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domingo, 12 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27311: Humor de caserna (215): A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz (José Teixeira, CCAÇ 2381, ex-1º cabo aux enf, Buba, Aldeia Formosa, Mampatá , Empada, 1968/70)


Guiné > Zona Sul > Região de Quínara > Sector S1 (Tite) > Empada > CCAÇ 2381, Os Maiorais ( Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70) > O 1º  cabo aux enf Zé Teixeira em 1969, com a sua namorada, a G3trudes, com quem irá manter uma conflituosa relação que acabará em divórcio. 

Foto (e legenda): © José Teixeira  (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]

 
Humor de caserna > A minha... G3trudes: uma peça em 3 atos e um final feliz

por Zé Teixeira



"O Maioral", Zé Teixeira
(i) Encontro e namoro

Na quinzena de campo, na IAO, que antecedeu a partida para Guiné, deram-me uma companheira, a namorada que, afirmaram, me ia acompanhar durante todo o tempo em que ia estar na guerra. Se houvesse alguma infelicidade, me acompanharia até ao caixão. Era uma G3, a Gertrudes ou a G3trudes.

Disseram-me também para a tratar com carinho. Cuidar dela era cuidar de mim próprio.

Primeiro, trazê-la sempre limpa e asseada, sobretudo o cano, para que a baba, ao tentar sair, furiosa por não conseguir devido a sujidade, não rebentasse o cano. Pois, na pior das hipóteses, as tiras de aço voltavam-se para trás e atingiam o crânio do atirador, mandando-o de volta no sobretudo de madeira.

Segundo, pôr-lhe creme (óleo) nas partes mais sensíveis, para responder rapidamente aos estímulos.

Terceiro, sempre travadinha, para não fazer asneiras.

Quarto, nunca a abandonar, pois, se perdida, dava origem no mínimo, mais meio ano de comissão. O importante era chegar, sempre, ao aquartelamento com a G3trudes.

Durante os primeiros três meses, foi de facto, a minha companheira preferida e inseparável:

  • pendurada no meu ombro, ao lado da bolsa de enfermeiro;
  • deitada a meu lado à sombra de uma árvore protectora do sol e do IN;
  • ou no chão de cimento na caserna em Ingoré.

Antes da partida, prometera a mim mesmo não lhe tocar nas partes sensíveis, porque vomitavam fogo, matavam vidas e isso não fazia parte da minha missão como enfermeiro e muito menos dos meus planos. 

Cantei de alegria, quando soube que as sortes me tinham destinado a ser enfermeiro, convencido que escaparia à guerra pura e dura e que com o meu trabalho iria minimizar dores e, quem sabe, salvar vidas.

Da guerra dura e crua, não escapei, mas cumpri, apesar dos parcos conhecimentos da arte de enfermagem que me proporcionaram, a missão que me destinaram, com dedicação.

(ii) O início do fim de uma relação de amor... impossível

Ao fim de três meses de companhia dedicada, algo de grave se passou que me levou a repudiar a G3trudes para sempre.

Estávamos em plena época das chuvas. Partimos de Buba às seis da matina com destino a Aldeia Formosa,  terra até então desconhecida, onde deveríamos chegar à tarde.

A CCAÇ 1792 veio buscar-nos. Os Lenços Azuis foram, assim, testemunhas no meu batismo de fogo em aquartelamento. Mal chegámos (tínhamos ido ao seu encontro), fomos recebidos com fogo cruzado das duas margens do Rio, mas foi só o susto. Uma amostra do que nos ia esperar no futuro.

Para além de uma enorme coluna de viaturas carregadas com mantimentos, seguiam três obuses de 14 cm. Toneladas de aço a atravessar lamaçais contínuos, pontes montadas e desmontadas por nós e o IN à espreita.

Ao meio da tarde, depois de uma tempestade de... abelhas, quando tínhamos andado apenas uns três quilómetros, uma traiçoeira mina destrói a 5.ª viatura, a das transmissões, levantando uma nuvem de lama. As transmissões terminaram a sua missão.

Ficámos isolados do mundo. Aparentemente, os quatro camaradas que voaram com o sopro, ficaram apenas combalidos, mas um deles, o radiotelegrafista, projectado com o forte impacto, ao cair, ficou ferido interiormente. A morte foi-se aproximando lentamente. A vida dele caminhava para o fim devido à perda de sangue, que não podíamos controlar. Só uma evacuação urgente o salvaria. Tínhamos ficado sem comunicações.

Foram tremendamente dolorosos, para mim e para os enfermeiros das duas companhias, viver estes momentos, horas, de vida, a lutar sem armas, pela vida de um camarada que se apagava. Ele sentia que as forças lhe estavam a escapar. Nós sentíamo-nos impotentes para o salvar. Só o milagre do helicóptero, que não aparecia, porque ninguém sabia, que aquela jovem vida se estava a apagar.

   Já não vejo !    gritava. 

E depois:

  Ajudem-me a levantar   balbuciava ele, mesmo no fim, com a esperança de ainda conseguir recuperar forças e poder gritar bem alto "Safei-me!"... Mas não. Não era possível. O seu destino fora traçado, quando alguém pegou num lápis e riscou o nome dele, assinalando-o para ser mobilizado para a guerra. A guerra que ele não queria...

O sol começou a esconder-se como que envergonhado e o camarada irmão disse adeus à vida, serenamente, sem pressas, em silêncio...

Na azáfama de tratar os feridos, esqueci-me da G3trudes. Foi posta de lado, esquecida, algures. Agora, era preciso procurá-la. Onde ? Tinha-lhe perdido o lugar.

Apareceu uma abandonada junto a uma árvore. Deitei-lhe a mão. Estava safo. E segui caminho.

Uma noite sem sono, com milhares de mosquitos a perseguirem-me e o IN à espreita. Até que o Sol raiou de novo e com ele a ordem de marcha. A partida para o desconhecido. Chão que eu nunca pisara. Lama e mais lama. Mata cerrada. Grandes palmeiras que furaram a selva verdejante à procura do sol, apontavam o céu...

Não demorou muito a aparecer o IN. A coluna era demasiado longa e pesada. Lentamente lá se ia movendo à procura do destino. Deu para emboscarem a frente. Recuaram face à forma como ripostamos e voltaram a atacar a retaguarda.

(iii) Ah! G3trudes de um raio!

Deitado sobre os rodados das viaturas, com o coração a bater como nunca o tinha sentido, escutava o tiroteio que me rodeava, ao ritmo dos rebentamentos das morteiradas que me faziam vibrar violentamente os tímpanos. A G3trudes, a meu lado muito quietinha, quando senti que estava a ser incomodado diretamente. Alguém estava a querer brincar às guerrinhas comigo. As balas assobiavam muito por perto e vinham do alto. Olhei para as palmeiras e vislumbrei fogachos de luz.

A raiva contida, pela morte do camarada, veio ao de cima.

  Ah! G3trudes de um raio! Anda cá!...

Apontar, disparar e... um tremendo coice, um som seco e abafado, seguido de um ruído estranho. À minha frente jazia a G3trudes, com o cano esventrado em tiras. Uma espécie de fole, ou balão.

Fui desarmado para que pudesse cumprir o voto de não matar na guerra para onde me atiraram sem me perguntar.

Deus esteve comigo neste momento. Contrariamente ao que me disseram na instrução de armamento, o cano não abriu em leque, o que a acontecer, muito provavelmente se viria espetar no meu crânio e era a morte certa. O tapa-chamas foi o empecilho que me salvou a vida. 

  Uf! Desta já escapei.

A G3 que no dia anterior tinha encontrado abandonada pertencia ao Salvaterra Bernardes,  natural de Salvaterra de Magos. Um jovem português, deficiente motor e deficiente mental, que assassinos (não encontro nome mais apropriado)´apuraram para todo o serviço militar, fez a recruta e a especialização como atirador e veio cair na CCAÇ 2381, quando já aguardávamos embarque para a Guiné.

A arma na mão deste homem não servia para nada. Não tinha utilidade prática. Limpeza,  para quê? O cano estava cheio de areia. A bala encontrou resistência e provocou o seu rebentamento, mas estava lá o tapa-chamas.

Salvou-me a vida, impedindo o rebentamento em leque e... talvez, assim se tenha salvo a vida do IN que procurava atingir-me.

Restou apenas encolher-me e esperar que a fraca pontaria do adversário desse resultado, o que aconteceu para meu bem.

Não houve feridos de nossa parte. A coluna seguiu caminho.

(iv) O divórcio

A meio da tarde a aviação localizou-nos, o héli veio buscar os feridos do dia anterior e a vida continuou. Chegámos ao destino ao fim da tarde, ou seja vinte e quatro horas depois do previsto. 

Localizei a minha arma na mão do Salvaterra, fiz o relatório que me exigiram para abater a arma destruída e... para não mais ser tentado a fazer fogo e correr o risco de matar vidas humanas, fui entregar a minha arma ao quarteleiro, sob a ameaça do capitão que me daria uma porrada se me apanhasse sem a minha G3trudes.

Fui só e apenas enfermeiro durante o resto da comissão. Afinal era a minha missão.

Zé Teixeira

(Revisão / fixação de texto, título: LG)(**)
__________

Notas do editor LG:

(*) Vd. poste de 5 de agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2030: Estórias do Zé Teixeira (19): A G3ertrudes encravada que salvou duas vidas (José Teixeira, ex-1.º Cabo Aux Enf)
 

Guiné 61/74 - P27310: Tabanca da Diáspora Lusófona (38): Parabéns, João & Vilma, acabados de se unir com a benção de Deus, na igreja eslovena de São Ciro, Nova Iorque...Hoje, âs 10h30 locais, 15h30, em Lisboa.





Infografia : LG + IA / ChatGPT (2025)


 1. O João Crisóstomo, luso-americano, nascido em 1943 em Torres Vedras (capital do Carnaval Português), é uma figura muito conhecida e querida da diáspora lusófona e nomeadamente da comunidade de Nova Iorque e New Jersey. E igualmente da nossa Tabanca Grande, que é a mãe de todas as tabancas...

Emigrou para os EUA em 1977, mas passou também por outros países como o Brasil (e antes fez a guerra colonial na Guiné portuguesa de 1965/67, como alf mil at inf, CCAÇ 1439 

De formação católica (estudou para padre), durante três anos foi mordomo, da senhora Jacqueline Kennedy Onassis. Com ela aprendeu a fazer "lobbying" social e cultural. Acabou por dar a cara em campanhas que são muito queridas aos portugueses e aos luso-americanos. Campanhas de sucesso: Pela autodeterminação de  Timor Leste (LAMETA); Defesa das Pinturas Rupestres de Foz Coa; Memória de Aristides de Sousa Mendes... 

Casou-se, 2013, em segundas núpcias, com a eslovena Vilma Kracun (nascida em 1947, em Brestanica; enfermeira reformada, que vivia em Londres, é hoje cidadã americana).

Hoje, dia 12, domingo, pelas 10h30 locais (15h30, em Lisboa) casam-se finalmente pela Igreja Católica... doze anos depois de terem protagonizado um romance muito lindo.

Não pudemos ir, que estamos longe na Lourinhã (há 150 milhões de anos, ia-se a pé, pelo trilho dos dinossauros...) , mas vamos  surpreendê-los, com este singelo "boneco", artístico,  "naïf", simpático, festivo, com eles a sair esta manhã da Igreja eslovena de São Ciro, em Nova Iorque (Saint Cyril Church, 62, St Marks Place, New York , NY 10003).

2. English version:

John Crisostomo, a Portuguese-American born in 1943 in Torres Vedras (the capital of Portuguese Carnival), is a well-known and beloved figure in the Lusophone diaspora, particularly in the New York and New Jersey community. He is also part of our Tabanca Grande, which is the mother of all tabancas...

He emigrated to the USA in 1977, but he also spent time in other countries such as Brazil (and before that, he fought in the colonial war in Portuguese Guinea from 1965/67, as  lieutenant, 1439 infantery unit.

With a Catholic background (he studied to be a priest), for three years he was the butler for Mrs. Jacqueline Kennedy Onassis. With her, he learned to do social and cultural "lobbying." He ended up being the face of campaigns that are very dear to the Portuguese and Portuguese-Americans. Successful campaigns: For the self-determination of East Timor (LAMETA); Defense of the Foz Coa Rock Paintings; In Memory of Aristides de Sousa Mendes...

He married for the second time in 2013, to the Slovenian Vilma Kracun (born in 1947, in Brestanica; a retired nurse who lived in London, she is now an American citizen).

Today, the 12th, Sunday, at 10:30 am, they were finally married in the Catholic Church... twelve years after they began a very beautiful romance.

We couldn't go, as we are far away in Lourinhã (150 million years ago, one could go on foot, along the dinosaur trail...), but we are going to surprise them with this simple, artistic, naif, friendly, and festive poster, with them leaving this morning the Slovenian Church of Saint Cyril in New York (Saint Cyril's Church, 62 St. Marks Place, New York, NY 10003).

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Nota do editor LG:

Último poste da série > 6 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27289: Tabanca da Diáspora Lusófona (37): João e Vilma vão-se casar... pela Igreja, no próximo dia 12, domingo, às 10h30, St Cyril Church, Nova Iorque. Cerimónia presidida pelo Arcebispo Dom Gabriele Caccia, Observador Permanente do Vaticano na ONU. A Tabanca Grande está toda convidada...

Guiné 61/74 - P27309: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte III: 5 de fevereiro de 1964: início da construção do aquartelamento de Guileje

 


Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Guileje > Fevereiro de 1964 > "Eu e aminha amiga MG-47-50"...


Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Guileje > Fevereiro de 1964 > Ramadã (1)



Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Guileje > Fevereiro de 1964 > Ramadã (2)



Guiné > Zona Sul > Região de Tombali > Guileje > Fevereiro de 1964 > Ramadã (3)

Em 1964, o Ramadã  (ou Ramadão, existiem as duas grafias em português) ocorreu entre 25 de janeiro e 23 de fevereiro, seguindo o calendário lunar islâmico. O mês é sagrado no Islão: acredita-se que foi durante este período que o Alcorão foi revelado ao profeta Maomé. O Ramadã é o nono mês do calendário islâmico. É um período de jejum, oração, reflexão e comunidade para os muçulmanos em todo o mundo. Coincidiu com a ocupação e instalação de Guileje. Já em 1973 (ano da retirada de Guileje), o Ramadã coneçaria a 17 de setembro e terminaria a 16 de outubro.


Fotos (e legendas): © Armando Fonseca (2012). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Armando Fonseca, ex-sold cond cav, Pel Rec Fox 42, Bissau, Mansoa, Porto Gole, Buba, Bedanda, Guileje e Aldeia Formosa, 1962/64; também conhecido como o "Alenquer", integra a nossa Tabanca Grande desde 22 de setembro de 2010; tem cerca de 20 referências no nosso blogue. Julgamos que nasceu em 1941. Natural de Alenquer, vive na Amadora desde 1965, depois do regresso à "peluda". É autor da série "O Alenquer retoma o contacto" (de que se publicaram 7 postes, em 2012).
 


I. O Armando Fonseca (de alcunha,  o "Alenquer", terra donde é natural, mas que vive hoje na Amadora desde 1965), ex-soldado cond cav, Pel Rec Fox 42 (1962/64), foi dos primeiros militares, da arma de de Cavalaria, a chegar à Guiné, quando "oficialmente" ainda não havia guerra.

Cumpriu o serviço militar desde abril 1961 até julho 1964 (3 anos e 3 meses). Esteve 26 na Guiné, desde maio de 1962 até julho de 1964. Chegou ao CTIG em finais de maio de 1962. 

Nos primeiros 16 meses esteve em Bissau, fazendo segurança ao aeroporto em Bissalanca. 

É depois colocado, em outubro de 1963, em Mansoa, às ordens do BCAÇ 512, para fazer segurança às colunas logísticas a Mansabá e Bissorã. Conhece então a guerra pura e dura, apanha as primeiras minas. Com a sua Fox inutilizada, regressa a Bissau a 18 desse mês. 

Vai para o Sul, região Quinara (Buba) e de Tombali (Aldeia Formosa, Guileje, Bedanda). Em 4/2/1964, dá-se início à construção do aquartelamento de Guileje.

Nesse tempo ainda se ia de Bissau a Bafatá, passando por Mansoa e Mansabá (a estrada ficará depois interdita). Levou 10 horas o percurso em 21/1/1964. Depois, no dia seguinte, para chegar ao Saltinho à hora do almoço, levou-se a manhã inteira. 

Chegam a Aldeia Formosa ao fim do dia, acompanhados do Pel Rec Fox 888 mais um companhia de caçadores, que deve ter sido a CCAÇ 526 (que lá estava desde maio de 1963) ou então já a CART 495.

No dia 3 de fevereiro de 1964 a CArt 495 iniciou a concentração e preparativos para a Op Lapa,  a fim de instalar uma força militar em Guileje. No dia 5, realizou-se a operação sem contacto com o lN. Um Gr Comb da CArt 495 e auxiliares Fulas ocuparam a tabanca de Guileje. Oo Pel Rec Fox 42 assegurou a protecção da instalação.

Recorde-se a lista das 11 subnunidades que passaram por Guileje, entre fevereiro de 1964 e maio de 1973:

 


Infografia: Nuno Rubim (2006) | Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2025)

 

O início da guerra  (Armando Fonseca,  ex-sold cond, Pel Rec Fox 42,  mai 62 / jul 64) 

Parte III:  o início da construção do quartel de  Guileje, em 5 de fevereiro de 1964 

No dia 21 de janeiro pelas 07h30 o Pel Rec Fox 42 saiu de Bissau, com destino indefinido, passando por Mansoa e Mansabá até chegar a Bafatá por volta das 17h30.

A marcha foi vagarosa e cheia de precauções devido às possibilidades de sofrer emboscadas ou de encontrar minas, mas chegámos sem anormalidades, pernoitando aí para prosseguir no dia seguinte.

No dia seguinte, 22, às 07h30,  lá seguimos rumo a Sul agora acompanhados por pessoal da CCav 154 que estava sediada em Bafatá, chegando ao Saltinho pela hora do almoço

O percurso foi muito vagaroso visto seguirem à frente dos carros camaradas a pé com detectores de minas e até picando a estrada com sabres para ser certificada a ausência de minas.

Entretanto a meio do percurso houve um pequeno ataque, seguido por largada de abelhas,  que deixou todos desnorteados,  uns para cada lado,  com camaradas mordidos pelas abelhas. Mas, depois de tudo reorganizado, seguimos a viagem.

Depois do almoço,  saímos do Saltinho com destino a Aldeia Formosa e, entretanto,  veio ao nosso encontro o Pelotão de Reconhecimento Fox 888 que estava sediado naquela localidade junto com uma companhia de caçadores da qual já não me lembro o número.

À nossa chegada não havia pão e muito menos vinho, mas lá comemos qualquer coisa e fomos procurar acomodarmo-nos para aí permanecer algum tempo.

Mas no dia 23, logo pelas 07h45,  lá íamos outra vez, agora a caminho de Buba para aí pernoitar. 

Durante a tarde foram feitas duas saídas aos arredores em reconhecimento e no dia seguinte foi então o regresso a Aldeia Formosa com mantimentos para aquele destacamento, visto que o transporte era feito de barco até Buba e depois por terra para abastecer os destacamentos daí dependentes.

Durante as saídas para os reconhecimentos nos arredores de Buba, o alferes de minas e armadilhas aproveitou para efectuar algumas operações nos caminhos que se julgava serem percorridos pelo IN.

A dormida em Buba foi no chão com uma manta por colchão, visto aquele destacamento não estar preparado para receber mais um pelotão e os condutores das viaturas que se destinavam a trazer as cargas.

Durante os dois dias que se seguiram não houve nenhuma saída mas no dia 27 de janeiro  lá fomos até Guileje fazer um reconhecimento, onde nada existia além de laranjeiras carregadas de frutos e algumas bananeiras com bananas que,  mesmo muito verdes, depois de uns dias embrulhadas em papel dentro da mala do carro, já marchavam.

Havia também alguns ananases mas muito poucos. Nesta altura Guileje não passava de um matagal com algumas árvores de fruto pelo meio.

Foram passando os dias com algumas saídas a Buba a escoltar as viaturas que iam buscar mantimentos até que; no dia 4 de fevereiro pelas 02h30 da manhã lá vamos a caminho de Guileje agora para montar um aquartelamento onde ia ficar instalado um pelotão ( da CART 495) e alguns milícias fulas com as suas famílias.

Nos dias que se seguiram foi a preparação do aquartelamento,  a capinagem,  a montagem de tendas e depois o inicio das construções e a preparação dos terrenos onde mais tarde foi feita a pista para as avionetas aterrarem e levantarem voo.

Durante esta permanência,  no dia 13 de fevereiro foi o meu pelotão deslocado a Bedanda para deitar fogo, através das balas incendiárias das metralhadoras instaladas no meu carro, a umas casas de mato que se encontravam muito perto do rio que separava a zona onde estavam as nossas tropas e o reduto do IN.

 O rio era a baliza, nem os militares passavam para lá nem o IN se aventurava a passar para cá, no entanto, haviam constantes ataques de  morteiro, de ambas as partes.

Os dias foram passando com algumas idas a Aldeia Formosa e a Buba e, a partir de certa altura,  chegou informação de que o IN iria dinamitar a ponte sobre o rio Balana e então nunca mais se juntaram os dois pelotões Fox do mesmo lado do rio: quando nós passávamos para um lado,  o Pel Rec Fiox  888 passava para o outro.

Já veio descrito em postes anteriores o trágico final do destacamento de Guileje (retirado pelas NT em 22 de maio de 1973)  e aparece agora descrito o início da formação deste mesmo destacamento (5 de fevereiro de 1964).

Segue-se depois Ganturé e Gadamael...

(Continua)

(Revisão / fixação de texto, negritos,  título: LG)

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Nota do editor LG:

(*) Vd. postes anteriores da série >

30 de setembro de 2025 Guiné 61/74 - P27271: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte II: outubro de 1963: os primeiros grandes sustos com as minas A/C

30 de setembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27269: O início da guerra (Armando Fonseca, ex-sold cond, Pel Rec Fox 42, mai 62 / jul 64) - Parte I: aquele terrível mês de setembro de 1963

sábado, 11 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27308: Os nossos seres, saberes e lazeres (704): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225): O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Setembro de 2025:

Queridos amigos,
Saímos de S. Pedro do Sul, o destino seguinte não era propriamente Ourense, mas a Catedral era de visita obrigatória, é um dos templos românicos mais deslumbrantes da Galiza. Escolheu-se uma povoação de Nogueira de Ramuin, começava-se o dia com um cruzeiro no Canhão do Rio Sil, viagem assombrosa pelos contrastes das duas margens, pela imponência do granito entre a vegetação agreste, e aquela singularidade dos mosteiros dos eremitas que depois os dominicanos e os cistercienses remodelaram. Irá visitar-se o Mosteiro de S. Estevão, fica para o próximo texto.

Abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (225):
O espetacular passeio na Ribeira Sacra – 4


Mário Beja Santos

Não há em toda a Espanha uma região como esta, quanto à arte românica, dispõe de centenas de templos religiosos, na sua maioria muito humildes, mas profundamente tocantes, são convocatórias vivas à fé do Homem. Na organização do nosso programa no sul da Galiza houve calorosa discussão, havia quem queria sair pelo Minho e visitar a Catedral de Tuy, houve propostas para ir a Lugo, uma neta de catorze anos decidiu por todos, já que há piscinas de água quente em Ourense, é para aí que vamos. E assim foi. Atravessa-se a fronteira e durante os primeiros quilómetros as diferenças são mínimas. Depois desaparecem os eucaliptos, elevam-se as serras, está alterada a paisagem, o casario.

E lá se viajou até Ourense, com o estômago a bater horas, a urbanização da cidade não deixou ninguém em frenesim, falei na Catedral, uma gema preciosíssima; depois de Santiago de Compostela, rezam as crónicas, não há nada arquitetónica e artisticamente tão sumptuoso. Olhá-la de fora, gera muita perplexidade, as alterações do século XI em diante são mais do que muitas: por exemplo, onde agora vemos aquele zimbório houve até ao século XV um teto abobadado. Como as recriminações para comer eram mais que muitas, a visita foi de médico, melhor dito, quando se chegou ao Pórtico do Paraíso todos ficaram de boca aberta. Sucede que este Pórtico foi feito um século depois do Pórtico da Glória de Santiago de Compostela, são linhas góticas opulentíssimas, ainda há restos de policromia, ali se debatem figuras do Antigo e do Novo Testamento. Entrada mais feliz na região do sul da Galiza não podia haver. Finda as delícias da mesa, rumou-se para os arredores, para um local onde há matas que nos recordam Sintra, de nome Luintra. A razão é muito simples quanto a esta escolha, queremos todos percorrer no dia de amanhã os tesouros naturais e edificados da Ribeira Sacra.

Ao romper da aurora, lá vamos a caminho do canhão do Rio Sil, à procura do ancoradouro de Santo Estevão. A Ribeira Sacra é região interior da Galiza composta de uma parte do sul da província de Lugo e de uma parte do norte da província de Ourense, território estruturado pelos rios Minho e Sil. O Sil é fronteira natural entre as duas províncias, Ourense na margem direita Lugo na margem esquerda. Do lado de Ourense, o rio é mais arborizado, tem mais sombra, é mais húmido, do lado de Lugo recebe mais horas de sol, tem as encostas ideias para a cultura da vinha. Vamos então começar o cruzeiro.

Fachada principal da Catedral de Ourense, 1160
Pórtico do Paraíso, Catedral de Ourense
Não, não se trata de uma paisagem lunar, é o amanhecer que deixa as formas indistintas, todo este granito escalvado e a vegetação agreste envolvente ainda não têm o recorte pronunciado. Aqui temos um microclima mediterrânico, ao contrário da maior parte da Galiza que tem um clima oceânico, pluvioso. Daí vermos nas escarpas carvalhos e castanheiros e toda a arborização típica do clima mediterrânico, nem faltam as oliveiras.
O que se vai revelando empolgante na viagem é o contraste das duas margens, as vinhas em terraços e nas encostas da margem esquerda e a vegetação agreste na margem direita. Há para aqui a barragem de Santo Estevão, muito perto do ancoradouro, erigida em 1957. Pergunto a um dos mestres da embarcação o porquê deste fenómeno da vinha. Ele aponta o dedo para os maciços graníticos e explica-se que as vinhas estão plantadas ao lado da pedra, é o granito que regula a temperatura, absorve o calor do sol durante o dia e transmite às vinhas durante a noite. E com o mesmo dedo aponta para os terraços ou socalcos, é ali que se planta melhor, e não deixa de comentar que há aqui garrafas de vinho que se vendem entre os 80 e 100€.
Temos aqui uma imagem dos meandros do rio, de um altifalante anuncia-se que olhemos para os pontos mais altos, há lindíssimos miradouros, e fala nos balcões de Madrid, tem a ver com as épocas da emigração a que foram sujeitos os galegos, até para Portugal, tanto podiam ser aguadeiros como amola tesouras, reparadores de chapéus de chuva, anunciavam-se por uma gaita e uma melodia inimitável.
Tivesse eu uma boa máquina fotográfica e o leitor ficaria verdadeiramente impressionado com a altura e a imponência destas escarpas.
Quem diria que nesta Ribeira Sacra há uma atração religiosa ímpar. Situa-se aqui a mais importante concentração da arte românica rural da Europa, tendo em conta a dimensão do território. A Ribeira Sacra possui uma centena de igrejas românicas e vinte mosteiros. Seguramente que todos são credores de visita, iremos, finda esta viagem no canhão do Sil, até ao Mosteiro de Santo Estevão. O Mosteiro de Santa Cristina de Ribas de Sil é um mosteiro românico do século X que pertenceu à ordem dominicana. Pode-se visitar o claustro e a igreja, que conserva retábulos e frescos e a rosácea da fachada principal é muito bela. Intrigado, fui procurar saber o porquê desta quantidade de mosteiros.

No início da Idade Média, as pessoas chegavam aqui atraídas pela espiritualidade dos lugares, tudo natureza e sem grandes centros populacionais. Essas pessoas eram os eremitas, uma corrente do cristianismo composta de pessoas que abandonavam tudo para viver na solidão. Quando acabara este passeio, quinze minutos depois estaremos no Mosteiro de Santo Estevão. Outro mosteiro importante é o de São Pedro de Rocas, que é o mosteiro mais antigo da Galiza, data do século VI, a sua visita é recomendada pela sua singularidade, a igreja possui três capelas aprofundadas na rocha, há uma necrópole medieval com túmulos antropomórficos e possui uma atalaia com uma altura de vinte metros. O castanheiro dava um alimento essencial na Idade Média, só no século XVI é que chegaram à Europa as batatas o milho e outros legumes. Vivemos uma manhã de sonho. À saída da viagem deram-me um folheto com os miradouros e descobri que o Concelho em que estamos a viver se chama Nogueira de Ramuín.

Vista do ancoradouro de Santo Estevão de um ponto alto
E pronto, chegámos a este mosteiro situado na encosta norte do Rio Sil, entre bosques de carvalhos e castanheiros, é dado como o mais importante mosteiro da Ribeira Sacra. Santo Estevão de Ribas de Sil, é anterior ao século X, é do tempo do Rei Ordonho II o restauro de uma comunidade de eremitas que habitavam a zona do Canhão de Sil, no século X restaurou-se o que fora o primitivo edifício datado do século VI. Não há na atualidade vestígios arquitetónicos das primeiras construções e o que de mais antigo se conserva é a igreja românica datada da segunda metade do século XII. É esta a visita que vamos fazer.
Estátua de homenagem em Luintra aos amola-tesouras que partiam desta região de Ourense para outros pontos de Espanha e Portugal

(continua)

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Nota do editor

Último post da série de 4 de outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27285: Os nossos seres, saberes e lazeres (703): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (224): O espetacular balneário romano de São Pedro do Sul - 3 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P27307: Manuscrito(s) (Luís Graça) (275): 50 pequenas coisas que mudaram em 50 anos no Portugal sacro-profano que eram as terras de Candoz, no Marco de Canveses, em Entre-Douro-e-Minho



Marco de Canaveses > circa anos 40 do séc. XX  > O típico carro de bois de Entre Douro e Minho...O boi com a sua "molhelha",,, A mulher, com o seu lenço de cabeça, escondendo o cabelo, ela e o seu "home", cada um no seu lugar... Ela a tanger os bois...Ele de chapéu e varapau...

(Molhela: almofada, geralmente composta de couro, palha e estopa, onde assenta a canga que junge os bois,e que é  colocada no cachaço, protegendo-o do atrito da canga).


Marco de Canaveses > circa anos 40 do séc. XX  >  A vinha de enforcado, a vindima (com recurso a escadas altas), os grandes cestos de verga à cabeça, as mulheres e os seus "cantaréus" (canções de trabalho, cantadas a 3 vozes, exclusivamente femininas, nas "serviçadas", como a vindima, as desfolhadas, etc.)

Fonte: Aguiar, P. M. Vieira de - Descrição Histórica, Corográfica e Folclórica de Marco de Canaveses. Porto: Esc Tip Oficina de S. José. 1947. (Com a devida vénia).



Quinta de Candoz > A matança do porco (c. 1975/80): uma cena que Bruxelas conseguiu banir definitivamente dos nossos campos e aldeias (mas não da nossa memória) em nome de uma conceção ( fundamentalista, dizem os críticos) da saúde pública e de uma Europa securitária, globalizada, normalizada e tecnocrática, matando a etnodiversidade... 

Declaração de interesses: Não sou "vegan", adoro carne de porco, adoro leitao... Claro que eu hoje não queria ver as minhas netas a assistir a uma cena "cruel" como esta (hoje fala-se em "bem-estar" animal)... Na nossa infância tivemos que "ver e ouvir" os gritos lancinantes do pobre animal, mas a seguir comíamos-lhe o sarrabulho, os rojões, as "febras", as bochechas, o presunto, os salpicões, os chouriços... E jogávamos á bola com a bexiga do porquinho!)



Marco de Canaveses > c. 1975/80>   O "toirinho" (sic), vendido na feira do Marco, uma das poucas fontes de receita dos "caseiros" (ou "rendeiros", tínhamos um em Candoz, nessa altura), para além do vinho e do milho... Este era um
 boi de trabalho, não de engorda; a junta de bois puxava a charrua de ferro, e trazia do "monte" uma carrada de lenha. Por sua vez, o porco era o governinho da patroa (que o guardava, com engenho e arte,  na "salgadeira" ou no "fumeiro"). 




Marco de Canaveses > Paredes de Viadores > Candoz > Quinta de Candoz > O que resta do velho carros de bois...Foi caindo aos pedaços, já com uma bela idade...

Fotos (e legendas): © Luís Graça (2025). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




1. Comecei a ir a Candoz há 50 anos, em 1975... Freguesia de Paredes de Viadores, concelho de Marco de Canaveses, na bacia hidrográfica do rio Douro e do rio Tâmega;  a sul , em frente, ficava/fica a serra de Montemuro, já no distrito de Viseu. 

1975,  em "pleno verão quente", um ano depois do 25 de Abril.  Fui fazer, eu e a Alice, uma viagem pelo "Portugal profundo", "sacro-profano",  que eu não conhecia. Ela sim, tinha começado a trabalhar na instalação do Parque Nacional da Peneda-Gerês. E era nada e criada naquelas terras, donde já se avista o Marão. 

Foi então que descobri a  região do vinho verde, e ainda a tempo de "apanhar em andamento o passado" deste País, a vinha de enforcado, as latadas, o milho, os engenhos (moinhos a água), as histórias do linho e das desfolhadas, as tradições comunitárias como as "serviçadas", a matança do porco,  os carros de bois "a chiar pelos montes acima ou abaixo", a parceria agrícola e pecuária (formas pré-capitalistas de produção) , as feiras de gado, as romarias, as tunas rurais, os bailes mandados, etc.... E, pela primeira vez (e única) na minha vida também ajudei a pisar a uva (tinta) no lagar... Uma tarefa que só podia ser feita pelos homens porque não eram,,, "menstruados".

Casar-nos-íamos, lá, em Candoz, um ano depois. Pelo civil. O primeiro casamento civil do ano, no Marco de Canaveses, segundo nos disse o ajudante de registo civil que foi lá a casa.  Uma heresia, numa família católica e conservadora.

 A 7 de agosto de 1976. Ganhei uma nova família. Fiquei mais rico tendo optado pela exogamia (a lei que manda nunca casar na tua terra...).

As formas de estar, viver, trabalhar, pensar, educar, amar, morrer... até aos anos 60 ainda estavam  ligadas a uma economia agrícola fracamente monetarizada, e em grande parte de autossubsistência... 

Ainda apanhei a tradição e a transição, a mudança, as pequenas mudanças operadas naquelas terras do Norte de Portugal...Em meio século, assisti a muitas mudanças, pequenas e grandes. Naquele microcosmo  (socioantropológico...), no coração de Entre-Douro-e-Minho, aonde dantes ia meia dúzia de vezes por ano (e agora um pouco menos)... E quando digo dantes, ainda era no tempo em que não havia autoestradas (!), e a viagem de Lisboa até lá (400 km), demorava um dia...

Hoje são uma série delas (se eu partir de Alfragide): CRIL A8, A17, A1,CREP, A4... Recorde-se que a autoestrada A1 só ficou completamente concluída em 1991, ligando Lisboa ao Porto. Já a autoestrada A4, que liga o Porto a Amarante, foi concluída em 1995...

2. Aqui vão, por ordem alfabética, sem  qualquer ordem de precedência, importância,  relevância ou cronologia, algumas das 50 (ou mais) pequenas grandes mudanças ali operadas (refiro-me, no essencial, à freguesia de Paredes de Viadores, onde se situa a Quinta de Candoz,  e onde as pessoas precisavam de berrar ou falar alto para comunicarem umas com os outros, porque o povoamento era e é disperso).

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  • a Água de consortes, as "levadas" (como a água de Covas, que vinha da serra, e de que o meu sogro tinha direito a utilizar, só no solstício do inverno, uma vez por semana, das 10h da manhã às 6h00 da tarde); a construção civil, a abertura de estradões, a abertura de poços e minas, as alterações climáticas, etc.,  levaram... a "levada", a água de Covas, que chegava a Candoz e continuava pela encosta abaixo: era uma alegria para os sentidos, a vista, o ouvido, etc., assistir à rega do milho;
  • o Anho assado com arroz de forno, que hoje é produto... "gourmet" (e tem confraria);
  •  Bacalhau “lascudo” (que ainda não havia no Natal, nem o bacalhau era a pataco, como a República prometia em 1910)
  • o “Baile mandado” com “mandador” e os homens e as mulheres separados, de pé, encostados às paredes da casa; e dançavam-se as danças palacianas e burguesas do passado; a valsa, a mazurca, a contradança, o fado; e o mandador era também o "coreógrafo";
  • cozia-se a Broa de milho e centeio (três partes de milho e uma de centeio), no forno a lenha, e que tinha de durar 8 dias (ou até 15, "duro que nem cornos"!);
  • o Caciquismo político e eleitoral (do regedor, do padre, do comerciante, do professor, do “fidalgo"...);
  • só os homens usavam Calças (!) (e as raparigas, Tranças, que cortavam quando ficavam "comprometidas" ou iam para o Porto estudar, um privilégio);
  • a Canalha, a miudagem,  uma  Cama para três (e às vezes era no Palheiro, o quarto dos rapazes);
  • ouvia-se o Carro de bois a chiar, "com toda a cagança",  pelos estradões (uma verdadeira sinfonia!); 
  • o osso com Carne ("ó pai, chuche e dê  -mo!") no Moado  (caldo);
  • as Cebolinhas do "talho" (de talhão, da horta, provenientes da monda do cebolal...), o Presunto Verde, o Salpicão,  o Verde,  o Arroz de Cabidela, as Papas de Farinha de Pau, a "Aletria", o "Doce da Teixeira", a Regueifa, e outros pequenos manjares da culinária local
  • os grandes Cestos de vime de 50 kg de uva que os “homes” transportavam aos ombros (e as mulheres à cabeça), por leiras e socalcos abaixo (ou acima) até ao “lagar do vinho” (em geral, no piso térreo, da casa, e com chão saibroso por causa da temperatura ambiente: a "loja" onde também ficava a "salgadeira"); 
  • o Compasso Pascal, a Festa de Nra. do Socorro, a Festa do Castelinho (gente de folgar e trabalhar, ou trabalhar muito e folgar pouco);
  • não se conhecia a Contraceção nem o Planeamento familiar (mesmo a “Pílula” chegaria tarde à cidade…) ("porra e lenha é quanto a venha", um provérbio que pode ter uma conotação sexual, mas não tenho a certeza);
  • a Cultura do milho de regadio, exigente em água e mão de obra (escondia-se o milho nas “minas”, as nascentes de água, para escapar à requisição do governo nos anos da II Guerra Mundial e do pós-guerra);
  • as Crianças habituavam-se, cedo, às “Sopas de cavalo cansado” e eram “Sedadas com Bagaço” quando se contorciam com dores, tinham fome ou estavam doentes;
  • andava-se Descalço (ou, tal como em África, se levava os sapatos na mão até à entrada da vila, da escola, da igreja…);
  • a autossuficiência da Economia do pequeno campesinato familiar onde o pai era “pai e patrão” e a “ranchada de filhos” era garantia de mão-de-obra abundante e gratuita;
  • a Electricidade, o Frigorífico a Televisão, etc., só chegariam depois do 25 de Abril (mesmo com a barragem do Carrapatelo a escassos quilómetros de Candoz);
  • Emigração, primeiro para o Brasil (até aos anos 50) e depois para França ( "a salto") e Alemanha, também depois Luxemburgo e Suiça;
  • não havia  Estradões ( e foi com essa promessa de abrir estradões que caciques como o Ferreira Torres ganhavam eleições);
  • a “Esterqueira” (ao pé da porta onde se faziam todos os despejos domésticos e se deitava todo o lixo orgânico que não fosse para a “gamela” de, "com a sua licença", o porco) (já não é do meu tempo, mas da infância da Alice; aliás, da minha infância quando ia casa dos meus tios no Nadrupe, á Quinta do Bolardo,  á casa dos meus parentes do clã Maçarico, em Ribamar);
  •  não havia  Estradões ( e foi com  a promessa de abrir estradões que caciques como o Ferreira Torres ganhavam eleições) ("roubava, mas fazia obra", dizia o povo...);
  • a Estratificação social nos campos: ”fidalgos”, pequenos proprietários, rendeiros…e cabaneiros (gente sem terra nem casa) (e que na igreja também se dispunham pela mesma ordem, com homens e mulheres, socioespacialmente separados);
  • as Feiras anuais e sobretudo as feiras de gado (onde se levava o porquinho e o tourinho para vender, ou onde se ia comprar uma "junta de bois") (era lá que também se fazia, além de negócios, namoros, casamentos, alianças; tal como a igreja, a feira era um importante local de socialização):
  •  a importância das Feiras e romarias como factor de lazer, de socialização, de negócios, de informação, conhecimento e propaganda (ah!, os pregões dos feirantes!);
  • batia-se  forte e feio nos Filhos (em casa e no campo) e nas crianças (na escola) ("quem dá o pão, dá a educação");
  • em que os mais remediados diziam: “criei-os [aos Filhos] fartos e cheios [de pão, que não se escondia na “trave” do telhado de telha vã, fora do alcance dos ratos e… das crianças, isso era sinal de pobreza];
  • o Fumeiro e o Barro vidrado que tanto cancro no estômago provocou;
  • a criação, em cortes, do  Gado bovino (o “tourinho”, mais bem tratado que a “canalha”, a miudagem,  porque rendia dinheiro ao ser vendido na grande feira do Marco de Canaveses);
  • só os Homens usavam calças (!) (e as raparigas cortavam as tranças quando ficavam comprometidas ou iam estudar para o Porto, um privilégio, nos anos 60);
  •  as Juntas de bois lavrando a terra com arados de ferro;
  • só se bebia Leite (de cabra, de vaca era mais raro) quando se estava doente (em geral os adultos);
  •  as Longas caminhadas a pé (para se ir à missa, à romaria, à feira, à repartição de finanças na sede do concelho, mas também ao médico e o hospital da misericórdia... a 13/15 km de distância);
  •  a Luz do candeeiro a petróleo ou querosene;
  • o valor comercial da Madeira de carvalho, castanho, pinho, cerejeira, etc. (madeira nobre hoje destronada pelo eucalipto);
  • a Matança do porco, o fumeiro e a salgadeira (que eram o “governinho da tia Aninhas”, e também uma das principais causas de morbimortalidade por doenças cérebro-vasculares, como a “trombose”):
  • o Médico da vila  ("João Semana") que só se chamava a casa na hora da morte para passar a certidão de óbito;
  • o Medo das trovoadas, das bruxas, dos lobisomens, do mau olhado, das pragas que se rogavam uns aos outros por ódio, vingança,  inveja, intrigas, desamores, etc.; 
  • a escassez de Meios de tração mecânica na lavoura (tratores, motocultivadores, serras mecânicas, etc.) e de transporte automóvel (não me lembro de haver nenhum trator em 1975...);
  • cultivava-se o Milho, o  Centeio... e o Linho (!);
  • a fraca Monetarização da economia (fazia-se algum dinheiro com a venda das uvas, do milho, do tourinho, da cereja e pouco mais; ou trabalhando à jorna, ocasionalmente para o "ramadeiro", para o "construtor civil, etc., que os mais sortudos iam para a polícia e os caminhos de ferro, a CP);
  • os "Montes” (pinhais) que eram “rapados” todos os anos, não só para limpeza e prevenção dos incêndios (não havia incêndios) como sobretudo por causa da importância que tinha o mato para fazer a "cama dos animais” e depois o estrume (fundamental para a cultura do milho ou da batata); 
  • "na casa desta Mulher come-se tudo o que ela der";
  • as grandes Mulheres (ou "Mulheres Grandes") que em geral se escondem(iam) atrás dos seus “homes" (e tinham sempre uma palavra de peso, a última, nos negócios, nas compras de propriedade, nos amores, nos casórios dos filhos, etc.);
  • o Obscurantismo não só político e cultural mas também religioso (como o daquele pároco que mandou cortar as pilinhas dos anjinhos na igreja);
  • a "minha Palavra vale mais do que a minha terra toda" (a palavra dada era lei);
  • as Panelas de ferro, ao lume, na lareira (onde se faziam os "Rojões");
  • as “Parteiras” (que não as havia, diplomadas) eram as “aparadeiras” (sic) (mulheres curiosas, mais velhas, que já tinham sido mães...);
  • jogava-se ao Pião (os rapazes) e  brincava-se às Bonecas de trapos (as raparigas);
  • ó Maria, dá-me o Pito...E Porra e Lenha é quanto a venha (a maneira brejeira, pícara, desta gente do... carago!);
  • as Professoras do ensino primário que se chamavam "regentes escolares"; 
  • fatalismo dos Provérbios populares (“boda e mortalha no céu se talha”, "muita saúde e pouca vida que Deus não dá tudo"...); 
  • as Ramadas e o Ramadeiro (construtor de ramadas);
  • a luta dos Rendeiros, a seguir ao 25 de Abril, contra a parceria agrícola e pecuária, formas pré-capitalistas de exploração da terra, com o pagamento das “rendas” em géneros  (em geral, numa proporção fixa, por exemplo ao terço, a meias, etc.);
  • os Salamaleques da “servidão da gleba”: “com a sua licença, meu senhor e meu amo”, dizia o caseiro para o “fidalgo”, desbarretando-se a 10 metros de distância, num  concelho onde em 1958 mais de metade dos agricultores eram rendeiros;
  • a Salgadeira (onde se guardava o porco, desmanchado) (responsável por muitos AVC);
  • os Salpicões feitos em vinho verde tinto (fundamental na cozinha e nos enchidos, este vinho único no mundo);
  • não havia Saneamento básico, água potável (a não ser o das minas) nem banheiro com duche;
  • a Sardinha “para três” (que chegava de Matosinhos na Linha do Douro até  a estação do Juncal, e depois era transportada à canastra e vendida de porta em porta) (... e os ovos que se vendiam para comprar a "sardinha para três");
  • o Sável e a Lampreia do rio Douro (que as barragens "mataram") (comia-se o sável pela Quaresma,  quando a Igreja proibia o consumo de carne... aos pobres);
  •  as "Serviçadas” como a vindima, a malha do centeio, a desfolhada do milho, a espadelada do linho, a matança do porco, etc., em que os familiares e os vizinhos se ajudavam, uns aos outros;
  • "Ir às Sortes" (à junta médica militar, e ficar apto ou apto para a tropa); (era também um a "ritual de passagem para os "machos", e o início do "home leaving"; quando se regressava, é para para o jovem adulto a começar a governar a sua vida, deixar a casa dos pais, ir para o Porto trabalhar na África, ou para o Brasil, e mais tarde para França, Luxemburgo, Suiça...na construção civil;
  • "na casa deste home quem não Trabalha não come";
  • começava.se a Trabalhar muito cedo (“ o trabalho do menino é pouco, mas quem não o aproveita é louco”; "na casa deste home, quem não trabalha não come; e na casa desta mulher, come-se tudo o que ela fizer"):
  •  as “Tunas rurais do Marão” (indispensáveis nos "bailes mandados") (uma rabeca, um violão, uma viola, um cavaquinho, unas ferrinhos, uma voz) ;
  • “Varapau” como símbolo da masculinidade (mas também de violência) (a ponto de ter sido proibido na via pública, nas festas, nas romarias e nos bailes, sendo o seu cumprimento fiscalizado pela GNR):
  • a Venda, o estabelecimento comercial que era mercearia, tasca, casa de comidas (para os de fora), cabine pública de telefone, caixa de correio, palco de mexericos, boatos e notícias, etc. (a da Candoz, ficava no Alto,na estrada real Porto-Régua,   a 3 km de distância por caminho de carro de bois, que agora é estrada municipal e nos leva à albufeira da barragem do Carrapatelo); 
  • o Verde (ou Bazulaque) (é ou era um prato típico da Páscoa, na altura em que se matava o anho; feito com  colaça, o coração, o fígado e rins);.
  • a Vinha de bordadura e de enforcado (e na sua grande maioria, videiras de tinto… jaquê, um híbrido americano de  há muito proibido mas sempre tolerado; de fraca graduação e pior qualidade, o “jaquê” chegava a maio já era intragável; de resto, nas vindimas toda a uva podre ia “para o tinto”; e não havia vinho verde branco, o que se fazia era “para o padre”; e muito do que ia para o "ultramar", a tropa, que tinha poder de compra, era vinho branco leve, de 9 / 10 graus, enviado para os armazéns do Porto e de Vila Nova de Gaia, e depois gaseificado e rotulado como "vinho verde branco");
  • o Vinho verde branco, feito de bica aberta, e que era só para o padre e para a missa (hoje é um dos senhores "embaixadores de Portugal");
  • o Vinho verde tinto, o tal "berdinho", carrascão, bebido da malga de barro vidrado ou da “caneca de porcelana”;
  • a Virgindade (feminina) antes do casamento (e ai da rapariga que fosse "rejeitada" pelo rapaz...); ou tivesse a desgraça de ser "mãe solteira";
  • ... e quando a gente (a nossa geração) nasceu, por volta de 1945, no fim da II Guerra Mundial, ainda morriam 120 crianças em cada mil nados-vivos.

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Nota do editor LG:

Guiné 61/74 - P27306: Parabéns a você (2426): Benito Neves, ex-Fur Mil Cav da CCAV 1484 (Nhacra e Catió, 1965/67); Eduardo Campos, ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 4540 (Bigene, Cadique e Nhacra, 1972/74) e Patrício Ribeiro, ex-Fuzileiro Naval (Angola, 1969/72), Empresário na Guiné-Bissau

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Nota do editor

Último post da série de 10 de Outubro de 2025 > Guiné 61/74 - P27302: Parabéns a você (2425): Manuerl Resende, ex-Alf Mil Art da CCAÇ 2585 / BCAÇ 2884 (Jolmete, 1969/71)

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Guiné 61/74 - P27305: Convívios (1042): 62º almoço-convívio da Magnífica Tabanca da Linha, quinta feira, 23/10/2025, Algés; há já 44 inscritos...Camarada, sê mais um "magnífico", junta-te aos "magníficos" (Manuel Resende, régulo)




Situação em 10/10/2025, às 20h00

62º CONVÍVIO DA MAGNÍFICA TABANCA DA LINHA


Quinta-feira,  23 de outubro de 2025


RESTAURANTE CARAVELA DE OURO (Algés) (vd. localização no mapa)

Morada: Praça 25 de Abril de 1974, 1495 Algés - Telefone: 214 118 350

Estacionamento em frente tem sistema de "Via Verde Estacionar 2 horas"

I N S C R I Ç õ E S :

Até às 12 horas do dia 21 de Outubro de 2025, 3ª feira

para: Manuel Resende - Tel. 91 945 82 10
manuel.resende8@gmail.com
magnificatabancadalinha2@gmail.com
dizendo "vou" ao convite no nosso grupo no Facebook
Estarei atento ao grupo do Whatsapp para quem se inscrever por este meio.

+ + + + + E M E N T A + + + + +

Começamos com aperitivos às 12,30 – Almoço às 13 horas
Peço que tragam a quantia certa, 28 €. Ajudem os organizadores.
Pagamento por Multibanco, no Rés-do-Chão e, ao entrar para a sala, apresente o duplicado.

APERITIVOS DIVERSOS

Bolinhos de bacalhau  | Croquetes de vitela | Rissóis de camarão | Tapas de queijo e presunto
Martini tinto e branco - Porto seco - Moscatel.

SOPAS

Canja de galinha
Creme de marisco

PRATO PRINCIPAL

Nacos grelhados, à Transmontana, com batatas a murro e grelos.

SOBREMESA

Salada de fruta ou Pudim
Café

BEBIDAS INCLUIDAS

Vinho branco e tinto “Ladeiras de Santa Comba" ou outro
Águas - Sumos - Cerveja

PREÇO POR PESSOA ... 28 €

(Crianças dos 5 aos 10 anos se aparecerem, pagam metade)

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Nota do editor LG:

Último poste da série > 16 de julho de 2025 > Guiné 61/74 - P27022: Convívios (1040): O pessoal da 2.ª CART do BART 6521/72 reuniu-se no passado dia 5 de Julho de 2025, em Rio Maior para comemorar os 51 anos da chegada da Guiné (José Morgado, ex-Soldado CAR)