Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Cuor > Missirá > 1968 > O Tigre de Missirá, mais alguns dos seus homens do Pel Caç Nat 52, no famoso burrinho (o Unimog 411), com que reabriu a estrada Missirá-Enxalé antes da visita do comandante do novo batalhão (BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70).
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados
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Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1968 > O comandante do BCAÇ 2852, tenente-coronel Manuel Pimentel Bastos, assinalado com um círculo a verde, numa das suas primeiras visitas a uma das suas unidades de quadrícula (neste caso, a CART 2339, Mansambo, 1968/69).
Fotos: © Torcato Mendonça (2006). Direitos reservados.
Texto enviad0 em 25 de Outubro de 2006. Continuação da publicação das memórias do Mário Beja Santos, como alferes miliciano, comandante do Pel Caç Nat 52 (Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1).
Caro Luís, tens que fazer das tripas coração para ilustrar este texto: não tenho fotografias de Enxalé, mas pode ser que possas pôr Mato de Cão. Tudo o que fotografei nesta época ardeu. Tens aí em teu poder uma fotografia em que estou a dar aulas, há outra em que estou com o Quim, o Adão e outros mais. Não tenho fotografias do Pimentel Bastos. Vê o que podes fazer. Estarei em Roma até Domingo à tarde. Na terça feira de manhã, oiço aqui o Queta Baldé para ver se ele me refresca a memória. Depois será a vez do Fodé Dahaba. Por todo o cuidado que tens tido nesta odisseia recebe o reconhecimento do Mário.
A viagem triunfal do Pimbas ao Cuor
por Beja Santos
Entre Outubro e Novembro de 68, Manuel Maria Pimentel Bastos, Comandante do BCAÇ 2852 (ternamente conhecido na caserna pelo Pimbas, ao que consta o seu nome poético) (2), decidiu visitar os diferentes quartéis do sector, começando em Xitole e Mansambo, passando por Xime e Galomaro, depois Missirá e também Demba Taco e Taibatá e algumas tabancas em autodefesa.
O novo Comandante de Bambadinca, seguramente por decisão do Comando-Chefe, procedia a auscultações dos régulos da região a que não era alheia o fenómeno do reagrupamento de populações e o reforço das tabancas em autodefesa. Notificado da visita ao Cuor, após consulta dos Furriéis, do régulo e dos comandantes de milícia de Missirá e Finete, tomei as seguintes disposições para aprimorar o programa:
(i) visita a Finete e recepção do régulo que acompanharia o Comandante na visita ao aquartelamento e tabancas, destacando a importância estratégica e a debilidade do sistema defensivo;
(ii) montagem de patrulhamentos entre Missirá e Finete para permitir uma progressão rápida entre quartéis;
(iii) recepção em Missirá, cerimónia do içar da bandeira, visita aos melhoramentos e ao sistema defensivo, seguindo-se uma reunião com régulo e furriéis, bem como os comandantes das respectivas milícias;
(iv) depois da pernoita do comandante em Missirá, trazê-lo de volta a Bambadinca na manhã seguinte, montando os mesmos dispositivos de segurança na estrada até Finete, desde o amanhecer.
Em meados de Outubro, o Pimbas informou-me que se faria acompanhar do David Payne Pereira (3), o médico que começava a ganhar aura de santidade entre as nossas populações civis. Os preparativos incidiram sobre a limpeza das moranças civis e abrigos, metais brunidos, bota luzídia e farda a condizer. Doutor e Umaru Baldé estagiaram na messe de oficiais para conhecer os gostos gastronómicos do ilustre hóspede, procurando reproduzi-los à justa medida. Estava lançado um plano de azáfama, arranjos urgentes, reparação de móveis e alguns toques de estilo.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Dezembro de 1969 > A equipa de futebol de oficiais de Bambadinca que acabara de jogar contra uma equipa de sargentos. Na fotografia aparece, na segunda fila, de pé - devidamente assinalado com um círculo a azul - o médico David Payne (já falecido), tendo a seu lado, à direita, o major Cunha Ribeiro, 2º comandante do BCAÇ 2852 e, à sua esquerda, o capitão Brito, comandante da CCAÇ 12. O Payne acompanhou o Pimbas na visita ao regulado do Cuor.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados.
Um homem culto, um melómano,
Pimentel Bastos era um homem de cultura, loquaz até à exaustão, um comunicador habituado aos salões, vivendo longe das vicissitudes do nosso teatro de guerra. Nos primeiros encontros que travámos descobrimos rapidamente afinidades que tanto passavam pelo Jorge Amado e Carlos de Oliveira como por Bizet, Verdi e Brahms no tocante a música coral, ópera e sinfonia. Logo comecei a idealizar seja um concerto de música por mandingas seja um serão musical, em Missirá. Quando o sondei, abriu-me os olhos com cupidez e perguntou-me:
-Ouve lá, tu não sabes como eu gostaria de ouvir ópera no mato profundo, deixo o programa ao teu critério. Só com uma ressalva, não me vais obrigar a ouvir uma ópera do Wagner por inteiro. O resto é à tua discrição.
É exactamente neste período de azáfama que uma manhã, pelas 5 e meia, acordando e estando em ângulo recto na cama a olhar os pés inchados e besuntados com Lauroderme, ganhando energia para mais uma viagem a Mato de Cão quando os meus olhos caíram na minha mais que apodrecida carta de 1:50000, juntei-lhe a carta do Enxalé e disse para mim:
-E se voltássemos a abrir a estrada, indo com as viaturas, picando cuidadosamente de Saliquinhé a São Belchior e daqui a Enxalé?
Querendo medir a insensatez da temeridade, e verificar se a hipótese era concretizável, chamei os três cabos mais antigos do pelotão, o Paulo Ribeiro Semedo, o Domingos Silva e o Zé Pereira, gente educada em Bissau, formados em Bolama, em 1964, e já conhecedores do Enxalé. Quando lhes falei da possível visita, trataram o possível acontecimento com a maior das naturalidades:
-E porque não? No passado, quando viemos de Porto Gole para Enxalé, fazíamos regularmente a estrada. Depois começaram as minas e as emboscadas e o nosso alferes Zagalo desistiu. Devíamos era ir pelotão e meio, mais gente a picar, deixávamos depois em Mato de Cão meio pelotão em patrulhamento, picávamos bem até lá e vínhamos depois a correr para impedir qualquer emboscada.
São Belchior, o mais importante entreposto do Rio Geba, depois de Bissau
Do imaginado ao realizado a distância foi curta. Todos pareciam voluntários, pois a maioria do pelotão tinha passado por Enxalé, onde igualmente habitavam fulas e mandingas. Houve imediatamente pedidos da população civil e num ápice apareceram sacos à cabeça, gente com Mausers, vontades adormecidas de comerciar e trocar. Os Unimog estavam reparados e atestados, juntou-se combustível suplementar à cautela. A louca viagem ia começar. E, quando em Mato de Cão passou um comboio de três embarcações onde os tripulantes olhavam surpresos aquele estranho aparato, já um grupo de seis picadores se lançava a espiolhar as condições da estrada.
Saliquinhé tinha sido uma ponta com boas moradias e muito terreno lavrado. Atravessámos um grande palmeiral e depois a extensa bolanha junto do rio de Ganturandim. A seguir, avistámos os vestígios imponentes do que fora S. Belchior. Quem já estudou a história da Guiné do séc. XIX, sabe que S. Belchior foi o mais importante entreposto do Rio Geba depois de Bissau, foi mesmo o limite da presença portuguesa, já que o território a seguir andou permanentemente em litígio até Teixeira Pinto. Tudo em ruínas agora, mas não escondendo o bulício e os negócios de envergadura do passado.
Uma hora depois avistámos copas frondonsas de bissilões e Quebá Soncó, o irmão do régulo, que seguia imponente levando o seu chapéu à turca com estrela de prata, anunciou a proximidade do aquartelamento. Fomos recebidos em Enxalé com muita cortesia e não menos surpresa. Não se duvide que eu estava em transgressão, ultrapassar o meu sector, o alferes do Enxalé começou por suspeitar que se tratava de uma rendição ou operação conjunta, até à despedida tomou esta visita como uma rematada loucura que ele premiou com um almoço de galinha frita regada com vinho do Dão.
Regressámos a toda a brida, as viaturas roncando em estradas completamente esquecidas do que é presença humana e juncadas de restos de viaturas e os mais diversos sinais de civilização abandonada. Resta dizer que, quando ao anoitecer entrámos em Missirá com a alegria estampada do inédito da aventura e o fim dos temores de quem nos esperava, começaram a troar rebentamentos das forças de Madina/Belel [, base do PAIGC, a noroeste].
Seguramente que os sentinelas advertiram de Sinchã Corubal, os de Madina ficaram alarmados julgando tratar-se de uma coluna militar se deslocava a partir do Enxalé, sabe-se lá para onde. Mais tarde, Madina voltou a advertir que estas incursões não eram desejadas: Missirá e Finete serão flageladas, a primeira ao de leve, a segunda para deixar pesadas feridas. Depois falaremos destes acontecimentos.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > Missirá > Pel Caç Nat 52 > 1969> A nova mesquita local. Era também aqui, em Missirá, que vivia o régulo do Cuor.
Foto: © Beja Santos (2006). Direitos reservados
O que interessa agora dizer é que numa manhã cheia de luz, a tropa escoifada e com expressão festiva acompanhou o Comandante de Bambadinca na cambança do Geba, uma viagem de burrinho pela bolanha de Finete, onde teve lugar uma recepção onde não faltaram reverências das mulheres grandes dos Soncó e dos Mané. Pelo caminho ocorreram acidentes como Ussumane Baldé, que ia num brinco, e caiu desamparado dentro da água lamacenta.
O Pimbas sorria, de vez em quando pedia uma garrafa de água, fazia exclamações, estava excitado com aquela pequena mas tocante apoteose. A viagem até Missirá nunca mais a esqueci, pois falámos de tudo menos de guerra., como dois cavalheiros num clube. Quando lhe falei das ruínas monumentais da Aldeia de Cuor, o Pimbas, acicatado pela curiosidade, quis lá ir. Fui peremptório na negativa, sugerindo que tínhamos ali um aliciante para a próxima visita.
Na porta de armas, foi tratado como uma marechal de campo que viesse em visita aos mais destemido dos exércitos. Passeou-se e deslumbrou-se com os elementos de conforto como a messe, o balneário, os arranjos à volta da mesquita, a progressiva segurança dos abrigos. Mas não ignorou a fragilidade, a falta de electricidade, a incapacidade de sermos uma força ofensiva, pondo o inimigo permanentemente a respeito.
A tarde finava-se, o Pimbas preferiu uma bonita alocução aos militares e aos civis. Na messe, conversou com todos, tudo perguntava, parecia que tudo era completamente novo e digno de curiosidade naquele ermo do mundo. Seguiu-se o inacreditável jantar, e ainda hoje pergunto se é verdade que o Umaru serviu com luvas brancas, entregando um trinchante aos convivas, servindo o vinho, a água como se estivesse habituado a banquetes em Missirá (mal sabia o Pimbas que nesse dia faltaram bandejas e outras peças da baixela a Bambadinca...).
Antes do serão musical mostrei-lhe a morança onde ele ia dormir, perguntando se estava tudo a seu gosto. Como não sabia, nem ninguém me explicou se um Comandante no mato faz as suas necessidades como qualquer mortal, mandei comprar um penico no estanco do Zé Maria. O David Payne também foi instalado noutro abrigo, e pareceu-me satisfeito com aquele precário serviço de hotel.
O insólito: A Aída e a Traviata em Missirá
Chegámos agora ao clímax. Proponho em primeiro lugar ouvir árias por vozes sublimes: Maria Callas, Elena Suliotis, Regine Crespin, George London e Giuseppe Di Stefano. No intervalo, enquanto suas excelências beberricavam uísque puro, anunciei o Requiem de Mozart. A proposta foi aprovada com entusiasmo. E quando eu julgava que não teria sentido pelas 10 horas da noite convidá-los aos 4 actos da Aída, os ilustríssimos convidados mostraram a excitação ao rubro. Entrávamos na noite de ópera, como se estivéssemos no Scala ou no Convent Garden.
Ouviu-se a Aída com volume de som desmesurado, duvido que alguém pudesse estar a dormir com o Franco Corelli a protestar amor eterno à escrava etíope.
Encurtando razões, quando os heróis estão agonizantes no termo do 4º Acto, sendo já meia noite, na perspectiva de uma noite em vigilância, propondo ao Pimbas que se recolhesse de acordo com a sua condição, então não é que o David Payne que remexia no vinil e estava esgazeado com La Traviata , cantada por Joan Sutherland, Carlo Bergonzi e Robert Merrill, num elenco de nomes gigantescos, numa versão que ainda hoje continua no top das execuções sublimes, me pediu com aquela delicadeza que lhe era peculiar:
-Não te importas que quando o nosso Comandante se for deitar vamos ouvir a Traviata - Pedi-lhe que tivesse dó por um desgraçado que ia iniciar o turno da noite. Ele conformou-se e ouviu La Traviata sozinho. Pela hora do almoço, despedi-me do Pimbas na outra margem do Geba e ele exclamou para quem o quisesse ouvir:
-Menino, foi uma noite de estalo, quero que se repita por muitas e boas!
O Pimbas só voltará a Missirá nas circunstâncias dramáticas da Op Anda Cá, quando a sua estrela caminha para o ocaso. Foi uma noite tão boa e tão vibrante que quando há tempos eu ouvia o noticiário da Antena 2 que dava notícia da morte da Birgit Nilsson, a Aída daquela noite, não resisti a ir buscar o velho vinil e examinar o disco referente ao 4º Acto todo riscado por me ter levantado bruscamente quando uma morteirada caiu em cima do meu abrigo, lá para Setembro de 1969.
Entretanto, há prodígios que devem ser contados. Por exemplo, o Furriel Casanova vai tomar conta de uma criança, o Braima que morre à fome, comprando biberão e leite de fórmula, vigiando as mamadas e levando a criança ao David Payne. O Casanova que chegara cabisbaixo a Missirá, quase que renasceu com esta imprevista incumbência. Eu tenho que vos falar de Braima Mané e de uma operação em que ele recuperou alguma mobilidade num braço que parecia morto por estilhaços. Vou continuar a fazer patrulhamentos e emboscadas nocturnas. Irei a Salá, onde, do outro lado do rio, ouvirei tiros isolados de caçadores das populações civis de Madina.
Uma dessas manhãs, o Paulo Ribeiro Semedo, que estudou na missão católica de Bissau, irá perguntar-me se podermos ir à missa da capela de Bambadinca. Aproxima-se o momento de ir a Chicri e nesse dia haverá fogo de morte. Nesse dia igualmente irá surgir o primeiro dos 21 feridos graves da minha comissão. Vou procurar controlar as emoções para fazer o relato de tudo isto, do que leio, do que escrevo, dos sonhos realizados e por realizar. Quero que fiquem a saber uma coisa muito importante: estou a ler e permanentemente a reler O Delfim, do José Cardoso Pires. Exijo que partilhem comigo uma das leituras de toda a minha vida.
__________
Notas de L.G.:
(1) Vd. post anterior, de 14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1276: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (20): A (má) fama do Tigre de Missirá em Bambadinca
(2) Sobre o tenente-coronel Pimentel Bastos (nickname, Pimbas), pode ler-se os seguintes posts:
28 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1124: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (2): A vida boa de Bambadinca, no tempo do Pimentel Bastos
30 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1041: O Pimbas e os outros (Jorge Cabral)
16 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1035: Ainda sobre o Pimbas, com um quebra-costelas para o Beja Santos (Paulo Raposo)
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1025: Tenente-coronel Pimentel Bastos: a honra e a verdade (Luís Graça)
4 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1028: O Pimbas que eu (mal) conheci (Jorge Cabral, Pel Caç Nat 63)
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1012: Operação Macaréu à Vista (Beja Santos) (3): Eu e o BCAÇ 2852, uma amizade inquebrantável )
1 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - P1014: A galeria dos meus heróis (5): Ó Pimbas, não tenhas medo! (Luís Graça)
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal (Luís Graça)
(3) Sobre o Alf Mil Medico David Payne ver os seguintes posts:
28 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1219: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): Um médico e um amigo, o Dr. David Payne Pereira
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)
2 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1237: Lembranças do David Payne (Torcato Mendonça / Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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