Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 19 de agosto de 2008
Guiné 63/74 - P3140: Os nossos regressos (14): O meu regresso e o 25 de Abril (Juvenal Amado)
1. Mensagem de Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, (Galomaro, 1972/74) com data de 9 de Agosto de 2008
Caros camaradas Carlos, Virgilio, Luis Graça e toda a Tabanca Grande
Integrado em Os Nossos Regressos, cá vai a minha visão pessoal sobre o meu próprio regresso.
As fotos da despedida do Batalhão não são muito boas mas não tenho outras. Na verdade os meus apelos aos meus camaradas para me enviarem fotos originais não tem na maioria dos casos tido muitos bons resultados. Dizem que não sabem onde isso pára, ou safam-se dizendo que a mulher é que guardou isso. Mas eles não se livram de mim assim facilmente, pois agora peço às suas esposas.
Um abraço e bom fim de semana é o que eu desejo para toda a Tabanca.
Juvenal Amado
Foto 1 > Ainda no Xime
Foto 2 > De regresso a Bissau numa LDG, sob protecção aérea
Foto 3 > Regresso a Bissau, a bordo da LDG
Foto 4 > Ainda bordo da LDG
Foto 5 > Cumeré > Despedida do BCAÇ 3872
Foto 6 > Cumeré > Despedida
Foto 7 > Cumeré > despedida das tropas
Foto 8 > Ainda a cerimónia de despedida do BCAÇ 3872
Foto 9 > Ilha da Madeira à vista
2. O meu regresso
Ppor Juvenal Amado
Na euforia da partida, quase não me lembro de entrar no Niassa.
Lembro-me de descer para os porões, onde os beliches chegavam aos quatro andares e de tão chegados uns aos outros, deram-me uma sensação de claustrofobia. Escolhi um de cima, para não ter que ficar com o nariz quase enfiado, no colchão do beliche superior. Dormíamos vestidos e calçados. A humidade era extrema. Pegava-se a nós e tudo ficava pegajoso.
Triste tratamento para quem dias antes na parada do Cumeré, tinha recebido os mais rasgados elogios, pela a nossa entrega na defesa do famoso Portugal, indivisível do Minho a Timor. (Não esquecer a passagem pelo Pilão).
Da cerimónia da despedida, recordo-me do chamamento dos mortos da 3489, (Cancolim) 3490 (Saltinho) e da CCS, uma vez que a 3491 (Dulombi) não teve mortos a lamentar felizmente. Esse momento foi sentido por todos camaradas, pois os mortos embora sendo respeitante a cada Companhia, eram também do 3872 e diziam respeito a todos nós. (A leitura do nome dos nossos mortos, é repetida num momento de profunda emoção todos os anos, quando nos juntamos e confraternizamos).
A minha bagagem era pouca. A mala dei-a ao meu camarada Aljustrel. Assim para além dos sacos com a farda, que ia entregar em Lisboa, os meus pertences resumiam-se a um pequeno saco de viagem, com uma garrafa de whisky, uma manta e uma espada Fula que ainda hoje tenho.
O cruzeiro
Para quem teve a sorte de viajar no Niassa, sabe a que me refiro. As escadarias para os porões tinham vomitado que, praticamente, não havia onde pôr as botas. O cheiro era nauseabundo.
O nosso amigo Alfredo Chapinhas enjoou praticamente desde que pôs os pés no barco. Era acarretado todos os dias, por mim e pelo Ivo, até cá cima. Embrulhávamo-lo numa manta e comprávamos-lhe batatas fritas salgadas e sumos, pois diziam que fazia bem. Ele bem se esforçava por comer, mas era difícil.
Eu e o Ivo felizmente não enjoamos e bebíamos cerveja de manhã à noite. Ficávamos praticamente todo o dia aconchegados, no lado do convés protegido do vento.
O mar esteve sempre muito agitado. Nós apreciávamos o navio de guerra que nos fazia escolta a partir de certa altura da viagem. Este estava hermeticamente fechado e as vagas varriam-no da proa à popa. Furava as ondas na vez de as subir e descer, como acontecia com o nosso.
Poucos se arriscavam a ir tomar o pequeno almoço ao refeitório, na proa do Niassa. Um dia o Ivo eu e o Aljustrel teimamos. Vamos lá ver quanto tempo aguentamos. Ao descermos as escadas, para além de nos desviarmos do vomitado, tivemos também que nos desviar dos que vomitavam, nesse preciso momento. Os lavatórios das mãos estavam indescritíveis. Por fim chegamos à mesa, nem me arrisquei a sentar no banco corrido. Estar ali, era como subir e descer três andares constantemente, num elevador completamente doido.
Não sei quem é que fugiu primeiro, mas a verdade ninguém lá ficava muito tempo. A partir daí, ia um à vez buscar as sandes à entrada e fugia logo dali.
Entretanto chegamos à Madeira, onde saíram os homens das companhias independentes, que viajaram connosco. Uma das Companhias levava uma Nossa Senhora de Fátima num andor. Já tinha despertado a nossa atenção, quando embarcaram para a Guiné.
Os oficiais e sargentos desembarcaram para visitar a ilha, mas nós não. Servimos para a tal defesa da Pátria, mas uns mais que os outros. Fomos transportados como gado e também desrespeitados como indivíduos, sem qualquer direitos.
A viagem com mais vomitado, menos vomitado decorreu calma. Dois dias antes de chegarmos a Lisboa, as gaivotas apareceram de volta do Niassa e nunca mais nos largaram. Foi uma enorme alegria.
Dia 4 de Abril de 1974
O Niassa está parado, para nosso desgosto, à entrada da barra. O amanhecer limpo mostra a beleza dos arredores de Lisboa. Lá estava a ponte que dentro de bem pouco tempo mudaria de nome felizmente.
O sol, sobre a cidade branca, dá-nos as boas vindas. Enquanto a partida foi a preto e branco, a chegada é a cores, tal é a luz que se abate sobre nós.
O barco leva uma eternidade a atracar. À medida que os rebocadores o fazem chegar ao cais, vamos tentando freneticamente ver onde estão os nossos familiares.
Os meus lá estavam. Um enorme chapéu de praia multicolor era o sinal. Tinha uma tarja escrita Alcobaça. Já tinha sido esse o mesmo sinal para o desembarque do meu irmão uns anos antes, quando este regressou de Moçambique.
O Comandante manda desembarcar. Abraço os meus pais irmãos, sei lá já quem lá estava. Quase não conheço a minha irmã mais nova que estava uma mulher. A felicidade é tal que salto de uns para os outros. Ainda tenho tempo para os apresentar a alguns camaradas.
Dali é direito ao RALIS. Temos que entregar os fardamentos. Os nossos trastes eram cuidadosamente inspeccionados e eu ainda estava a ver que tinha que ir à Feira da Ladra, comprar algumas peças de fardamento que me faltavam. O assunto foi resolvido com cinco escudos dados ao 1.º sargento (também eram muito bons nisto). Os sacos desapareceram como por magia e o meu número mecanográfico riscado da lista.
A 4L verde escuro, só de três velocidades, é a mesma que 27 meses me tinha levado a Abrantes, naquela triste madrugada.
Vou ao lado do meu pai. Já não sou um civil fardado, mas por impossível que pareça, não estou confortável na minha nova roupa. Os meus olhos enchem-se de paisagem verde e fresca. Quem entra em Alcobaça, vindo de Lisboa pela n.º 1, passa a Benedita, Évora e a partir de Capuchos, têm uma vista panorâmica sobre a vila, (hoje cidade) onde sobressai o Mosteiro com a sua imponência.
Alcobaça está praticamente na mesma. Os sons e cheiros, vejo de passagem algumas pessoas que conheço. Mais tarde vou cumprimentar o resto dos familiares e pessoas amigas.
Nessa noite, vou ter dificuldade em adormecer e quando acordar, não saberei bem onde estou.
Na esplanada do café Trindade, local de encontro dos jovens, recebo a primeira certeza. Já não tinha ali amigos, mas sim conhecidos, os meus amigos, tinha-me despedido deles à saída do Niassa. Ainda hoje os mantenho.
- Olha o Juvenal já cá está. Não nos vais contar estórias da Guiné pois não?
Em resultado do meu silêncio ainda acrescentou:
- Ainda bem, estava a ver que tinha que gramar com mais um herói.
Quem falava assim, nem militar tinha sido ainda. O trabalho de desinformação tinha sido competente. Aquele jovem que não sabia o que era andar debaixo de calor atroz, que quando tinha sede abria a torneira e bebia, não tinha que afastar merda de macaco e beber através de um lenço, o paludismo era-lhe vagamente familiar, que não tinha sofrido ataques nem tinham morrido camaradas ao pé dele, dava-se ao luxo de duvidar da veracidade dos meus testemunhos.
Era mais um candidato a ir bater com os costados em África e estava completamente convencido que aquilo eram só tangas. Este episódio fez-me calar muitos anos. (Ainda hoje não vou a festas onde se lancem foguetes).
Tinha um mês de férias para gozar. A seguir o meu lugar na Fábrica de Vidros Crisal de Alcobaça esperava por mim. A pouco e pouco a vida foi retomando o seu caminho.
O meu irmão mais novo seria o próximo.
... e o sonho tornou-se realidade
Eram talvez sete horas da manhã e sou acordado pela minha mãe que tinha ido ao pão:
- Filho, há uma revolução em Lisboa, a rádio está transmitir apelos à calma e só dá música Militar.
O meu pai no corredor dava pulos de contentamento. Era o 25 de Abril. Depois do Adeus... Grândola Vila Morena.
Muito honra Alcobaça, ter tido pelo o menos três jovens soldados na coluna do Salgueiro Maia. Já no 16 de Março vários jovens desta bela cidade estiveram envolvidos no levantamento.
A partir daí foi a festa de uma vida.
Uma flor em cada arma. Fim da guerra já. Nem mais um soldado para as colónias.
Quem nada tinha, tudo passou a querer. Assistiu-se ao aparecimento de democratas de longa data por todos os lados. Os mais interessantes eram os da União Nacional. Diziam que tinha sido obrigados, muitos deles a denunciar os vizinhos, colegas de trabalho etc. Fraquezas que nós percebemos.
Formam-se partidos por todo o lado e de todas as formas. Há alguns que têm tantas siglas, como tem o nosso NIB bancário hoje. Aliás as siglas passam a fazer parte do nosso dia a dia, RGE (reunião geral de estudantes), RGT (reunião geral de trabalhadores), MRPP-PCPTML, OCMLDP, MDP-CDE, PCP, LCI, LUAR, PS, PPD, CDS, os Estanilistas, Maoistas e os da 4.ª Internacional, etc. Havia para todos os gostos e ocasiões, mas nenhum se assumia de direita, não fosse ser conotado com o anterior regime. Peço desculpa aos que não são mencionados e são muitos.
As rádios transmitiam os cantores, poetas e músicas que antes só ouvíamos às escondidas, muitas delas em estações de rádio clandestinas. Todos sentiam obrigação de se envolverem. Os plenários sucediam-se uns aos outros, marchas onde o Povo estava sempre ao lado do MFA.
Talvez pela primeira vez na minha vida de adulto, tive verdadeiro orgulho naquela farda que também eu tinha envergado quase 3 anos. Os novos heróis eram humildes capitães, (os generais apareceram depois). Todos formados nas agruras da guerra colonial. Na maioria ganharam a ânsia de liberdade nos duros combates nas matas da Guiné, onde os soldados portugueses se bateram com bravura.
Dois Povos a Mesma Luta. A nossa Bandeira já não era a da opressão, mas da festa e da liberdade.
A famosa aliança POVO-MFA. A libertação dos prisioneiros políticos. O regresso dos exilados.
Importou-se palavras de ordem do Chile de Salvador Allende e Victor Jara, O Povo Unido Jamais será Vencido.
O antigamente espreitava, mascarado de democrata. A Espanha Franquista arreganhava os dentes para a nossa democracia emergente. Cá dentro tinha os seus apoiantes. Que mau exemplo que nós éramos
O 28 de Setembro 1974, Maioria silenciosa
Nas primeiras eleições fui delegado de um partido à secção de voto numa aldeia chamada Vimeiro. Lá ia levando uma carga de pancada por ter denunciado que os indivíduos da mesa de voto estavam a favorecer uns certos partidos. Para além disso as pessoas levavam folhetos com os emblemas, em quem tinham sido instruídas para votar. Começava bem a democracia.
Nas eleições seguintes aconteceu-me o mesmo em Turquel, onde era mais uma vez delegado. Fugi deitado no fundo de um carro. Companheiros que estavam noutras secções de voto foram barbaramente espancados.
O 11 de Março 1975, as nacionalizações, Reforma Agrária e o Verão Quente ... Os governos sucediam-se, o espectro do sangrento golpe fascista no Chile em 11 de Setembro de 1973 pesava sobre a nossa nova democracia.
Também eu fui candidato, delegado sindical e membro de comissão de trabalhadores. Vivi 48 horas em cada 24, tal era a rapidez em que tudo mudava.
O 25 de Novembro de 1975. Disseram, que foi para pôr Portugal novamente nos carris. Como se vê não conseguiram, a não ser para alguns. A cauda da Europa continua a ser a nossa posição, ultrapassados que fomos até pelos países de Leste da finada URSS.
Primeiros lugares talvez em Festivais de Verão, custo de vida sempre a subir, desemprego, desaparecimento da classe média, etc.
A Festa durou até às tantas e foi bonita a festa pá.
Juvenal Amado
06.08.008
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