Uma operação daquela envergadura, às tantas da madrugada, com tantos tiros, correrias, ganidos e sangue, tinha que ser do conhecimento do comando do BART 2917. Aliás, o major Bê Bè fazia parte do comando... O "crime" ficou impune, mas os "suspeitos" tinham vários atenuantes:
- primeiro, os cães eram muitos, famélicos, vira-latas, tinhosos, barulhentos, um perigo para a saúde pública e sobretudo para a segurança da população e das NT;
- segundo, e mais grave, muitos deles teriam vindo das chamadas zonas libertadas do PAIGC com a secreta missão de sabotarem o nosso esforço de guerra, não deixando nomeadamente dormir os operacionais de Bambadinca;
- um terceira explicação (propaganda dos "tugas"...) é que os cães vinham às sobras do rancho de Bambadinca porque rapavam fome nas suas tabancas de origem;
- em quarto e último lugar, o posto administrativo de Bambadinca (que pertencia à circunscrição de Bafatá) não tinha... "canil" e muito menos veterinário.
Ouçamos dois dos "protagonistas" desta história, que quiseram partilhar este seu "segredo" que muita gente da Tabanca Grande ainda não conhecia (**):
(i) Luís Graça
Todas as terras por onde passámos têm pequenas/grandes histórias para nos contar. Sabemos pouco de cada uma, é verdade, afinal o nosso tempo às vezes foi só de escassas semanas ou de um a dois meses...
Bolama, Contuboel, Cumeré, Fá Mandinga, Mansabá, etc., sítios onde havia Centros de Instrução Militar (CIM), ou aonde se fazia a IAO, ou eram simplesmente locais de aboletamentento ou passagem.
Eu e o o Humberto Reis estivemos em Contuboel, pouco mais de mês e meio: literalmente de bivaque, acampados, não havia instalações fixas para os 60 graduados e especialistas metropolitanos da CCAÇ 2590. Queixas havia muitas: insolação, cobras, lagartos, etc., mas não me lembro de haver cães vira-latas, barulhentos, famintos, tinhosos e, mais grave, "feitos com o IN,"
O resto da comissão, cerca de 20 meses (de meados de julho de 1969 a meados de março de 1971) foi passado depois em Bambadinca, sede do sector L1, região de Bafatá.
Estivemos, é uma maneira de dizer: nem sempre dormíamos lá. A CCAÇ 2590/CCAÇ 12 era uma subunidade de intervenção, constituída por praças do recrutamento local (=100) e graduados especialistas de origem metropolitana (=60). Estivemos às ordens de dois batalhões: BCAÇ 2852 (1968/70) e BART 2917 (1970/72).
As instalações eram boas. Recém-construídas pela engenharia militar. A messe era boa, Mas, lamentavelmente, havia muitos refugiados, em Bambadinca. E com eles, muitos cães, famélicos e vadios, doentes, ruidosos... Não nos deixavam dormir, os cães vira-latas...
Um dia, às tantas da noite, depois de muitas noites de insónias e pesadelos, pegámos num jipe, nas pistolas Walther, com balas derrubantes de 9 mm, e matámo-los todos... Em correria loucas pela parada.. Ainda hoje essa cena me incomoda... Chamei_lhe Op Noite das Facas Longas...Evoquei-a ou tentei exorcizá-la num dos meus poemas, Esquecer a Guiné:
(,...) Esquecer a Guiné... por uma noite!
As bombas de napalm
Carbonizando cada centímetro quadrado de vida,
Lá longe, em Sinchã Jobel,
Na ZI do Com-Chefe.
As insónias às três da manhã,
A hora mortal da madrugada.
Os famélicos cães vadios
Que um dia abatemos a tiro,
Um a um,
Depois de loucas correrias de jipe
À volta da parada.
No manicómio de Bambadinca.
Um a um,
Às tantas da madrugada,
Com tiros de pistola Walther na cabeça.
Sem dó nem piedade.
Pela simples razão
De que... não nos deixavam dormir.
A mim, a ti, ao major.
A todos nós, almas penadas...
Chamei-lhe a Operação
Noite das Facas Longas. (...)
(ii) Humberto Reis:
Já confessei, há vinte anos atrás, a autoria material do "crime" (*). Nessa noite nem o pobre do Chichas, que era a nossa mascote, a mascote da messe de sargentos, escapou da morte anunciada.
Segundo esclarecimento que aqui deu, em 2005, ao meu camarada Luís Graça, e meu companheiro de quarto em Bambadinca, com a rudeza, franqueza e a frontalidade que ele me conhece de há muito:
"O cão, que dormia à porta do nosso quarto, era o Chichas, alcunha vinda do 2º sargento corneteiro do BCAÇ 2852, que também era o Chichas.
"O condutor do jipe nessa Noite das Facas Longas era o major de operações do BART 2917 (o tal que mandou ir para lá a mulher quando se casou) e o assassino... fui eu".
Acrescente-se que quem ia atrás no jipe era o Luís Graça e o o Luciano Severo de Almeia (morreria, já depois da peluda, em circunstâncias trágicas, nunca esclarecidas)... Esse tal major era conhecido como o Bê Bê... Barros e Bastos:
(i) na altura, era o OfInfOp/Adj do BART 2917, maj art Jorge Vieira de Barros e Bastos;
(ii) dava-se relativamente bem com os "milicianos", os "nharros" da CCAÇ 12 (até por que precisava deles para lhe defenderem as costas);
(iii) as nossas relações esfriaram muito, depois da Op Abencerragem Candente (25-26 de novembro de 1970, subsetor do Xime);
(iv) nunca mais tive notícias dele: diz-me o Luís Graça que foi 2º comandante do BArt 6323/73, que esteve, em Angola, de maio de 74 a agosto de 1975, no subsetor de Zala, e depois em Malange; se for vivo (e esperemos bem que sim), deve ser cor art ref.; e, para ele vai, sem ressentimentos, um alfabravo.
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Notas do editor LG:
(*) Vd. poste de 17 de junho de 2005 >
Guiné 63/74 - P62: Op Noite das Facas Longas (Humberto Reis)(**) Último poste da série > 15 de agosto de 2025 >
Guiné 61/74 - P27121: O segredo de... (51): Virgínio Teixeira, ex-alf mil SAM, CCS/BCAQÇ 1933 (Nova Lamego e Sáo Domingos, 1967/69), economista, consultor, gestorempresário: como perdi dois mil contos, em 1985 (c. de 46,5 mil euros, a preços de hoje), com o projeto