domingo, 17 de agosto de 2008

Guiné 63/74 - P3136: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (15): À noite...

Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil, CART 2339 (Mansambo, 1968/69), de 3 de Agosto de 2008, dirigida a Luís Graça

Caro Camarada
Tenho a informática avariada ou em férias. Mas vai um escrito. Se receberes diz-me por favor. Texto simples, de noite de ontem que se mantém hoje em abandono de sono. Vidas.
Roubo-te tempo e disso me penitencio.
Perdi todos os endereços que estavam no outlook. Sobram poucos no gmail.
O informático formatou e apagou... é obra... DIZ-ME ENTÃO.

Um abraço do
Torcato Mendonça

PENSAR EM VOZ ALTA – H (*)
Por Torcato Mendonça

1 - À noite, quando o silêncio melhor se instala, para não nos sentirmos tão sós, pomos a tocar, em fundo, música suave e, a partir daí instalamo-nos, pensamos, lemos, escrevemos ou, simplesmente, vamos trilhando caminhos num doce embalar, sonhando ou pensando – num por vezes; pensar em voz alta – permanecendo mais, ali ou além, num ou noutro ponto, esquecendo o tempo, o avançar da noite.

Aconteceu hoje, sentindo assim mais o que acabamos de ler. Tínhamo-lo feito no ecrã, ao correr do cursor. Preferimos imprimir e ler atentamente no papel. Já não se usa dizes-me tu Camarada. Talvez tenhas certa razão. Mas texto de importância, escritos que envias para quem gostas ou recebes, diz-me se não preferes o papel. Claro que sim.

Por isso li pausadamente, apreendendo e aprendendo, confirmando e questionando-me, anotando e, já numa das notas finais deste texto de vida dizem-me que: um Homem nasceu numa ilha de poetas, de flores e de mulheres bonitas. Diz-me tu se a beleza desta trilogia não te levava a querer ter nascido e a viver em semelhante lugar? Não sentes o peso forte e indissociável desta trilogia? Sentes. Eu sabia que sim. Olha eu parei e pelo silêncio da noite, pela suavidade da música, pelo teor tão diverso do texto anteriormente lido, ou, talvez, isso sim pelo somatório de tudo e porque sou assim, sonhei acordado, viajando não sei para onde, viajei e, mesmo neste primeiro dia de Agosto, quase que senti o frio de Inverno, o silêncio da neve ao cair, o caminhar na noite braço com braço, com uma mulher e sentia, ao andar, o calor dela vindo, atravessando pele de casacos, a voz, a voz dela a entrar doce neste caos de ideias, de sonhos, ia, íamos caminhando, contando confidências, alheios a tudo rumo ao desconhecido. Sim porque era um sonho de pessoas e lugares. Um sonho só de alguns. Só que a realidade é outra, quer a do texto lido quer o voltar lá sempre. Hoje, nesta data sofri, há muitos anos atrás, um ataque em Cansamba. Estava a trabalhar para a 2405 de Galomaro e para o COP7. Parou o sonho e veio, como sempre à memória. Não queria falar de guerra, nem pensar nessa brutalidade agora. Mas vem sempre, por ler textos assim, por pertencer ainda, em parte, a esse passado, àquela terra, as suas gentes e sinto e gosto mesmo sabendo não terem ainda direito a serem felizes.

Dizes-me: - Mas que sabes tu daquele terra se nela só fizeste guerra?

Certo. Estás certo. Mas talvez por isso a sinta, os sinta mais fortemente. Talvez por isso, tudo com eles relacionado é, em intensidade, por mim vivido. Que queres Camarada?! Sou assim.

- Assim como? Bem, que queres que te responda? Que queres que te diga? Foi há tanto tempo o meu regresso, foi tanto o deambular perdido ou convencido por tanto lado. Mas aquele tempo, aquela guerra é que para mim conta. É como uma segunda terra, como uma gente que sinto de forma diferente. Sabes, sei que sabes, mas repito-me: tenho dificuldade de ser de algum lugar. Dizia-te: depois de regressar ia tendo conhecimento do que se passava, ia sentindo, ia apertando os dentes, anotando mas, incompreensivelmente, anotando e guardando no fundo da memória. Era tempo de outras vidas, de outras vivências e prioridades. Por isso quis ler atentamente aquele belo escrito de vida ou vidas. Sentimos algo misto de carinho e fraternidade. Sentimos também, por fraqueza nossa, certa revolta. Muito nós sabíamos. Não sentimos ódios pois não entram na nossa vida, no modo como a atravessamos. Sentimos, isso sim, revolta connosco, com outros, poucos por nem isso talvez mereçam. São pequenas peças de um sistema abjecto da vida real. Sim Camarada lá existe mas diz-me só lá? Calas-te. Certo. Não só e muitos sistemas bem piores até são tolerados e aplaudidos.

És português como eu e por isso respondes: que havemos de fazer? Paciência, é a vida!

2 - Não te quero roubar mais tempo, menos ainda inquietar em tempo de agostos, mês de paragem de trabalho em países de primeiro mundo, como é o nosso. Só que li uma notícia a invalidar talvez sermos do primeiro mundo. Cortamos na pensão anual dos antigos combatentes e poupamos milhões. Ou seja, passa-se a pensão de 150, para 100, ou 75 Euros, em corte a 290 mil e poupa-se 13 milhões. É obra. Não ficam, alguns, tão à vontade no pagamento da factura da farmácia ou em beberem mais um copo para terem melhor sono… mas poupa-se. Os tipos já estão a ir… calma camarada não apertes os dentes. Não pedimos nada mas exigimos respeito. Começa a aborrecer Camarada, começa a aborrecer. Que dirão certos homens de muitas estrelas e galões desta poupança de tostões? Ajuda alguma missão de auxílio a povo aflito, ou à prestação de um pandur, ou lá o que é, ou F16, submarino ou eteceteras… mas... olha não te chateies Camarada… vai-se resolver pois cada vez somos menos…

3 – Estás a pensar que estou a ficar desequilibrado ou a não ter paciência por não calar. Nada disso. Não te preocupes. Agradeço a tua preocupação pela minha sanidade mental.

Digo-te que ainda hoje tenho orgulho de ter pertencido ao Exército do meu País.

Agradou-me ouvir um Militar, a sério, dizer que pertencia a seu Exército ou pensar como eu que: - Em cada dia que passa e nada de novo aprendemos é um dia perdido.

Hoje apreendi e aprendi muito com aquele texto de um Homem e uma Mulher que me deram uma lição de vida. Espero que amanhã ou nos dias seguintes não sejam dias perdidos…

Não te aborreço mais.

Deixa-me voltar a sonhar com a neve a cair e sentir o calor e afecto de quem ao meu lado caminha…lentamente vai o sonho e entra, de mansinho, o sono…
____________

Nota de CV

(*) - Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3080: Blogoterapia (58): Pensar em voz alta... Que vidas, que merda! (Torcato Mendonça)

2 comentários:

Anónimo disse...

Sonha Camarada!
Quem não sonha não sente a magia da vida.
Não é doutoral exposição, mas os teus escritos meu amigo, são a razão, sentir e viver de milhares de Irmãos.
Nem a todos foi dado o Dom, de se exporem assim "alma nua"... Igual à tua, são muitas as que vagueiam nestes Agostos."Horas mortas a Planície é um brasido".
Escreve!...Sempre... há sempre uma brisa suave, que leva a tua mensagem a sencivél receptor.
Aguardo sempre os momentos maravilhosos com que nos transportas para a conspiração das nossas mentes.

Sem sono num luar de Agosto, a guerra tão longe, mas tão perto,como odor presente de mulher amante.
Asta Siempre!

Mário Fitas

Anónimo disse...

Sonha Camarada!
Quem não sonha não sente a magia da vida.
Não é doutoral exposição, mas os teus escritos meu amigo, são a razão, sentir e viver de milhares de Irmãos.
Nem a todos foi dado o Dom, de se exporem assim "alma nua"... Igual à tua, são muitas as que vagueiam nestes Agostos."Horas mortas a Planície é um brasido".
Escreve!...Sempre... há sempre uma brisa suave, que leva a tua mensagem a sencivél receptor.
Aguardo sempre os momentos maravilhosos com que nos transportas para a conspiração das nossas mentes.

Sem sono num luar de Agosto, a guerra tão longe, mas tão perto,como odor presente de mulher amante.
Asta Siempre!

Mário Fitas