sábado, 3 de setembro de 2011

Guiné 63/74 - P8729: Notas de leitura (270): A Pele dos Séculos, por Joana Ruas (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Agosto de 2011:

Queridos amigos,
Se alguém ainda tem ilusões que acabaram os livros misteriosos esta “A Pele dos Séculos” irá trazer algum desengano e surpresa. É, do princípio ao fim, um equilíbrio instável de uma escritora inequivocamente fascinada por aquela África onde vivemos e o uso exuberante de um português antigo, manifestamente não convivente com o objecto amado. Daí alguns equívocos que poderá suscitar, mormente se se trata de literatura comprometida (mas será que toda a literatura não é ela própria, em si, comprometida?), qual a mensagem que pretende fazer passar sobre os desastres da guerra.
Trata-se de um livro esgotado e estranhamente esquecido. Talvez na recensão se possam encontrar essas razões.

Um abraço do
Mário


Os desastres da guerra
(ou quando a literatura torna real o que a História deixa no olvido)

Beja Santos

O livro “A Pele dos Séculos”, de Joana Ruas (Editorial Caminho, 2001) é um romance a vários títulos inqualificável: envereda pela dissertação histórica, faz constantes apelos à exaltação etnográfica, etnológica e antropológica; mescla vários discursos entre o português antigo e os linguajares contemporâneos; recorre abundantemente a histórias entrecruzadas em que os protagonistas vagueiam por labirintos, encontram-se e desencontram-se, iludem-se e desiludem-se, entusiasmam-se com a gesta dos combates ou rapidamente prevêem os infortúnios das falsas mudanças. É uma história da Guiné a partir de muitos sonhos africanos, um olhar para dentro do movimento independentista, apercebendo-se das contradições, traições e o fim dos sonhos que alimentaram a luta armada. Joana Ruas culmina com este romance uma experiência guineense prolífica e versátil, conforme consta dos seus dados curriculares: “Na Guiné com o PAIGC”, reportagem escrita nas zonas libertadas da Guiné em 1974; no jornal da Guiné-Bissau, Nô Pintcha, redige, em 1975, a página de literatura africana de língua portuguesa; traduz textos inéditos de Amílcar Cabral escritos em língua francesa e recolhe na aldeia de Eticoga (ilha de Orangozinho, arquipélago dos bijagós), a lenda da origem das saias de palha; escreve o romance “Corpo Colonial” publicado em 1981; é autor de uma comunicação intitulada “A Guerra Colonial e a Guerra do Futuro”, apresentada no Congresso Internacional sobre a Guerra Colonial, organizada pela Universidade Aberta em 2000.

A obra tem uma trama complexa: meninas que se encontram em Angola nos anos 50 e que ciciam dentro de um mosquiteiro; no final do romance, uma delas escreverá que foi à procura da outra na Guiné-Bissau, desencontraram-se, mas a que foi procurar encontrou os elementos para escrever este romance. O romance é caleidoscópico: emerge através de uma dessas histórias de encantar e sabemos que a guerrilheira que é procurada pela autora se chama Julieta; ela sujeita-se a toda a iniciação em que se mistura o animismo e o islamismo, é um mero pretexto para entrarmos no palco da guerra mas também para conhecermos as lendas e a épica dos povos africanos.

Poucas serão as circunstâncias em que Joana Ruas irá detalhar em corpo-inteiro os seus protagonistas. Uma dessas excepções tem elevado recorte literário, como se transcreve: “Dimingo, o engraxador, entrou pelas traseiras e guardou a um canto a caixa com as escovas e as latas de pomada de graxa; esticou o pano de lustrar, uma flanela polida que fazia, ao roçar pela sola das botas dos soldados aquele sonante estalo tá… tátá tão bem feito que era como a sua assinatura bem rabiscada. A verdade é que era bastante procurado pois gostavam do som e ainda daquela carícia prolongada da tira da flanela no calcanhar da bota, fazendo, zuztruz, zuztruz. E quase sempre, de gorjeta, lhe atiravam uma moedinha ao ar que ele apanhava fazendo uma curva bem ilusionista, com a mão, por detrás das costas. E enquanto engraxava abanando a cabeça com ar despreocupado, batendo a tira de feltro ao ritmo do engraxar um ritmo de swing, ia escutando as conversas dos soldados”.

O romance faz gravitar paixões diabolizadas como os amores de Gaspar por Manuela, que o agente da PIDE Travassos, pai de Manuela procurará dinamitar. É num discurso de possessão que o leitor será confrontado com o estéril a que chegou a relação entre Travassos e Bárbara, a sua mulher. Eles trocam acusações e estas, simbolicamente, valem a metáfora da utilidade ou inutilidade daquela guerra. Um tocador de harpa atravessa toda a Guiné, é o novo pretexto para se falar das guerras da religião, depois é introduzido Koloba Mané um pescador que faz o seu ofício no rio Pobreza. Os nomes das personagens não vêm ao acaso: há o rio Arranja a Vida, há um alferes que se chama Pais Sidónio, o tocador de korá Amílcar anseia por conhecer Amílcar Cabral; o médico cubano chamava-se Ernesto como Che Guevara, etc. Joana Ruas, é perceptível, está amplamente documentada sobre os cancioneiros de várias etnias, conhece-lhes os usos e costumes, recupera a atmosfera da Guiné-Bissau de ambos os lados, confabula delações, intrigas, sortilégios.

Uns lutam pela independência, outros combatem irmanados pela sobrevivência. Uns são como Pedro Pão e Água, os portadores da História, grumetes, vadios, à cata do futuro; igualmente a guerra suscita equívocos, até os do coração, mulheres crescidas são perseguidas por quase adolescentes em elevado estado de solidão; Julieta, a guerrilheira, não resiste a tomar decisões implacáveis, como o fuzilamento de guerrilheiros negligentes, está endurecida, de luto por dentro.

Joana Ruas também não ilude a enorme atracção poética mesmo no rebuscado das imagens mais violentas que sacodem aquela guerra, por definição ditando as regras do destino incerto de toda a gente: há fábulas de gente morta que ressuscita, há quase antropomorfismos, quando necessário mascara-se o rigor histórico e Amílcar Cabral aparece em Conacri na noite da invasão, em 1970. As batalhas são estranhas, o vitorioso sente-se derrotado e aquele que é obrigado a fugir veste a indumentária do herói. Dentro desta poética, descobre-se que o maior dos desastres da guerra não é a solidão nem o medo, é a lucidez no entendimento de que depois da guerra o guerrilheiro ficará amolentado pelos prazeres da praça conquistada, Bissau, a gravitação do poder. Ao de leve, Bissau não acolheu os homens vindos do mato, quando chegou a independência, deixou-os entrar, fê-los cair na armadilha de que o bom viver já não eram os sonhos da guerra, o viver frugal mas empanturrado de sonhos. É deste ângulo que se pode entender qual o uso do imaginário que Joana Ruas pretende para esta deambulação ou dolorosa caminhada de africanos à procura de uma Pátria, caminhada de enganos e logros, em que o passado pouco ensina ao presente, a chegada a Bissau foi um corte no rio do tempo. É assim a pele dos séculos, estar à espera do fim da dominação, o africano, desesperado, ainda sonha no devir da Guiné como nação africana portadora de futuro.

Nestes termos, é uma literatura em que o escritor europeu se embrenha no compromisso do diálogo multicultural, enovelando mitos, criando máscaras, fé nos deuses, fascinado por amores imortais, que depois se suspendem ou matam, imprevistamente. Guiné 63/74 - P8702: Notas de leitura (268):É uma literatura de signos e de equívocos: o leitor europeu chega a poder pensar que a autora se embriagou com a épica que forjou nos guineenses; e o leitor guineense chega a poder pensar que a autora se entusiasmou com aquele mosaico étnico e com o desespero daqueles desastres da guerra que terão deixado a Guiné sem futuro, tudo por obra e graça de uma incapacidade da Guiné, à imagem de um continente, não ter meios ou desígnio para se erguer e levantar o Estado. É esse mesmo equívoco que torna ainda mais misterioso a mensagem do romance de Joana Ruas.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Setembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8716: Notas de leitura (269): lutte armée en afrique, de Gérard Chaliand (Mário Beja Santos)

6 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Ainda não li a recensão, mas conheço a autora (pessoa fisica), já que a encontrei numa sessão do BMRR no bairro Comandos Africanos, assacando a estes últimos os conflitos acontecidos após a independencia recomhecida. Disse conhecer a Guiné e as suas gentes, mas ficou, pelo menos a mim, que conheceu a Guiné onde o PAIGC a levou, pois que foi sempre acompanhada por eles.
Agora vou ler a recenção.

antonio graça de abreu disse...

Meu caro Zé Martins.

Dizes conhecer Joana Ruas que --, segundo as tuas palavras, e tu és um homem honesto --, afirmou na Biblioteca Museu da Resistência,que os Comandos Africanos são os responsáveis pelos "conflitos acontecidos após a independência".
Ou seja, foram fuzilados às centenas
por responsabilidade, por vontade própria. Quem acredita?
Também afirmas que a Joana Ruas "disse conhecer a Guiné e as suas gentes, mas ficou, pelo menos a mim, que conheceu a Guiné onde o PAIGC a levou, pois que foi sempre acompanhada por eles."

Assim se conhece a Guiné, e depois escrevem-se romances!...

E temos estas impagáveis recensões, tudo muito a sério,
com elevado recorte intelectual
e aprofundada sabedoria.
estarei a ser injusto?
Pobre blogue!...

Abraço a todos,

António Graça de Abreu

Unknown disse...

Trata-se de um romançe (aqui estou momentaneamente a lembrar-me de Lobo Antunes). Caro José Martins, não conheço a Srª nem a Escritora, concerteza como eu muitos outros membros do Blogue. Seria capaz de nos falar sobre o percurso literário da autora. Suas origens, sobre o seu estatuto sócio-politico e/ou sei lá que mais ???.
Assim ficaria-mos melhor esclarecidos e documentados.

Claro, as zonas mais ou menos controladas pelo Paigc, eram zonas de livre trânzito..., até ia-mos para lá passear... Por favôr.

"Pobre blogue!..." , não, não é pobre blogue, porque além de alguns, tambem outros teem a oportunidade de transmitirem as suas opiniões, conhecimentos e quiçá pensamentos. E ainda bem que assim é.
O direito de quem discorda é rebater de uma forma clara, apresentando contra-argumentos e/ou alternativas, o que não anula os principios individuais de cada um de nós.

Cumprimentos a todos.
Carlos Filipe
ex- CCS BCAÇ3872 Galomaro/71

Anónimo disse...

Meus amigos

O meu comentário "saiu" truncado, já que falta algo entre "no bairro" e "Comandos Africanos" ou seja: no bairro Grandela em Lisboa. Falou sobre os Comandos".

Quando disse "pessoa física" é isso mesmo: a figura e não a pessoa. Ela estava presente, entre um grupo de certa forma habitual, no qual eu me incluo, nas sessões sobre literatura de guerra e, desse facto, tenho fotos.

Usou da palavra para falar sobre a Guiné, pois da Guiné se falava, com uma apresentação do nosso camarigo Alberto Branquinho e sobre o seu livro Cambança.

Pessoalmente não gostei da forma como “encaminhou” a sua intervenção. Falou sobre a “actuação dos Comandos” que não queriam entregar as armas, falou de que andou por vários sítios na Guiné e que tudo era normalidade, mas, como eu disse, ficou a sensação de que “andou por onde a levaram”.

Falou do seu livro A PELE DOS SECULOS, fazendo a apologia do mesmo. Constatei que o mesmo se encontrava esgotado e procurei-o numa biblioteca. Encontrei-o da Biblioteca D. Dinis, em Odivelas e, como leitor, requisitei-o, para leitura domiciliária. Comecei a leitura, mas acabei por devolve-lo sem o ler. Por isso o meu comentário antes de ler a recensão.

Depois de ler a recensão, a minha ideia mantêm-se: o livro e a autora, confundem-se, originando algumas contradições e ideias pré concebidas e repetidas até se tornarem na “nossa verdade”.

Toda esta minha apreciação é baseada na presença e intervenção que a senhora teve no Grandela, as primeiras páginas do livro que comecei a ler e, agora, a leitura da recensão do Mário. Deu-me a sensação que, o seu apego a África, mas com o conhecimento de um só lado, a faz extravasar opiniões, faladas, que a empolgam e ignora que, do outro lado, também existem pessoas que podem ter uma visão, conhecimento ou experiencia diferentes.

Sei que acabaram por ser organizadas sessões apresentadas por “não combatentes” para que a senhora tivesse lugar para apresentar a sua obra. Eu, no entanto, não consegui estar presente.

O Mário aborda que a autora escreveu uma reportagem nas zonas libertadas em 1974, a que deu o título de Na Guiné com o PAIGC.

Há que lembrar que, na Guiné a partir de Maio de 74, tudo era “zona libertada”, uma vez que as forças portuguesas estavam confinadas a um raio de cerca de 2 quilómetros a partir dos aquartelamentos, para recolha de água e lenha. Toda outra e qualquer movimentação tinham que ter o aval do PAIGC. Em Outubro, após a entrega, os militares regressaram à metrópole.

O livro A Pele doa Séculos, foi editado em Junho de 2001, pela Caminho, com uma edição de 1500 exemplares.

Creio ter respondido aos camaradas que me antecederam neste comentário.

José Marcelino Martins disse...

O comentario, o 4º, não assinado é meu.

antonio graça de abreu disse...

Muito obrigado, Zé Martins pelo teu acrescento ao primeiro comentário, agora mais abrangente e esclarecedor.
Registo nas tuas avisadas e honestas palavras:

" O livro e a autora, confundem-se, originando algumas contradições e ideias pré concebidas e repetidas até se tornarem na “nossa verdade”.

Registo nas palavras do recensor MBS,
em título, com maísculas e tudo, esta excelente frase, digna de grande escritor:

"Os desastres da guerra ou quando a literatura torna real o que a História deixa no olvido:"

E mais não digo.

Abraço,

António Graça de Abreu