade, concluiu o ensino secundário, juntou-se a um movimento de libertação, veio depois estudar em Portugal, era um tempo de deslumbramento, “havia um clima contagiante de magia pairando no ar. Independência, hino, bandeira, comícios em kriol, primeiras aparições públicas dos novos dirigentes titulados de Combatentes da Liberdade da Pátria, anunciando programas e projetos de desenvolvimento. Promessa era a palavra-chave nos palanques de longos e patrióticos comícios”.
O tempo passa, convive com os seus patrícios na Quinta do Mocho.
Falar com os seus conterrâneos continuava a não ser fácil, tanto por razões políticas como pelo tema da excisão. Voltou ao país, sentia-se muito prestável, vinha entusiasmado pela reconstrução nacional. Leu e assimilou Amílcar Cabral. Estava a ser bem-sucedido no plano profissional, mas havias as discussões bem azedas com o pai, havia a prometida esposa negociada por este. De início respeitador das crenças tradicionais, Antoninho estava cada vez mais agnóstico, não se conformava com a decisão do pai de impedir as duas irmãs de frequentarem a escola. E não escondia discordar da segregação por sexo, idade, cor da pele, religião e situação social na vida. Havia discussões acaloradas, procurava fazer ver que o Corão não fazia apologia da excisão. Mas parecia uma luta perdida.
Numa das suas visitas semanais a Começada, descobriu que as irmãs não estavam em casa, a mãe lá lhe confessou que tinham sido levadas para a barraca do fanado por ordem do pai. A escrita de Tony Tcheka torna-se ainda mais precisa e comporta a fluidez de um incêndio, traça armas pelos os direitos humanos, Antoninho avança para a barraca do fanado e estala uma grande discussão com as fanatecas. Mas parece batalha perdida, as crianças cumprem o fanado e quando consideradas limpas e purificadas, é-lhes dada a possibilidade de integrar a comunidade, descem à povoação, é como se estivessem a estar preparadas para uma vida digna. Fervem as discussões, quando Antoninho lembra que nos Bijagós não se pratica tal crueldade, o pai responde:
Antoninho regressa a Bissau, deixa a sua mãe triste. E é esta mãe, de nome Trisia Cady Baldé, a quem cabe a derradeira mensagem:
“Nada do acontecido na barraca do fanado varreu o seu sentimento de vitória. Sentia-se invadida por uma mistura de sentimentos. Lá dentro de si, sem o poder demonstrar ou dizer, sentia-se orgulhosa pela atitude e coragem do seu menino. O seu orgulho, moldado num sentimento de porfia ganha que lhe enchia o peito. A sua grande vitória agarrada momentaneamente num mar turbulento com marinheiros que não sonham. O oposto ao seu sonho difícil, mas feito de realidade. Um sonho vivido de olhos abertos, alinhavado ponto por ponto com linhas finas, mas de perseverança. Uma aposta fêmea de coragem e amor imenso de mãe, também alimentada por cada moeda poupada no seu dia-a-dia, sempre suado, e de contrariedades teimosas”.
De leitura obrigatória, para conhecer a Guiné-Bissau atual, os seus dramas, os sonhos da liberdade e desenvolvimento, sonhos que tardam a ser realidade.
Notas do editor:
Vd. post anterior de 27 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25570: Notas de leitura (1695): "Quando os Cravos Vermelhos Cruzaram o Geba", por Tony Tcheka (nome literário de António Soares Lopes Júnior); Editorial Novembro, 2022 (2) (Mário Beja Santos)
Último post da série de 31 DE MAIO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25589: Notas de leitura (1696): Factos passados na Costa da Guiné em meados do século XIX (e referidos no Boletim Official do Governo Geral de Cabo Verde, anos 1855 a 1856) (5) (Mário Beja Santos)